XV Janela Internacional de Cinema do Recife destaca curadoria de Kleber Mendonça Filho
Com programação refinada, festival reafirma o protagonismo do cinema pernambucano no cenário nacional
Por Daniele Agapito
O XV Janela Internacional de Cinema do Recife, extraoficialmente conhecido como Janela de Kleber, passou feito um foguete.
Isso porque o festival tem direção artística de Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux, o casal por trás de “O Agente Secreto”, representante brasileiro no Oscar de 2026. Kleber, ou Klebinho, como é chamado por quem já estaria pronto para lhe entregar as chaves da cidade, também assina “O Som ao Redor”, “Aquarius”, “Bacurau” e “Retratos Fantasmas”.
Este último, um documentário sobre a rotina de cinemagoing (as idas ao cinema) no centro do Recife ao longo do século XX, resgata como as salas de exibição eram também espaços de convívio e parte do cotidiano da cidade. É justamente esse movimento que o Janela tenta instigar. O histórico Cinema São Luiz, por sinal, que aparece tanto em “O Agente Secreto” quanto em “Retratos Fantasmas”, é um dos espaços que recebeu o público do festival na capital.
Entre os espectadores vips estava o cineasta Marcelo Lordello. Ele faz parte da patotinha do cinema pernambucano, mas desta vez foi ao festival na condição de cinéfilo. Marcelo é, das pessoas que conheço (junto com Álvaro Buarque, numa disputa acirrada), alguém que, se pudesse, dormiria todas as noites dentro de uma sala de cinema, de conchinha com um projetor. Por isso, não consegui pensar em pessoa melhor para comentar o festival para os leitores do Cine NINJA do que ele.
“Tenho experiência com o Janela desde a primeira edição, já coloquei filme lá, já concorri, já fui premiado. Mas, como cinefilia, para Recife, é um desbunde, porque, para além dos filmes brasileiros e internacionais mais recentes, a curadoria sempre teve o desejo de que o público daqui se encontrasse com cineastas ou com obras que normalmente não chegariam às nossas telas. Esse ano vim só pra curtir, sem o peso de lançamento, só pra ver filme e encontrar os amigos”, contou.
Por conta do corre-corre da campanha de “O Agente Secreto” — filme que, inclusive, tem Marcelo na equipe —, a edição do festival esse ano foi mais compacta, espalhada entre o Cinema São Luiz, o Cinema do Parque e a Fundação Joaquim Nabuco. “Foi uma versão menor, tipo um petit comité, mas muito boa de curadoria. Conseguiram juntar longas e curtas com coerência. E o bom é que, em Recife, os cinemas são perto, você sai da sessão, anda pela Boa Vista e para no Mamede pra tomar uma cerveja. É um festival de rua, e isso é o mais gostoso do Janela.” A rua Mamede, diga-se de passagem, é o ponto de encontro certo dos cineastas pernambucanos.
O que Marcelo garimpou no Janela
Organizadíssimo como jamais eu conseguiria ser, nosso correspondente otimizou sua agenda, começando pelo sábado, que guardou para ver filmes nacionais. Começou com “Faz Tudo”, de Fábio Leal. “É aquele humor elétrico, numa linguagem geração MTV, meio videoclipe, meio fetiche. Ele faz isso com um prazer enorme, em todos os sentidos, porque ele está filmando o eletricista da casa dele (…) Quebra muito o que a gente costuma ver num cinema mais convencional sobre o corpo masculino.”
Depois assistiu “Nem Deus é Tão Justo”, de Sérgio Silva. “Me lembra uma fase meio godardiana, sabe? Uns filmes de apartamento dele. Mas que é bem particular, debochado, paulistano, poético pra caramba. Personagens dialogando naquela viagem autoanalítica… Depois tem a aparição do fantasma do ex-namorado dele, que é hilária.”
Em “Os Arcos Dourados de Olinda”, o deboche continua. “É sobre uma loja do McDonald’s que faliu em Olinda. O documentário brinca, como se fosse um mérito dos olindenses não aceitarem aquele bastião do capitalismo. Beira o ufanismo pernambucano e traz essa questão entre o capital e o social.”
