Por Felipe Mesquita

São sete anos como drag king e dois como drag queen. Puri Matsumoto encontrou na arte do transformismo um meio para dar vazão à sua criatividade como figurinista e, ao mesmo tempo, brincar com a performatividade de gênero. O drag king Vicente Van Goth é descrito como engenheiro em transformismo com especialização em gambiarra, além de ser amarrador de corações e ídolo profissional. Já Zara Tustra se auto intitula profeta do caos, mística sem deus e sacerdotisa do “desgraçado feminino”. Puri considera a coexistência das duas personas um instrumento de fortalecimento para ele: “Essa reunião dos dois no meu corpo me dá muita força como artista e também como pessoa não-binária, para sair por aí existindo e performando vários gêneros ou nenhum”.

Em junho, Vicente foi o primeiro king finalista do Drag Star, renomado concurso da cena drag carioca que está em sua 10ª edição. Os seis meses de competição foram exaustivos para o artista. Além do cansaço físico, ele sentia, a cada etapa, uma pressão a mais para se manter no concurso. “Eu tenho a sensação de que eu sempre levava para o palco mais do que eu precisava”, conta sobre a sua percepção como drag king dentro da competição.

Essas questões reverberam não só no concurso, mas também no meio drag, onde os kings sofrem com a invisibilização e encontram maiores dificuldades para conseguir trabalho. “É muita gente elogiando e pouca gente incluindo os drag kings na cena”, comenta Puri a respeito dos obstáculos que enfrenta na profissão. “É uma cena que, para king, ou a gente cria o nosso rolê ou nada vai acontecer.”

No Artista Foda desta semana, conversamos com a artista por trás de Vicente Van Goth e Zara Tustra.

Como nasceu Vincent Van Goth?

Eu comecei a me montar de king oficialmente em 2017 com Vicente, mas eu digo que ele nasceu um pouco mais cedo, em 2015 durante uma viagem minha para o Japão. Eu fui assistir um espetáculo do Takarazuka que é uma trupe de teatro de revista só de mulheres. Todos os personagens são feitos por mulheres, inclusive, os masculinos e elas têm lá uma escola de formação para que se aprenda a fazer tantos personagens femininas quanto os masculinos. Eu peguei um ingresso para ficar lá no fundo do teatro em pé por três horas assistindo um espetáculo em japonês. Eu entendo pouquíssimo de japonês e eu fiquei presa completamente de ver aquelas mulheres. Não só só as atrizes eram todas mulheres, mas também todo mundo que estava em posição de destaque naquela produção era mulher: a diretora, a orquestra. Eu acho que foi o meu primeiro contato mais próximo com essa performance do masculino. Tem gente que não gosta de chamar o Takarazuka de drag king, porque vê fora da cena drag, né? Não é uma coisa que tá dentro da cena drag. Mas eu sou muito mais abrangente nesse conceito, então eu acho que qualquer performance masculina é drag king, e foi a primeira vez que eu vi drag kings na minha frente fazendo um espetáculo belíssimo e eu falei: “Eu quero ser isso”.

Foto: Anderson Rangel

Anos depois, como eu não via drag king, na cena do Rio especialmente, eu comecei a montar meus amigos que estavam fazendo drag queen. Vai participar de concurso e eu tô ajudando com maquiagem porque eu sou figurinista, então eu tô fazendo roupa. Um dos meus amigos se inscreveu no Rival Rebolado, que é um concurso que começou em 2016. Esse meu amigo foi e eu fiquei ali encantado com aquele ambiente de drag, né? Acho que era a primeira vez que eu entrava no ambiente drag de verdade, mas não via kings. Eu fiquei nessa de ficar incomodado tipo “Será que eu devo fazer? Será que eu posso fazer? Será que isso é uma coisa que me é permitida fazer? Porque eu não vejo ninguém fazendo, pelo menos não na minha cidade, né?” E eu falei: “Dane-se. Eu vou fazer!” E aí eu comecei a fazer em 2017, em uma outra edição do Rival Rebolado. Na primeira edição que eu participei, foi a primeira vez que eu montei de king, então foi uma coisa super iniciante só para ver qual era, eu nem segui na competição, mas na próxima temporada, eu fui finalista e eu fui o único king finalista. E isso se repetiu agora em 2024, porque eu acho que fui o único king finalista do Drag Star.

