Traduzido de Nicolas Cabrera para On Cuba

Parece chinesa ou japonesa, mas com as cores erradas. Seus olhos, para começar, são de um azul glacial. O cabelo, curto e claro, é tão liso que qualquer ondulação seria uma heresia. Falo de Yulia Malygina, líder da organização “Resource LGBTQIA Moscow”, um centro para projetos sociais, culturais e psicológicos, que colocam o foco nas minorias sexuais e a diversidade de gênero, que colorem a Rússia neomedieval de Putin. Desde a sua organização, Yulis soube combinar duas entregas: a militância e a fotografia. O resultado é o trabalho “Families stories. A revelation of meaning” (Histórias de famílias. Uma revelação significativa), uma série de polaroids que pensam o casal e a família, no plural. Yulia com tanta bondade como convicção, nos compartilha as fotos que compõem esta matéria.

Foto: Yulia Malygina

Conhecemos Yulia na “Diversity house” (Casa da Diversidade) de Moscou, uma espécie de refúgio “frendly” para qualquer pessoa que se sinta ameaçada pela homofobia e a discriminação. Até ali caminho com um simples objetivo: conhecer, em primeira mão, as experiências de vida e organização da comunidade LGBTQIA na Rússia. Pois a imprensa internacional, com mais boca que ouvidos, disse muito e ouviu pouco sobre eles. As casas da diversidade têm o patrocínio da FIFA – leiam-se símbolos e não dinheiro –, a gestão da ONG “Fare Network” e o acompanhamento de diversas organizações da comunidade gay. Na casa da diversidade, entre telas futeboleiras e mostras temáticas, procuramos Yulia. Sei que tem 40 anos, mas todas as pessoas que me rodeiam parecem mais jovens. Alguém a chama e ela se aproxima a passos curtos e rápidos como se estivesse pisando em formigas. Nos damos as mãos e começamos um bate papo com mais sinais do que palavras.

Vivo com minha companheira há 6 anos, para mim estamos casadas, mesmo que não seja legal. Compartilhamos a casa com seu filho de 20 anos, os três somos uma família. Na organização, tentamos que as pessoas que vêm se aceitem a si mesmas e que também possam ser aceitas em seus círculos íntimos. Para as mulheres é mais difícil, há mais pressões sociais. Há uma prisão histórica na Rússia para os homossexuais. Agora na Copa é um pouco diferente, temos um espaço onde nos encontrar, muitos de nós estamos nos sentindo mais livres, comparando com o que tínhamos antes, mas ao mesmo tempo estamos muito preocupados com o que vai acontecer quando a Copa acabar. Não sei, mas a minha experiência histórica me diz que os momentos de liberdade e expressão são seguidos por períodos de maior repressão e perseguição.

Foto: Yulia Malygina

A Rússia de Putin oscila entre o czarismo tardio e um estalinismo democrático, alimentado de um nacionalismo com fome de império. O “montaurso” proclama o retorno aos valores tradicionais da família cristã e ortodoxa. O – suposto – laicisimo e liberalismo individual do ocidente é o espelho invertido. Nessa cruzada, o armário fechado é um imperativo moral. Dois exemplos: o primeiro é a estatização da homofobia com a lei “contra a propaganda gay”. Em 2013, o senado russo aprovou – por 434 votos a favor, uma abstenção e nenhum contra! – a proibição explícita de qualquer manifestação pública de homossexualidade.

O outro exemplo é a Chechênia, um estado autônomo pertencente à Rússia. Naquelas terras polares brancas mais do que “casas da diversidade” há caças à diversidade. Os ativistas LGBT têm denunciado campos de concentração, deportação e assassinato de membros de sua comunidade. O presidente checheno, Ramzan Kadyrov, se encarregou de escurecer o pedido de esclarecimento: “não podemos deter pessoas que não existem nesta república”

Foto: Yulia Malygina

Neste contexto, a Copa do mundo é um parêntese. Um estado de exceção. Uma maquiagem perante uma audiência global que reclama mais do que cumpre, pois seria absurdo pensar que a homofobia é patrimônio russo. Sobre isso, falo com Inga Admiralskaya, uma moscovita que até 2013 viveu onde nasceu. Em seguida, as circunstâncias a mudaram para o Brasil, onde sofreu e amou até junho do ano passado. Seu testemunho tem a experiência do contraste, a sabedoria do migrante, que inevitavelmente pensa com um pé em cada país.

