Verdejar: a promoção da agroecologia nas favelas do subúrbio carioca
Em 2022 a ONG Verdejar Socioambiental completará 25 anos desenvolvendo ações de agroecologia nas favelas da Serra da Misericórdia, no Rio
Em setembro de 2022 a ONG Verdejar Socioambiental completará 25 anos desenvolvendo ações de agroecologia nas favelas da Serra da Misericórdia, no subúrbio carioca. Dentre as iniciativas, são realizadas hortas comunitárias, viveiros de mudas, canteiros de plantas medicinais, tecnologias sociais, saneamento ecológico e muitas outras, além de ações culturais e de comunicação. Durante a pandemia, a organização passou a partilhar cestas de alimentos saudáveis da agricultura familiar e realizar acolhimento a mulheres e crianças. Essa é mais uma experiência identificada pela Agroecologia nos Municípios, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A Verdejar nasceu a partir da potência de moradoras/es da favela, da articulação com redes e parcerias pela visibilidade da Serra da Misericórdia como patrimônio ambiental e da luta pelo Parque Ecológico. Através de realizações de saneamento ecológico, agroecologia, produção cultural, gestão ecológica de resíduos, permacultura, de moradores e rede de parcerias se uniram para pensar e trazer possibilidades de sustentabilidade comunitária local em um território tão violentado, com exceção de direitos, visando autonomia financeira e valorização de saberes e práticas locais.
“Queremos nos alimentar de comida de verdade, mas também de afeto, respeito, dignidade, solidariedade, amor etc. Nada disso seria possível sem as articulações de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) e da Rede Carioca de Agricultura Urbana”, explicou Marcelle Felippe, da coordenação da Verdejar.
Para comemorar um quarto de século, a entidade fará em breve uma campanha visando arrecadar recursos para uma nova sede, feita à base da bioconstrução, com espaços de formação, produção e beneficiamento de alimentos na favela. “Queremos criar o Centro de Educação e Práticas Agroecológicas Luiz Poeta, para que a juventude e outros moradoras/es possam ser educadoras/es no território. Desejamos proporcionar vivências de manejo de agroecologia, agroflorestas etc. O nosso sonho é que esse seja um espaço de sustentabilidade, onde seja feito beneficiamento dos alimentos, realizadas feiras, onde se possa cuidar da serra. Esperamos que haja o retorno das visitações das escolas. Esse é, o nosso sonhado território agroecológico para fazer enfrentamento, para provocar um outro olhar sobre a serra, em meio a uma zona norte tão violentada, “entre balas e fumaças”, disse Marcelle.
Atualmente, a Verdejar está com alguns projetos em andamento e conta com bolsistas e apoiadores. Dentre as iniciativas, há o projeto Tecnologias sociais em Saúde na Bacia Hidrográfica do Canal do Cunha, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz, que busca criar formas inovadoras de conceber e implementar o saneamento em áreas de favelas. Visa melhorar a qualidade de vida das pessoas e preservar e recuperar nascentes de rios situadas na Serra da Misericórdia no canal do Cunha, construindo bacias de evapotranspiração e filtro biológico na região.
Na pandemia, foram criadas, a partir da parceria com a ONG AS-PTA, ações de partilha de alimentos com doações próprias e outras arrecadadas de campanhas coletivas, para famílias em estado de vulnerabilidade. Fruto desse processo, surgiu o projeto Agroecologia Cultivando Saúde e Bem Viver nas Favelas, edital da Fiocruz – Covid nas favelas. Esta realização contou com a contratação de duas articuladoras territoriais e seis jovens de cinco favelas locais. Busca fortalecer a resiliência da favela frente às vulnerabilidades socioambientais e sanitárias agravadas pela Covid-19, ampliando ações desenvolvidas antes e durante a pandemia no Complexo de Favelas do Alemão.
Dentre as ações previstas no projeto, estão instalações pedagógicas itinerantes, localizadas em pontos estratégicos das favelas, como comércio, associações, postos de saúde, escolas etc, divulgação de informações científicas (Plataformas MonitoraCovid-19 – Icict/Fiocruz, e portal Voz das Comunidades) e distribuição de três tipos de cestas para famílias em situação de vulnerabilidade: Agroecológicas (alimentos), cuidar-se (artigos de autocuidado e proteção femininos viabilizados pelo GT Mulheres da AARJ) e Curumin (materiais ecológicos e atividades lúdicas para crianças sobre e cuidados na pandemia).
A expectativa é fortalecer as parcerias e trazer a pauta da agricultura urbana e da agroecologia, segundo Marcelle Felippe, de modo a criar conexões e semear a Agroecologia em outros pontos da Serra da Misericórdia. Nesse processo de realização do projeto, também serão fortalecidas hortas comunitárias e residenciais, construção de três cisternas para captação de água da chuva e das nascentes para abastecimento da comunidade e para irrigação das hortas e agroflorestas.
Uma das integrantes do projeto, Rosane Barbosa Miranda, conhecida como Negra Rô, 45 anos, explicou que serão realizadas ações emergenciais, estruturantes e de comunicação com a distribuição desses três tipos de cestas realizadas pelos e para os moradores. O projeto fortalece a resiliência frente às vulnerabilidades socioambientais em cinco comunidades: Matinha, Maraka, Reservatório, Alvorada e Sérgio Silva.
“Nas instalações pedagógicas, os jovens têm realizado dinâmicas e oficinas, como stand up e poesia marginal, e feito distribuição de kits saúde, por exemplo. E tem as ações estruturais, como o fortalecimento da horta-mãe para gerar mudas e insumos para mais quatro hortas nesses territórios, levando agroecologia a outras instituições que tratam temas diversos, como cultura popular, direitos humanos e indígenas. O desejo é dar continuidade a essas cestas, levar alimentação saudável aos moradores da região, fortalecer e voltar a nossa feira agroecológica e também beneficia alimentos”, destacou Rosane.
