Por Paulo W. Lima 

Em mais uma entrevista mediada pelos coletivos Kintal de Afetos e Transpassando, temos a grata alegria de apresentar ao vale pride do Planeta FOdA uma artista de qualidade e competência imensurável. Yara Canta é uma artista que aparece na cena cearense não só como uma presença marcante e uma baita potência vocal.

Yara, esta sereia em trânsito pelas linguagens artísticas, é também uma promessa para a arte nacional. Competência para isto sabemos que ela tem, basta sabermos se haverá oportunidades. E esta entrevista fala um pouco sobre este contexto: quais as possibilidades de reinvenção da vida que estão acessíveis para as pessoas trans e travestis? Aos poucos, no decorrer da entrevista, Yara vai nos dando pistas e insights para descobertas ou criações de mundo.

Brotada na capital cearense, mas com raízes no sertão, nossa #ArtistaFoda da semana passa panoramicamente por inúmeras questões que não só podem, mas que precisam se tornar pautas e pausas para discussão. Desde a negação de sua própria identidade, por falta de uma referência respeitada socialmente, até o encontro consigo mesma e a descoberta de outras de si através das artes, Yara está, o tempo todo, falando de sonhos e também de realidades concretas muito dolorosas. O sonho de ser respeitada por ser ela mesma, a dor de conviver com uma realidade social que estruturalmente ainda não mudou seus paradigmas de opressão: negra, mulher, travesti, artista.

Yara, mesmo que sutilmente, faz dilatar um tema importantíssimo e muito negligenciado pelas bandeiras de luta: a saúde mental. Os espaços sociais, em sua reprodução das hegemonias opressoras, adoecem profundamente as existências contra-hegemônicas. O que nossa artista deixa transparecer é que os movimentos sociais e as artes podem ser caminhos de cura, desde que esses caminhos sejam percorridos com a delicadeza e o cuidado (de si e dos seus) necessários. O que Yara nos ensina a seu modo é que viver requer a delicadeza e a força de um salto alto.

O cis-tema LGBTfóbico, racista, fascista conservador não cansa de produzir mortes em nome da vida de poucos privilegiados não só socioeconomicamente, mas também simbolicamente. Eles querem transformar vivências e comunidades em mercadorias ou meros consumidores. Mas Yara lembra bem nesta entrevista: a tal da “inclusão” precisa ser no cotidiano. É preciso recriar imaginários, descobrir novos possíveis a cada dia, reencontrar a força presente nos saltos altos que vieram antes de nós e dos saltos altos que ainda virão. Agradecemos à Yara por também ser uma fonte necessária de recriação de vidas, para além da morte. Fiquem agora com a entrevista na íntegra de mais esta Artista FOdA!

Foto: Mateus Monteiro

Yara Canta, querida! Que honra poder lhe entrevistar! Em nome do Coletivo @kintal.de.afetos, do Coletivo @transpassando e da plataforma Planeta Foda/Mídia Nínja, quero lhe dar as boas vindas! Para começar, Yara Canta já é um nome que diz muito sobre você: nome de sereia afro que encanta com sua voz. Mas, falando você pelos seus olhos: quem é Yara Canta? Qual é a origem desta pessoa e desta artista? Qual é a trajetória dela?

Eu nasci em Fortaleza, capital do Ceará, mas grande parte da minha família é do interior do estado, da região do Vale do Jaguaribe, então eu sempre ia pro interior nas férias. Outra coisa que eu adorava fazer nas férias era acompanhar minha mãe no trabalho dela. Sempre admirei muito a minha mãe e foi o guarda-roupa dela que possibilitou as minhas primeiras experimentações com roupas e acessórios lidos enquanto “femininos”, ainda na infância. Socialmente, eu comecei a usar essas roupas e acessórios na adolescência e ao longo dos anos vários questionamentos começaram a atormentar a minha cabeça. O principal deles é que eu não conseguia entender quem ou o que eu era. A única imagem que eu tinha na minha cabeça em relação à travestilidade/transexualidade, era o preconceito da sociedade.

Eu tinha plena certeza que eu não podia ser uma travesti, porque naquela época, eu só ouvia falar de travestis nos jornais policiais e sempre de uma forma extremamente pejorativa. Esse sentimento só mudou quando assisti a Lea T pela primeira vez na TV, onde ela falava sobre a carreira dela como modelo. Foi um choque pra mim. Essa entrevista abriu a minha mente e foi através dela que eu comecei a perceber e entender que existiam outras possibilidades de vida para as travestis e mulheres transexuais, além da marginalização que a maioria da mídia adorava divulgar. A partir daí eu comecei a entender que o erro e o problema não era eu, mas sim a sociedade preconceituosa.

Embora eu tivesse afinidade com música desde a adolescência, eu só fui começar a externalizar publicamente meu lado artístico depois de todo esse processo pessoal, porque foi quando eu verdadeiramente comecei a me sentir eu. E aí por volta dos 18 anos eu comecei a produzir eventos e tocar como DJ, depois fui acrescentando o canto nessas performances e mais a frente encontrei o teatro que me trouxe várias outras possibilidades artísticas, como o cinema e outras linguagens artísticas.

Foto: Mateus Monteiro

Dentre as muitas experiências de palco que você tem, você faz parte do processo de criação e do elenco do espetáculo Toró, que foi o trabalho de conclusão de sua turma do Curso de Princípios Básicos em Teatro – CPBT, do Theatro José de Alencar. Para quem conhece sabe que os processos criativos do CPBT são imersivos e diz muito da própria turma. O que Toró diz sobre a Yara? Como este espetáculo atravessa a tua história de vida e de formação artística?