Entre os clássicos, o ponto alto foi “São Paulo S/A”, de Luiz Sérgio Person, com a filha Marina Person presente na sessão. “Já tinha visto esse filme duas vezes, numa cópia pirata de internet e outra no DVD que comprei. Serviu muito para pesquisa de um longa que fiz, O Paterno. Ver esse filme na tela grande é outra coisa. Impressiona a inventividade do Person. Ele não foi aceito pelo Cinema Novo (…) antes eu via muito Antonioni nele; agora vejo mais brasilidade. É um retrato de São Paulo, foi a melhor sessão do Janela Clássico.”
De Guto Parente, elogiou “Morte e Vida Madalena”. “Eu sou meio suspeito para falar porque sou amigo do Guto e fã do cinema dele. É um filme delicioso, tem a pegada dele, tem uma assinatura. Ri muito, vi com amigos cineastas. Existe essa sensação de brodagem entre Pernambuco e Ceará, né?”
Outro longa muito recomendado por ele é “Father, Mother, Sister, Brother”, descrito como um filme que “bate leve”, com uma construção de personagens e relações que “deixa a gente chapado de tão boa”. “Fui pro bar depois e a gente passou um bom tempo debatendo os não ditos da obra. Pra mim, foi o grande filme do Janela”, resumiu.
Marcelo ainda cita “Papagaios”, de Douglas Soares (“retrato da periferia do RJ feito com muito lugar de fala”), “Dolores”, de Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar (“mais uma incursão de Gomes num universo do feminino, agora com a ajuda do olhar renovado de Clara”), e o doc “Kopenawa” (“o personagem é tão rico que vale assistir”).
Mas um dos momentos mais catárticos para quem é rato de cinema, segundo ele, foi “Para Vigo Me Voy”, de Karen e Lírio Ferreira. “Foi foda. O Cacá Diegues é um cara amado. Ele veio do Cinema Novo, mas depois começou a contestar certos rigores… Tem uma cena de entrevista do Cacá, já velhinho, filmado de costas, no mesmo ângulo de uma cena do Belmonte em Acossado, como se fosse um plano e contraplano, um diálogo entre eles. Incrível. Karen arrasou na montagem. Essa geração nova precisa ver mais cinema nacional. Para Vigo pede urgente uma retrospectiva do Cacá nos cinemas.”
“O Mapa Onde Estão Meus Pés” e “A Sombra do Meu Pai”, ele achou belíssimos, viu um na sequência do outro, elogiou a curadoria, disse que esses filmes precisam caminhar para sempre juntos. Ambos tentam preencher a lacuna da ausência do pai. Ponto curioso: paternidade parece ser seu assunto favorito de Marcelo.
No esquenta pré-Oscar ele começa as apostas, cita “Arco”, um filme de animação sobre viagem no tempo, e diz que esse vai levar todos os prêmios na sua categoria. “Filme que fala com o nosso tempo e quer dar uma mensagem de cuidar da gente, cuidar do planeta.”
Uma preocupação para os brasileiros, que, segundo Marcelo, representam nossa maior ameaça na categoria internacional: “Sentimental Value foi o que mais me pegou. Saí lacrimejando. Filmão, filmão mesmo. A aproximação com os personagens me lembra muito Bergman; a sequência inicial é absurda. Renate Reinsve (atriz) está incrível. Acho que vai ser um dos grandes filmes internacionais do Oscar.”
Mas sua predileção é “O Agente Secreto”: “Também sou muito suspeito para falar. Gosto do retrato fiel de uma época, da reflexão sobre o apagamento de memórias, da nova perspectiva sobre as consequências nefastas da ditadura brasileira e de como Kleber e a equipe deram conta, cinematograficamente, de uma obra tão complexa e cheia de afeto.”
Já “Sirat”, diz ele, “é um filme absurdo, bizarro, que dá uma sensação na boca do estômago. Às vezes fico achando que é um filme sobre a fragilidade humana, do tipo ame ou odeie.”
A conversa terminou com a filha de Marcelo, acompanhada de uma amiguinha, atravessando o escritório vestida de Princesa da Disney decapitada, exibindo orgulhosa o sangue no pescoço que ela mesma confeccionou com uma mistura de mel e corante. Filha de peixe, naturalmente: já preparando os efeitos especiais para uma festa de Halloween fora de época no Recife.
E, ainda não satisfeitas com o banho de sangue cênico, as duas cobriram o rosto dele com uma máscara do Pânico, quase como um lembrete: chega de filme cabeça por hoje.

O evento foi realizado de 01 a 05 de novembro.