Não vejo muita diferença entre o Brasil e a Rússia. Claro que na Rússia qualquer casal gay pode se sentir livre, como na praia de Ipanema no Rio de Janeiro, mas Ipanema não é igual ao resto do Brasil. Eu acho que no nível das leis, o Brasil é mais seguro que a Rússia para aqueles que saem do padrão heteronormativo. Mas essas leis, na prática, não funcionam bem. Há mais visibilidade no Brasil, mas essa segurança só está dentro das classes médias. Fora de lá, ser gay, transexual, bissexual ou pessoa não binária é extremamente inseguro. Na Rússia não há leis que protegem as minorias, ao contrário, as perseguem.

Foto: Yulia Malygina

Chego à casa da diversidade a convite de Alexander Agapov, presidente da Federação Esportiva LGBT da Rússia. Chega para o compromisso atrasado e molhado, a chuva de fora é hostil. Mas nem com pressa, nem molhado, perde a elegância. Uma roupa executiva acompanha a sua magreza. Sua imagem não é menor, a imprensa internacional o procura e muito. “Sua” federação foi criada em 2010, após os “Gay Games” em Cologne, Alemanha. Este megaevento da diversidade é uma espécie de olimpíadas que concentra o arco-íris LGBT em torno do esporte. Existe desde 1982. Com Alexander a comunicação é mais fácil, fala um inglês tão perfeito quanto o meu espanhol.

Durante a copa, há uma atmosfera de liberdade, no outro dia eu andei algumas quadras com a camiseta de minha organização, tem a bandeira da diversidade. O futebol é para todos, não tem que haver diferenças de qualquer tipo, mas, infelizmente, na Rússia, as pessoas gays são cidadãos de segunda ou terceira categoria. Nada é igual para nós, nem fumar, nem andar de mão, tudo é uma desculpa para a perseguição. O campeonato vai terminar, mas a lei anti-propaganda homossexual continuará. Isso é como uma excepcionalidade, a diversidade sexual não é pensada como um direito humano, mas sob uma ideia de hospitalidade: ser amável, que não tenha problemas, etc. Mas a Rússia é conservadora e Putin precisa construir-se em oposição ao ocidente, e encontra no eixo gay uma forma de dizer “nós somos diferentes, temos nossos próprios valores.”

Foto: Yulia Malygina

Nem sempre Rússia castigou a todos aqueles que desejavam fugir da norma sexual. O homoerotismo era moeda corrente nas casas de banho czaristas ou em clubes de poesia. Após a revolução de 1917, a União Soviética tornou-se o primeiro país a descriminalizar a homossexualidade, em 1922 – dois anos antes, fez o mesmo com o aborto. Os ventos de outubro varriam o crime de Sodomia. O Orgulho rígido até Stalin. Com o novo mestre soviético foi restaurado o patriarcado heteronormativo. A dissidência sexual, ou as “loucas”, como se dizia, tiveram um novo alvo: os Gulag ou a terapia psiquiátrica-hormonal. A homossexualidade foi reconhecida como crime e transtorno mental até 1993.

Quase todos os ativistas da comunidade LGBTQIA com quem se conversa coincidem em dois pontos: há uma continuidade entre a perseguição iniciada no stalinismo e a sufocante conjuntura homofóbica da Rússia atual. E, em ambos os casos, a repressão tem um mesmo objetivo político: unir russos e opor-se ao ocidente. No entanto, há sempre entraves ao poder. Nos parênteses, pelas frestas, com as exceções e as atmosferas de liberdade, como pode ser no Mundial de futebol, eles fazem de suas vidas uma existência vivível. Porque preferem acender uma vela do que amaldiçoar eternamente a escuridão. E se resta alguma dúvida, convido-os a ver de novo as fotos de Yulia.