
Zanele Muholi: fotografia como arma de luta e visibilidade
Tudo na obra desta artista sul-africana é político. E a partir dessas bandeiras, ela ocupa uma das salas do Instituto Moreira Salles. Nesta reportagem, confira um passeio por sua exposição
O Instituto Moreira Salles (IMS) exibe a exposição “Zanele Muholi: Beleza Valente”, da renomada fotógrafa e ativista sul-africana no binaria Zanele Muholi. Mais do que uma mostra artística, a chegada de Muholi ao país é um ato político. Sua obra retrata corpos negros, queer e trans em toda sua potência e vulnerabilidade: “Tudo o que eu quero ver é apenas a beleza. E beleza não significa que você tenha que sorrir, mostrar os dentes ou se esforçar mais. Basta existir”, afirma a artista.
Na mostra são apresentados mais de 100 trabalhos de Muholi, concebidos desde os anos 2000 até hoje, incluindo obras inéditas produzidas no Brasil. Além de fotografias, o conjunto exibe também vídeos, pinturas e uma escultura em bronze colocada na entrada do edifício.
Nascide em 1972, durante o regime do apartheid na África do Sul, Zanele Muholi testemunhou as profundas desigualdades e violências de um sistema de segregação racial. Mesmo após o fim do apartheid e a implementação de uma nova Constituição por Nelson Mandela em 1996, o racismo, o preconceito e os crimes de ódio continuaram a marcar a sociedade sul-africana. Foi diante dessa realidade que Muholi decidiu usar a fotografia como arma de denúncia, documentando a violência e a resistência de comunidades marginalizadas.
Inicialmente focade em reportagens que expunham a brutalidade cotidiana, Muholi gradualmente transformou seu trabalho em um poderoso arquivo visual. Seus retratos e autorretratos transcendem a mera documentação, tornando-se um memorial vivo que desafia as narrativas coloniais e oferece ao mundo uma perspectiva histórica alternativa. Sua obra não apenas registra, mas celebra a existência de pessoas historicamente excluídas das representações oficiais, especialmente a comunidade LGBTQIA+ e negra.
Presente em museus internacionais, o trabalho de Muholi cumpre um papel essencial na reescrita da história através da imagem. Como destacou Thyago Nogueira, “[A obra de Muholi] amplia a nossa compreensão, não só da arte, mas também do respeito da dignidade humana”. Mais do que um acervo, seu legado é um ato político de visibilidade e resistência.
Diálogos com a realidade brasileira
No Brasil, onde a cada 48 horas uma pessoa LGBTQIA+ é assassinada, a exposição assume contornos urgentes. A curadoria da exposição não ignora o contexto local: em uma das salas, depoimentos em vídeo de ativistas brasileiros criam pontes entre a luta sul-africana e a realidade nacional. Dados do Grupo Gay da Bahia mostram que 84% das vítimas de crimes LGBTQIA+ no Brasil são negras, um paralelo direto com o trabalho de Muholi, que centra a negritude em sua narrativa.
A mostra traz ainda obras inéditas feitas no Brasil em 2024, quando Muholi veio a São Paulo para participar do Festival ZUM e conheceu organizações e instituições LGBTQIAPN+, num diálogo entre a história da luta por direitos no seu país e no contexto brasileiro. “Em diálogo com as obras e com essa cronologia sul-africana, a gente também pensa a luta por direitos aqui no Brasil”, enfatizou a curadora Ana Paula Vitorio.


Fotos: @lenicaproductions
Educar para transformar
A obra da Zanel vai além da denúncia e da representação, é também um poderoso instrumento de educação e transformação social. Hoje, seu trabalho não apenas documenta histórias marginalizadas, mas também se transforma em uma plataforma de conscientização e aprendizado.
“Isso é para dizer que os museus estão se abrindo, e os espaços estão se abrindo, e muitas pessoas podem ser educadas sobre esses problemas que são delicados e, às vezes, íntimos”, destacou Muholi em entrevista. A artista acredita que a arte pode, e deve, ser usada como ferramenta pedagógica: “A gente fala que esse trabalho precisa ser discutido e precisa ser usado também para educação, para que as próximas gerações saibam que a gente pode viver nessa sociedade de uma forma saudável”.
Ao levar suas exposições a museus e instituições culturais ao redor do mundo, Muholi não apenas amplia o acesso à sua arte, mas também estimula diálogos urgentes sobre racismo, identidade de gênero e direitos humanos. Seu arquivo visual desafia a história oficial e oferece um novo repertório para futuras gerações.



Fotos: Zanele Muholi
Séries fotográficas que desafiam o silêncio
A retrospectiva de Muholi no Instituto Moreira Salles reúne algumas das séries mais impactantes da carreira da artista sul-africana, celebrando três décadas de um trabalho. Entre as obras expostas, destacam-se:
- Faces e Fases (Faces and Phases)
Um dos projetos mais conhecidos de Muholi, esta série funciona como um arquivo vivo da comunidade LGBTQIAPN+ sul-africana. As imagens, diretas e poderosas, desafiam estereótipos e afirmam: “Nós estamos aqui”.
- Somnyama Ngonyama (“Olá, Leoa Negra”)
Nesta série de autorretratos, Muholi assume diferentes personagens, explorando questões de raça, gênero e colonialismo. Com adornos do cotidiano transformados em elementos simbólicos (como esponjas de aço como coroas ou cabos de vassoura como cetros), a artista questiona padrões de beleza e opressão, celebrando a negritude em toda sua potência.



Fotos: Barbaro Milano
- Bravas Belezas (Brave Beauties)
Focada em pessoas não binárias e transgênero, a série captura a beleza e a autoafirmação de corpos que desafiam normas de gênero. As fotografias, muitas vezes feitas em colaboração com as pessoas retratadas, mostram poses e roupas escolhidas por elas mesmas, reforçando agência e dignidade.
- Apenas Meio Quadro (Only Half the Picture, 2002-2006)
Uma das primeiras séries de Muholi, esta obra documenta histórias de violência racial e de gênero, incluindo os chamados “estupros corretivos” — crimes brutais cometidos contra mulheres lésbicas na África do Sul. As imagens, muitas vezes fragmentadas, refletem a dor, mas também a resistência das sobreviventes.
- “O respeito é a chave”: a filosofia por trás das fotos
Muholi não é apenas uma observadora, mas uma participante ativa na construção das imagens. “Eu queria que isso fosse muito articulado no meu trabalho porque as pessoas são pessoas, no final das contas. E o amor é o amor”, explica. “O respeito é uma coisa chave para qualquer pessoa, independente de como se identificam. Esse diálogo é sobre a política de existência e a política de silenciamento. Essa pessoa [retratada] fala ‘eu estou aqui, me escuta, respeite a minha existência’”.
Zanele Muholi, em sua passagem por São Paulo, deixa claro: sua arte não é para ser contemplada, mas para incendiar consciências.
Serviço:
“Zanele Muholi: Beleza Valente”
Local: Instituto Moreira Salles – São Paulo
Data: Até 22 de junho
Entrada: Gratuita