Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

Conversar com Marcio Junqueira é como passar por uma explosão de palavras, informações, histórias, mas também de afeto.

Com criações que transitam entre a escrita e o desenho, o artista baiano é o entrevistado desta semana para a seção #ArtistaFOdA.

Para o FOdA / Mídia NINJA, ele compartilhou um pouco da sua interessante trajetória artística.

Marcio apresenta trabalhos sensíveis que falam sobre experiências vividas (ou idealizadas) por ele, mas que também tocam em questões mais gerais como a masculinidade e a afetividade relacionada a corpos negros e corpos LGBTQIAP+.

Da pegação breve, passageira, que ele passou a materializar em passagens de ônibus, como um diário, a amores escritos, desenhados, sublinhados e rasurados entre as suas publicações.

Ler Marcio Junqueira vai para além do que os seus textos podem dizer. É sobre sentir. Perceber sentimentos que gritam, ou que se silenciam, entre registros de vida que ele decidiu colocar no papel.

Confira a seguir a conversa na íntegra.

Como você percebe o seu encontro com a arte, com o trabalho que você desenvolve atualmente?

Eu fiz Letras na UEFS, mas antes de fazer Letras eu já tinha feito teatro. Eu comecei a fazer teatro com 14 anos. Entrei na universidade em 2001, e era um momento bem animado naquela época. Eu adentrei essa vida da universidade de forma muito ativa, mas já escrevia desde que eu me entendo por gente.

A literatura sempre foi a coisa que mais me instigou. Os livros me levavam para outros mundos, me sugeriam outras possibilidades de como ser, de como viver, do que fazer…

Para mim, um lado bom de ter cursado Letras é que eu tinha que ler muito, mas, ao mesmo tempo, eu sentia que os meus impulsos artísticos não eram tão estimulados dentro da Academia.

Foto: Madiano Marcheti

Em 2004, eu fui ao Rio para ver uma exposição que se chamava “Como Vai Você, Geração 80?”, que era uma remontagem que aconteceu no CCBB, 20 anos depois da exposição original. Na porta do CCBB, eu me deparei com os clássicos poetas que ficam por ali e eu fiquei encantado com aquilo.

Na graduação, eu fui muito instigado pelos poetas marginais cariocas que estavam pensando num outro sistema de circulação da poesia, mas aquilo era quase uma fantasia da minha cabeça, que eu apenas lia sobre. Quando eu me deparei com aquele movimento na frente do CCBB, eu senti que havia uma conexão e voltei encantado.

Quando eu retornei para a Bahia, eu fiz uma série de poemas que resultaram na minha primeira publicação, um zine chamado “cinco canções e um remix”. Depois, eu acabei fazendo um outro zine chamado “LUCAS”, que seria o pontapé para o meu primeiro livro, que também se chama “LUCAS”.

Eu acabei a minha graduação e fui morar no Rio para fazer o mestrado na UERJ. Paralelamente a isso, aconteceram duas coisas que eu acho que foram tão importantes quanto o mestrado. A primeira é que eu comecei a vender poesias na porta do CCBB. Acabei me tornando parte daquele movimento que me inspirou inicialmente e conheci muitas pessoas durante esse momento. Eu também passei a fazer parte de uma oficina semanal na UERJ com o Carlito Azevedo, e foi incrível.

Lá nessa oficina, eu conheci Lucas e Clarissa e nós resolvemos criar um coletivo de poesia e desse impulso surgiu uma revista de poesia chamada “bliss”, em 2009. Nós demos o nome de “bliss não tem bis” para o nosso coletivo.

Com essas experiências, eu pude ter um maior movimento de afirmação de me entender como poeta. Até hoje, penso que pode ser um pouco complicado se apresentar como poeta, pode soar de forma pomposa, mas quando me propus a vender poesia nas ruas, entendi que eu precisava afirmar esta posição de forma mais confiante para conseguir chegar até as pessoas. Eu precisava acreditar no meu trabalho.

Capa Livro – LUCAS

livro _sábado_ – Marilia Garcia

Eu vi que os desenhos também estão bastante presentes entre as suas obras e, então, gostaria que você falasse um pouco sobre essa relação.

O desenho sempre esteve muito próximo dos meus trabalhos. Eu sempre desenhei, mas sem muitas pretensões. Quando eu lancei “voilá mon coeur” em 2010, como parte da coleção Rabiscos, as pessoas começaram a me entender como artista visual e eu fui achando isso uma coisa boa também, porque eu gosto das artes visuais.

Para quem vem da literatura, eu acho que as artes visuais são um campo até excessivamente aberto. Muitas práticas são possíveis dentro das artes visuais. Até escrever é possível…

Eu sempre tive esse trânsito entre o desenho e a escrita. E penso que, no final das contas, a escrita também é desenho.

No “LUCAS”, o meu primeiro livro que saiu em 2015, existem muitos desenhos. Mas eu entendo os desenhos, neste caso, como poemas gráficos.

Eu conheci o “Diário de Pegação” através do Instagram. Esse trabalho também se tornou uma publicação?

O Diário ainda não virou uma publicação, mas acredito que em algum momento isso vai acontecer. Eu comecei esse trabalho como um diário mesmo, sem muitas ambições e ele foi se desdobrando, foi ganhando mais corpo e se aprofundando.