De acordo com Mariana Portilho, assessora técnica da AS-PTA que acompanha o projeto Agroecologia cultivando saúde e bem viver nas favelas, a iniciativa nasceu de forma coletiva com a Verdejar por meio da chamada pública para Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à Covid-9 nas Favelas do Rio de Janeiro. A aprovação do projeto, segundo ela, é muito significativa pois estreita os laços entre as duas entidades. “Esse projeto veio para fortalecer as ações já desenvolvidas no território e que, por dificuldades financeiras, não conseguiam se consolidar. Não é algo fora da realidade das pessoas, mas tem a cara da comunidade”, afirmou.
Histórico da entidade
Fruto do sonho do pioneiro Luiz Poeta, a Verdejar Socioambiental é resultado do encontro do ativista local com moradores da Serra da Misericórdia, que já faziam trabalho de limpeza, coleta de lixo e plantação de mudas na floresta. Tudo começou quando ele vinha de bicicleta da Fazendinha, uma favela no Complexo do Alemão, para se encontrar com representantes do que viria a ser uma organização comunitária pela preservação e visibilidade desse vasto território de mata atlântica na zona norte do Rio. No início da década de 1990, começou a lutar pelos direitos socioambientais da favela, e reivindicar que a área fosse reconhecida como patrimônio ecológico ambiental para o bem viver dos moradores, a partir das práticas e saberes da agroecologia nessa integração favela-floresta sem muros.
Poeta faleceu em 2011, ainda jovem, mas deixou um vasto legado de conscientização ambiental. A Verdejar nasceu informalmente na comunidade Sérgio Silva, no Engenho da Rainha, onde foi realizada a primeira reunião e construída, em 1997, sua sede em cima da trilha. O local se tornou uma agrofloresta com plantas nativas e contribuiu para diversos projetos. Desde 2000 foi instituída uma Área de Preservação Ambiental e Recuperação Urbana (Aparu) no entorno, graças à mobilização desse coletivo, mas a proposta de criação de um Parque Socioambiental nunca foi acolhida pelos poderes públicos, devido ao interesse de mineradoras e outros setores do mercado no local.
A horta comunitária tem produzido, desde o início, alimentos sem venenos e serve de espaço de troca de conhecimentos a partir de cursos, vivências, mutirões, intercâmbios etc. São desenvolvidas também tecnologias sociais da agroecologia visando à autonomia da favela, como bioconstrução, captação da água de chuva, gestão de resíduos orgânicos para compostagem, entre outras. A primeira sede modelo e totalmente sustentável do projeto era em Olaria, no morro da Esperança, mas foi fechada devido a disputas territoriais, assim como a sede no pé da serra graças à distribuidora de energia no estado. Passaram então para uma casa na favela Sergio Silva, que também foi fechada devido a conflitos locais por insegurança. Desde 2014, desenvolvem projetos via editais e consultorias com apoio de entidades parceiras.
A Serra da Misericórdia tem cerca de 43,9 km² no subúrbio carioca, está em 27 bairros, dentre eles o Complexo do Alemão. Contém na sua biodiversidade os principais corpos hídricos da Baía de Guanabara. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE-1996), vivem 897.797 habitantes na região,. Há também no território uma significativa ocupação industrial, como a exploração mineral predatória de várias empresas. Para se ter uma ideia,existem mais de 15 pedreiras desativadas na região. O processo de degradação ambiental foi acelerado nas últimas décadas.
Projetos socioculturais
Graças ao edital da Secretaria de Cultura do Município, direcionado a “Ações Locais”, foram realizadas diversas oficinas comunitárias, a partir de 2014, para o desenvolvimento de tecnologia e capacitação dos moradores. Nesse período, foi criado o Ponto de Cultura Luiz Poeta da Serra da Misericórdia, que promoveu ciclos de formação de audiovisual trabalhando a memória e a identidade da comunidade. Foram realizados também teatros e outras atividades em parceria com o Canal Saúde da Fiocruz, que gerou o documentário Olhares da Serra da Misericórdia, a Serra que atravessa gerações e a peça Vamos Verdejar, produzidos e escritos pelas juventudes, contando uma versão fictícia da história da entidade. Também no Ponto de Cultural houve o evento Sentido, saberes e sabores da Serra da Misericórdia, com a realização de instalação pedagógica, com circuito sensorial apresentando a agroecologia, degustação de alimentos e cultivo de plantas medicinais locais.
Nesse processo, surgiu o coletivo de jovens Pega a Visão, que faz a comunicação comunitária e popular da entidade e da região. Esse coletivo e o Ponto de Cultura visiblizaram a agrobiodiversidade local, as trilhas , culturas das favelas da Serra da Misericórdia A horta cultivada pela organização Verdejar é a primeira horta comunitária e agrofloresta de favela no Rio a ser certificada pelos Sistemas Participativos de Garantia (SPG) dos Orgânicos. Foi realizada pela Verdejar uma pesquisa na comunidade para saber como as pessoas se alimentavam e usavam as plantas medicinais, que resultou na criação da Feira Agroecológica e da Saúde na favela Sergio Silva. Na feira, as agricultoras locais e integrantes da Rede Fitovida, que são agentes do conhecimento tradicional e do uso e cultivo das plantas medicinais, vendem seus alimentos e realizam ciclos de cuidados de terapia e medicinais ancestrais e populares. Em paralelo, surgiu o Mandalla Verde, um grupo de mulheres da Serra da Misericórdia e entorno, que se une para gerar renda, produzir sabonetes, oleatos, tinturas e outros produtos utilizando ervas medicinais plantadas na própria comunidade.