Por Daniele Agapito

“10 – Uma mulher virtuosa, quem pode encontrá-la? Superior ao das pérolas é o seu valor.
11 – Confia nela o coração de seu marido, e jamais lhe faltará coisa alguma.”
— Provérbios 31:10–11

Guiado pela passagem bíblica de Provérbios 31, o filme “Virtuosas”, de Cíntia Bittar, revisita o texto sagrado do Antigo Testamento para expor uma ideia de feminilidade profundamente enraizada no protestantismo. O chamado “elogio à mulher virtuosa”, atribuído ao rei Salomão, descreve uma mulher que se levanta de noite para alimentar a casa, negligenciando o próprio sono, distribui ordens às servas, planta vinha, costura vestes de linho fino e púrpura, vende e adquire propriedades, estende os braços aos infelizes e é temente a Deus, enquanto o marido é honrado diante dos juízes por causa dela. Uma jornada exaustiva.

É justamente esse discurso do rei Salomão, anterior em séculos ao nascimento de Cristo, que as correntes neopentecostais e grupos moralistas contemporâneos mais exaltam. Por quê?

Como explica o teólogo e historiador Dr. Jansen Racco, o Antigo Testamento não prega as palavras de Cristo, mas é nele que se busca a legitimação de papéis femininos restritos e domesticados, usados politicamente como norma de conduta e pureza. Cristo, aquele do Novo Testamento, soa “comunista demais” para as ovelhas seduzidas pela teologia da prosperidade e suas barganhas com alguns pastores.

Bittar, na ânsia de fraturar a costela de Adão, desloca esse ideal “virtuoso” para um terreno cinematográfico de aparente docilidade que logo se revela uma distopia da fé e do papel da mulher na sociedade contemporânea. No filme, as personagens principais misturam um pouco do discurso do rei Salomão com o imaginário publicitário das gravatas Van Heusen dos anos 1950 e 1960, e outras invencionices.

Foto: Reprodução

“Virtuosas” também dialoga com um fenômeno internacional que se espalhou pelo TikTok: o das tradwives (traditional wives), mulheres, em sua maioria da geração Z, que celebram a obediência ao marido, fazem tortas decoradas com glacê e usam laquê suficiente para erguer o cabelo e a ilusão de um lar perfeito.

No filme, a estética virtuosa e os discursos antifeministas das protagonistas servem de ponto de partida para acompanhar um grupo de mulheres em um retiro neopentecostal, liderado por Virgínia (Bruna Linzmeyer). Uma homenagem à nova rainha da Grande Rio? Talvez. Mas a Virgínia de Bittar transforma o retiro em um pesadelo coletivo, onde fé, política, secreção vaginal, negacionismo, manipulação e desejos sáficos reprimidos se misturam em uma espiral de delírio e violência entre mulheres.

Em conversa com o Cine Ninja durante a Mostra de Cinema em SP, a diretora afirmou não ver problema em tecer tapetes, aprender a fazer pão, costurar ou passar noites em claro para poupar o sono do marido. O problema, segundo ela, está em transformar esses valores do rei Salomão e o saudosismo do comportamento feminino dos anos 1950 em plataforma política, legitimando movimentos antivacina, intolerância religiosa, distorções das ideias de Cristo ou levantes antidemocráticos sob a justificativa de uma vontade — ou fetiche — pessoal e intransferível.

“Virtuosas” foi o filme vencedor do Prêmio Netflix na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.