Desde a minha adolescência eu tinha vontade de fazer teatro e só pude concretizar esse sonho aos 24 anos, quando participei de uma peça de teatro musical. Depois dessa experiência, eu decidi me inscrever no CPBT em busca de uma formação mais completa. De fato, a minha passagem pelo CPBT foi um momento divisor de águas na minha vida, em todos os aspectos, tanto pessoal como profissional. O espetáculo de conclusão da minha turma, Toró, traz em sua dramaturgia diversos questionamentos sobre o racismo, fascismo e todo o sistema de opressão e colonização que enfrentamos na nossa sociedade. A dramaturgia foi construída coletivamente com as questões que a gente levava pra debater nos ensaios. Mas, especialmente para as pessoas negras e trans, esse processo não foi tão tranquilo, pois essa imersão pode não ser tão saudável. É bem delicado colocar a nossa vivência enquanto pessoas trans e negras, em um ambiente em que muitas pessoas não entendem a dimensão disso tudo.

Coordenadora Geral da ATRAC (Associação de Travestis e Mulheres Transsexuais do Ceará), afiliada ao FONATRANS (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros) e a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) com uma carreira artística na cena cearense crescendo cada vez mais, você começou recentemente a participar do projeto Pré-Vestibular do Coletivo Transpassando. Por que este retorno aos estudos agora? Como foi sua relação com a educação formal? Qual o objetivo deste retorno para a sala de aula?

Eu concluí o ensino médio e logo em seguida comecei a cursar design de moda porque era uma área em que eu me identificava muito, principalmente pela possibilidade artística de criação. Então, eu comecei a faculdade muito empolgada, adorava desenhar, modelar e costurar. Eu saía às 6 horas da manhã pra pegar o ônibus, muitas vezes usando um salto altíssimo, pois eu sentia que de alguma forma o salto era uma armadura e me fortalecia. Mas algumas questões começaram a me atravessar de uma forma que ficou insustentável a minha permanência naquele espaço. A questão da chamada me desestabilizava muito, principalmente porque eu estava no início da terapia hormonal, com muitos altos e baixos emocionais. Foi nessa época que tive uma depressão muito grande.

Essa minha decisão de retornar à sala de aula tem total ligação com a minha atuação no movimento social, porque venho sentindo cada vez mais necessidade de buscar conhecimento e hoje, 10 anos depois, eu entendo perfeitamente que o que o ‘cistema’ menos quer é que nós, pessoas trans, pretas, LGBTI+, dissidentes, tenhamos conhecimento. Exatamente por isso, decidi voltar a estudar.

Foto: Mateus Monteiro

Sabemos da sua qualidade artística, mas também sabemos do processo de sucateamento e desvalorização dos profissionais das artes. Tem sido cada vez mais difícil viver do trabalho artístico em um país que prefere criminalizar ou moralizar as obras e seus autores. Sendo uma pessoa T ocupando os espaços culturais do estado do Ceará e fora dele, como você vê a questão da empregabilidade da população T, seja nos espaços artístico-culturais ou fora deles?

A população de travestis e pessoas trans é uma população muito vulnerável socialmente; uma grande parte é expulsa de suas casas ainda na infância ou início da adolescência. Muitas não conseguem concluir nem o ensino médio, quem dirá chegar ao ensino superior. Então, eu vejo que a empregabilidade para a população trans ainda é algo bem complicado porque nós ainda não conseguimos exercer a nossa cidadania com plenitude.

Eu vejo empresas que nos procuram apenas em datas comemorativas, buscando usar nossa imagem para se dizer inclusiva. A tal “inclusão” deve ser feita no cotidiano, com naturalidade. Nós precisamos comer todos os dias, nós temos contas a pagar. É preciso urgentemente colocar em prática todo o discurso sobre “diversidade” e “inclusão”.

Se uma “Drag Madrinha” aparecesse com uma varinha mágica e lhe concedesse três desejos para se realizarem até 2030, quais sonhos você gostaria de ver realizados? Em que condições de vida e luta a Yara Canta quer estar nesse futuro a médio prazo?

Primeiro de tudo, que nosso país não apenas tenha se livrado desse governo racista, LGBTIfóbico, fascista, mas que a gente consiga eleger mulheres negras, mulheres trans, travestis e mais pessoas que tenham compromisso com a luta contra o racismo, LGBTIfobia, machismo e em defesa dos Direitos Humanos. E do lado artístico, espero ter lançado pelo menos um CD e alguns outros trabalhos no audiovisual.

Yara, querida, nesta reta final da entrevista, quero agradecer imensamente pela sua participação. Em nome do Kintal de Afetos, do Transpassando e da Planeta Foda/Mídia NINJA, quero lhe parabenizar pela artísta extremamente competente e marcante que você é. Dito isto, lhe convido para as considerações finais: o que você gostaria de dizer aos que nos acompanharam até aqui, para finalizar esta entrevista?

Preciso agradecer esse convite lindo! Tenho muito carinho por você, Paulo, admiro muito o trabalho do Transpassando, do Planeta Foda/Mídia Ninja, e estou muito feliz por ter esse espaço aqui pra falar um pouquinho sobre minha vida e minha atuação tanto na arte como no movimento social. Deixo aqui meus agradecimentos às que vieram antes de mim, que abriram as portas e construíram outras possibilidades de vida, para além da morte.

 

Foto: Mateus Monteiro

Foto: Mateus Monteiro

Foto: Mateus Monteiro