Em 2019, eu decidi transformar o Diário no meu projeto de doutorado. Então agora eu estou fazendo o doutorado lá na EBA da UFBA estudando o “Diário de Pegação”.

Acho que é um trabalho em expansão, que começa com as passagens de ônibus, quando eu decidi desenhar duas histórias que eu tinha vivido em Vitória da Conquista, por não ter outra superfície naquele momento para expressar o que eu estava sentindo. Depois eu entendi que isso também tinha um signo, que eu achava forte, porque pegação fala muito sobre amores transitórios, amores breves e eu acho que a passagem sugere um pouco isso também, esse trânsito, essa transitividade.

preso em casa cheio de tesão

toda vez que sua namorada sai ele vai ver outro rapaz

E, depois de participar de uma residência artística no final de 2017 e de trocar com outras pessoas, eu percebi que ali tinha uma série de elementos em que eu estava pensando de uma forma autobiográfica, mas que também tinham outras chaves que eu poderia ler. E uma das chaves que ficou muito mais clara para mim foi a de pensar as questões afetivas, sexuais, filtradas pelas questões de raça e pelas próprias questões ligadas ao masculino, porque eu acho que a gente ainda fala pouco sobre masculinidade.

Quando eu comecei a reler as minhas histórias afetivas a partir desses filtros, acho que uma série de elementos emergiram. As tramas ficaram mais complexas. A pesquisa passou a ser informada por esses dois atravessamentos que são a questão da masculinidade e a questão da negritude. Pensar sobre como esse corpo negro, no geral, é idealizado como um corpo ultra masculino, um corpo para o prazer, e corpos que recebem pouco afeto, na verdade.

E eu acho que isso transparece no Diário. Embora eu preferisse falar muito mais sobre afeto, apesar do nome ser “Diário de Pegação”, eu vejo que a questão afetiva no meio gay é muito escamoteada, quando não é completamente relegada. Acho que você partir sempre de um processo de objetificação do seu corpo, tendo que provar que você pode ser válido como ser humano para além de um corpo que pode gerar prazer para o outro, é muito pesado.

Essas são questões que me mobilizam neste trabalho, porque são questões que eu tenho debatido na minha própria vida também.

Eu acho que o afeto está sempre conectado de alguma forma entre os seus trabalhos. O que você pensa sobre isso?

Eu acho que o afeto é o meu tema. Eu me percebo dentro de uma linhagem de artistas em que a questão afetiva e as questões de identidade são muito presentes.

Eu me reconheço em uma linhagem que passa por Leonilson, que passa por Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Marina Lima, Antonio Cicero, que são artistas que falam muito sobre afeto, e que talvez vivam menos o afeto do que falam.

Talvez seja muito sintomático se falar tanto de afeto quando se falta esse afeto. É uma busca e eu acho que também é uma forma de entender o mundo. E isso é uma coisa que me mobiliza muito.

Mas, quando eu fui morar no sul da Bahia e me tornei professor da UNEB, eu passei a conviver com os pataxós e isso fez com que eu me conectasse mais com as questões ligadas à causa indígena. Em 2018, eu desenvolvi um projeto com parceiros que se chama Kijẽtxawê Zabelê , onde ficamos durante 02 meses trabalhando com uma comunidade escolar de Cumuruxatiba, a partir da proposta de produzir um livro didático para ser utilizado por aquela escola. Isso para mim foi muito rico porque a gente estava pensando sobre questões relacionadas à educação indígena e também sobre como poderíamos levar isso para a nossa realidade, para o nosso dia a dia em sala de aula.

Foto: Lorena Aguiar

E o que tem te movimentado no agora?

No ano passado, com a minha mudança de Arraial para Salvador, por conta do doutorado, e também com as questões provocadas pela pandemia, surgiu uma série nova que eu tenho chamado de “abandonar o futuro”.

Com essa mudança, depois de morar no sul da Bahia por quase uma década, eu criei grandes expectativas, eu inventei um futuro maravilhoso. E aí veio a pandemia e tudo aquilo desabou.

Então “abandonar o futuro” surgiu a partir de uma provocação de uma das disciplinas do meu doutorado, onde foi lançada a questão sobre qual era o nosso gesto artístico em tempos de crise. Eu entendi que o meu gesto artístico naquele momento era abandonar o futuro. Tudo aquilo que eu tinha projetado, prospectado, inventado que seria a minha vida. É também um jeito de se aterrar, de ancorar a presença no corpo, é estar onde se está, é estar presente.

Essa série tem rendido e eu tinha pensado em fazer uma publicação no começo do ano, mas eu achei que se eu começasse a trabalhar no livro, de alguma forma eu fecharia a porta para esses textos que não estavam programados. E eu estou mais interessado no que pode surgir.

Para acompanhar o que pode surgir, entre as criações de Marcio, siga o perfil do artista no Instagram: @marcio.junqueira.3

O projeto “Diário de Pegação” também tem um perfil específico na rede social: @diario_de_pegacao

Confira todas as entrevistas que já foram publicadas na seção #ArtistaFOdA clicando aqui.

*@planetafoda é a página de conteúdos LGBTQIAP+ produzidos pela rede FOdA, da Mídia NINJA, junto a colaboradores em todo o Brasil.

Foto: Laryssa Machada

hipermnésia

era o q eu vinha tentando responder desde setembro_ onde está o princípio do nosso encontro_