E Zara Tustra?

A Zara nasceu bem depois do Vicente. Vicente em 2017 e a Zara foi em 2022. Assim, eu lembro que quando comecei a fazer king eu pensei “Pô, legal que tem gente AFAB (assigned female at birth – designada mulher no nascimento) que faz drag queen, acho muito maneiro, mas eu nunca faria porque dá muito trabalho. Já performei feminilidade a minha vida inteira, eu não aguento mais, eu não vou fazer isso nunca”. Só que assim, teve a pandemia, e a pandemia me colocou muito em contato com o que eu chamo de desgraçado feminino, porque a Zara Tustra ela se auto intitula profeta do caos, mística sem deus e sacerdotisa do desgraçado feminino, então eu quis pegar essa performance da feminilidade no desgraçamento.

Foto: Ira Barillo

A primeira vez que eu me montei de Zara era uma roupa toda vermelha de freira com uns fios de algodão com trabalho de macramê que eu fiz. Era uma coisa que parecia que ela estava toda em carne viva. Eu botei um trecho da entrevista da Hilda Hilst que me inspira muito. Eu vejo a Zara como essa feminilidade desgraçada que eu pude resgatar e olhar de frente depois de muitas transformações que aconteceram na minha vida.

Como é para você a experiência de fazer drag king e drag queen?

Eu acho incrível! Eu performo muito em cabaré, porque eu venho do burlesco, e a gente geralmente traz dois números por artista. No primeiro ato o artista faz um número e no segundo faz outro. Eu geralmente levo um da Zara e um do Vicente.É um trabalho do caralho, porque eu tenho que trocar maquiagem na maioria das vezes, ou então ver uma maquiagem que eu consiga adaptar para um e para outro, mas eu gosto de trazer o meu corpo habitando essas duas personas. É muito divertido brincar com a performatividade de cada traço do que é considerado feminino, do que é considerado masculino. Deixar bem claro o que é o que e depois borrar tudo. Essa reunião dos dois no meu corpo me dá muita força como artista e também como pessoa não-binária, para sair por aí existindo e performando vários gêneros ou nenhum.

Você cria seus figurinos e as coisas engenhosas das suas performances. De onde vem isso?

Eu já trabalhei como figurinista de teatro, eu fiz faculdade de moda. Não cheguei a me formar, mas eu fiz mais da metade da faculdade. Era uma coisa que eu sempre gostei de trabalhar. Foi um casamento muito perfeito começar a fazer drag para dar vazão à minha criação, porque eu sabia que eu não ia trabalhar no mercado de moda, porque não é o que eu gosto de fazer. Eu vi isso na faculdade, inclusive, que não era isso que eu queria fazer da minha vida. Nem teatro, apesar de eu amar figurino de teatro. Eu acho maravilhoso, mas também não é tanto meu foco.

Foto: Anderson Rangel

Eu costumo dizer que eu sou engenheiro em transformismo com especialização em gambiarra, porque eu gosto de trabalhar a roupa junto com a performance. Eu começo a minha performance pelo figurino. Não porque eu quero estar “ai, como eu vou estar lindo ali, montado e maravilhoso”. Mas sim entender como esse figurino vai contar uma história. Isso fala muito com o burlesco também. O burlesco me trouxe isso. No caso do burlesco, despir a roupa conta uma história. Eu gosto de fazer performance em que sai tudo da minha roupa, em que minha roupa vira tudo. Eu não trabalho com cenário. Raramente eu vou trabalhar com cenário. Eu como drag me vejo como um corpo que é uma obra de arte, mas não uma obra de arte estática. Eu me vejo como uma obra de arte em movimento e se transformando.

Na sua última performance do Drag Star você trouxe a figura de Vincent Van Gogh e de Joana D’Arc e também falou sobre a loucura como uma força transformadora. Qual foi sua inspiração para criar a performance da final do Drag Star? Que mensagem você queria passar com ela?

