
Viúva de estudante morto pela ditadura recebe indenização 52 anos após assassinato
José Carlos Novais da Mata Machado foi morto sob tortura . A União pagou indenização de R$ 590 mil à viúva.
Por Samarone Lima*
José Carlos Novais da Mata Machado foi morto sob tortura em 28 de 1973, no DOI-CODI do Recife. A União pagou indenização de R$ 590 mil à viúva, após mais de 20 anos de processo.
Cinco décadas depois do assassinato de José Carlos Mata Machado, militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), morto sob tortura em 1973, sua viúva, Maria Madalena Prata Soares, hoje com 78 anos, recebeu R$ 590 mil de indenização por danos morais da União. O pagamento ocorreu em julho, após mais de 20 anos de batalha judicial.
“Zé”, como era conhecido, foi preso dia 28 de outubro de 1973, quando saía de São Paulo para Belo Horizonte, tentando escapar do cerco da repressão sobre a APML.
Seu pai, Edgar de Godoy da Mata Machado, professor catedrático da UFMG, e deputado federal cassado pelo AI-5, organizou a fuga, que contou com a ajuda do advogado de presos políticos Joaquim Martins familiares.
No mesmo dia, em Salvador, outros militantes da APML, como Gildo Macedo Lacerda e Oldack Miranda, também foram presos, torturados, e levados para o Recife.
Na madrugada de 28 de outubro, no DOI-CODI do Recife “Zé” foi morto, após sessões de torturas, junto com Gildo. Pouco antes de morrer, Zé Carlos conseguiu se identificar para o preso Rubens Lemos. Suas últimas palavras foram:
”Se puder, avise aos companheiros que não abri nada”.
Na época, o regime militar divulgou a versão de que ambos haviam morrido em um tiroteio, no episódio que ficou conhecido como “O Teatro da Caxangá”.
Essa narrativa foi contestada com firmeza por Edgar da Mata Machado, que fez imediatamente uma petição à Secretaria de Segurança de Pernambuco, fundamentada nas leis brasileiras, para saber onde estava o corpo do seu filho, e “respeitosamente”, se dignasse a autorizar a transferência do corpo do filho, “do local onde ele está, para esta cidade de Belo Horizonte”.
A pedido de Edgar, a advogada pernambucana Mércia Albuquerque assumiu o caso e localizou o corpo do militante. Fora enterrado sem identificação, como numa vala comum, no Cemitério da Várzea.
Numa batalha que durou dias, ela conseguiu fazer a exumação enviá-lo para Belo Horizonte.
O comandante do IV Exército, coronel Cúrcio Neto, só liberou o corpo para a família com algumas condições: se o caso ficasse longe da imprensa, se não tivesse aviso fúnebre, e se o caixão não fosse aberto, ao chegar em Belo Horizonte.
Somente nos anos 1990, com a descoberta da Vala de Perus, em São Paulo, a família Mata Machado resolver fazer uma exumação dos restos mortais, confirmando sua identidade.
A ação judicial foi iniciada em 1999. Em 2003, o juiz federal Carlos Augusto Tôrres Nobre reconheceu a responsabilidade da União, afirmando que “não se justifica a barbárie com rótulos atribuídos à vítima”. Mesmo assim, o processo só foi encerrado em 2023, após o esgotamento de todos os recursos. A União alegava prescrição, tese rejeitada pela Justiça com base no entendimento de que crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis.
Para o advogado Eduardo Diamantino, que acompanhou o caso, o pagamento é uma vitória simbólica: “Ainda que tardia, foi feita justiça à família.”
Zé Carlos nasceu no Rio de Janeiro. Filho do jurista, político e professor Edgard da Mata Machado e de Yedda Novaes, mudou-se ainda criança para Belo Horizonte
Ingressou na Faculdade de Direito da UFMG em 1964, aprovado em primeiro lugar. Participou ativamente do movimento estudantil, chegando a ser vice-presidente da UNE. Foi preso pela primeira vez em 1968, durante o 30º Congresso da entidade, em Ibiúna-SP.
Reconhecido oficialmente como morto político em 1996, sua trajetória foi registrada no livro “Zé – José Carlos Novais da Mata Machado, reportagem biográfica”, de Samarone Lima (Mazza Edições, 1998), e no longa-metragem homônimo do cineasta Rafael Conde, em 2023.
Os restos mortais de Gildo Lacerda jamais foram encontrados. Ele é um dos 362 desaparecidos no Brasil, durante a ditadura militar, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
A trajetória da advogada Mércia Albuquerque é o tema da peça “Lady Tempestade”, monólogo com a atriz Andrea Beltrão, com direção de Yara de Novas e dramaturgia de Silvia Gómez, está em cartaz no teatro da FAAP, São Paulo, até cinco de outubro.
O escritor Samarone Lima está terminando uma nova edição do livro “Zé, com dezenas de novos depoimentos, em vários estados, e documentos obtidos junto à Comissão da Verdade e Memória Dom Helder Câmara, de Pernambuco.
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*Samarone Lima, 55 anos, é jornalista e poeta, com trabalhos voltados para os Direitos Humanos e memória. Entre seus principais livros estão “Zé”,”Clamor” e “estuário- crônicas do Recife.