Essa performance, de todas que eu fiz, foi a mais próxima de mim, porque eu tenho transtorno bipolar e, ainda que eu esteja estável há um bom tempo, eu convivo com essas mudanças e com esses episódios. Ao longo dos anos, depois de descobrir o diagnóstico, fazer terapia, tratar com psiquiatra, eu fui descobrindo que existe potência na minha neurodivergência. Eu falo isso com muito cuidado, porque não quero parecer que eu estou glamourizando um transtorno mental, não é isso. Eu quis trazer através tanto do Van Gogh quanto da Joana D’Arc, que são pessoas historicamente neurodivergentes, essas coisas que só o louco é capaz de fazer. No caso dele, ser o maior pintor da história da humanidade, e, no caso dela, salvar a França na Guerra dos Cem Anos.

Eu trouxe ainda pequenas coisas que também são muito importantes para mim, como Joana D’Arc. Ela teve várias condenações, quando ela foi sentenciada a fogueira, mas as principais e que de fato fizeram ela ser sentenciada foram duas: ouvir vozes e se vestir de homem. São duas coisas que me são muito próximas, né? A loucura e o transformismo ou sei lá, o crossdressing. Você se vestir de alguma coisa que a sociedade fala “Não, você não pode fazer isso”. E aí eu uni os dois com o símbolo do girassol, que é o símbolo da neurodivergência. Os dois carregando essa bandeira. Eu quis trazer também o lado masculino, que é o do Van Gogh, como algo mais suave, mais poético, mais lírico e o lado feminino, que é o da Joana, como algo mais colérico, mais forte, mais violento mesmo, no sentido positivo da violência. Eu tenho muito orgulho dessa performance e fico muito feliz que ela foi para o mundo do jeito que foi.

Foto: Carol Pires

Em suas redes sociais e no discurso da final do Drag Star, você mencionou um sentimento agridoce em relação ao fim do concurso. O que seria esse sentimento?

Depois daquela final, eu fiquei alguns dias com esse gosto agridoce na boca. Foi muito estranho viver aquilo. Primeiro, foram seis meses e eu tinha a sensação de que a cada etapa, eu tinha que me esforçar muito, senão eu podia sair. Eu tenho a sensação de que eu sempre levava para o palco mais do que eu precisava, e na maioria das vezes eu fiz tudo sozinha. Felizmente na semifinal e na final eu tive uma equipe me ajudando e participando comigo, mas figurino foi tudo eu que fiz sozinha, concepção de tudo e tal. Então era uma exaustão absurda, e era além da exaustão física, era uma exaustão de “eu tenho que mostrar que eu sou boa” e o mostrar que eu sou boa é: se uma drag queen está aqui, eu tenho que estar aqui, sabe? Eu tenho que ir acima. Para a final eu fui com essa mentalidade também, mas eu fui muito sincera, eu fui muito honesta com o que eu queria dizer. Eu mostrei o que eu queria mostrar do meu íntimo. E aí foi uma sensação de “ainda assim, eu não cheguei lá. O que que precisa?” Assim, com todo respeito a todas as minhas concorrentes, com respeito ao primeiro e segundo lugar. São maravilhosas. Eu costumo dizer que se eu tivesse perdido para drag ruim, eu ia ficar muito mais puta. Ainda bem que elas são boas. Mas, sinceramente, era uma sensação de “aqui eu não chego”. “Não vão me deixar chegar aqui. Isso aqui eu não consigo. Não tem o que eu possa fazer que eu vá conseguir chegar aqui.”

Isso reverbera não só no concurso como no meio drag mesmo. De ter trabalho, de chamarem para trabalhar. Se chamam, sempre fica uma sensação de que você tá abrindo um show para drag queen, que você é tipo café com leite, algo como “tô fazendo uma representatividade aqui rapidinho”. É muita gente elogiando e pouca gente incluindo os drag kings na cena. Então é uma cena que, para king, ou a gente cria o nosso rolê ou nada vai acontecer.

Foto: Juliana Bizzo

Quais próximos passos podemos esperar de Vicente Van Goth e Zara Tustra?

Eu tenho expectativa de continuar fazendo o que eu sempre fiz, que é fazer cabaré burlesco e, ainda tá muito na fase inicial, mas talvez haja um show de drag teatro meu e da minha família drag. Estamos ainda planejando isso, e espero que role ainda esse ano.