Foto: Quimy de León / Prensa Comunitaria

Por Vanessa Oliveira

Jornalistas e observadores internacionais foram ameaçados, presos e/ou coagidos. Militantes e líderes do partido Movimiento al Socialismo tinham planos de fuga já traçados, caso a direita tentasse novo atentado contra a democracia. O que aconteceu no dia 18 de outubro foi muito mais do que uma eleição presidencial; foi uma resposta do povo boliviano à tirania, um marco na luta latino-americana contra o fascismo do século XXI.

Há mais ou menos três semanas, fui convidada para representar a Mídia Ninja na missão de observação e acompanhamento eleitoral internacional indígena, organizada por instituições latino-americanas. Esse duplo encargo, cobertura e trabalho de observação, tinha um único objetivo: avaliar a saúde da democracia boliviana e relatar o processo eleitoral a autoridades internacionais, meios de comunicação e, claro, órgãos eleitorais bolivianos.

Na primeira reunião, busquei mais informações sobre como poderia acontecer essa cobertura. Eu não era a única jornalista no grupo e havia grande interesse da missão de que nossos passos fossem documentados e divulgados. Mas na tarde do dia 15 de outubro, três dias antes do pleito, um tuíte do ministro de Governo (cargo equivalente ao ministro chefe da Casa Civil, no Brasil) ameaçou descaradamente os observadores e observadoras que já estavam ou que chegariam ao país: “Nossas eleições serão uma festa democrática, quanto mais observadores internacionais estiverem aqui, melhor para todos. Advertimos aos agitadores e às pessoas que buscam incitar a violência que não são bem-vindos. Vamos colocá-los em um avião ou entre as grades. Comportem-se, sabemos quem vocês são e onde estão.”

Reunião de emergência da missão e uma avaliação profunda dos cenários possíveis. Notícias de prisões de jornalistas e credenciados para a acompanhar o pleito, além de intimidações, começaram a chegar. Decidimos em conjunto evitar uma cobertura assinada, reduzimos nossas publicações pessoais. A maior preocupação era que nosso posicionamento político (por mais brando que fosse) servisse de argumento para a invalidação completa do relatório de observação que entregaríamos ao Supremo Tribunal Eleitoral da Bolívia.

Não era um receio descabido, dada a violência institucional do golpe de 2019 que, sob a sombra dos tanques e o olhar cúmplice da Organização dos Estados Americanos, retirou do poder o presidente reeleito Evo Morales. A desculpa para a subversão da ordem democrática (sempre tem uma desculpa, seja pedalada fiscal ou corrupção) foram acusações de fraude da direita derrotada, imediatamente acatadas pela OEA, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, por Brasília. Posteriormente, a suspeita de manipulação do resultado por parte do MAS (Movimiento al Socialismo, partido de Morales) foi invalidada por um estudo independente ratificado pelo New York Times. Mas o estrago já estava feito: a cadeira presidencial era ocupada pela vice-presidenta da Câmara, Jeanine Áñez, e a violência racista contra a população indígena, instaurada.

Diante desse cenário de tensão, com traços distópicos agravados pela pandemia de coronavírus, mais do que reportar, nos concentramos em ouvir cidadãos comuns e membros de movimentos sociais que sofreram perseguição, arbitrariedades, agressões e prisões injustas desde novembro de 2019. Pleito passado, democracia restaurada com a vitória em primeiro turno de Luis Arce (MAS), vou usar este espaço para contar, ao longo dos próximos dias, um pouco do que vi, ouvi e vivi nas andanças entre La Paz e Santa Cruz de la Sierra. E vou fazê-lo no tempo da reflexão. Se houve uma vantagem na impossibilidade de reportar in loco foi me ver livre da costumeira pressa jornalística que, via de regra, faz com que nos percamos nos labirintos da conjuntura.

A Bolívia sofreu mais de 190 golpes de Estado só no século XX. Ou seja, 10 de novembro do ano passado reacendeu memórias sombrias. Um certo liberalismo de esquerda justificou tacitamente o golpe sob o argumento institucionalista de que a segunda reeleição de Evo Morales era inconstitucional. Não é um argumento de todo descartável: de fato, o primeiro presidente indígena da história boliviana submeteu a possibilidade de um novo mandato a referendo em 2016 – e perdeu. A decisão popular foi posteriormente revertida pelo Tribunal Constitucional Plurinacional, que garantiu a Morales o direito de concorrer.

As eleições foram legitimadas, inclusive pela direita, que apresentou três candidatos para o pleito. Quem chegou mais perto foi Carlos Mesa, que depois perderia para Luis Arce. Chi Hyun Chung e Óscar Ortiz ocuparam, respectivamente, distantes terceiro e quarto lugares. Se a motivação central para o golpe tivesse sido a falta de legitimidade constitucional da disputa, a direita teria simplesmente boicotado o pleito e denunciado a usurpação à comunidade internacional. Houve ainda uma segunda chance de a direita tentar o poder pela via eleitoral, quando Morales, pressionado pelos protestos, pela violência das ruas, pelo exército e pela frieza da comunidade internacional, aceitou convocar novas eleições. Mas, consciente da inviabilidade eleitoral de seu projeto antipopular, a oposição se aferrou à via golpista.

Por trás do golpe, existem fatores mais complexos do que a possível – e até provável – inconstitucionalidade do terceiro mandato: o reconhecimento da plurinacionalidade boliviana, os direitos constitucionais da natureza, as nacionalizações de recursos estratégicos e claro, o interesse de outros países e de grandes capitalistas no lítio e no gás natural bolivianos, transformados, sob o MAS, em riqueza soberana do povo boliviano. O empresário Elon Musk, CEO da Tesla, por exemplo, após ser questionado sobre sua possível relação com a renúncia de Morales no dia 10 de novembro afirmou: “Vamos dar golpe em quem quisermos”, causando uma enorme polêmica e enfurecendo não apenas a população boliviana, mas toda a América Latina.

Amparada complacência imperial, a oposição de Santa Cruz saiu do armário com força. Por todo o país, a Unión Juvenil Cruzeñista (grupo abertamente fascista de onde saiu Luis Fernando Camacho, uma das principais lideranças golpistas e candidato às eleições de 2020) e organizações aliadas promoveram terror. A bandeira plurinacional wiphala foi queimada em diversas cidades – inclusive no palácio presidencial, onde o próprio Camacho proclamou de Bíblia em riste que Bolívia pertence a Cristo e prometeu: a mãe terra indígena, a Pachamama, nunca retornará ao poder. Também foram incendiados tribunais eleitorais regionais, casas de militantes, políticos e inclusive de familiares de Evo Morales. Quadros importantes do MAS foram perseguidos e agredidos, como no caso emblemático da então prefeita de Vinto e agora senadora eleita, Patrícia Arce, que foi violentamente arrancada do prédio da prefeitura no dia 6 de novembro de 2019. Arrastada pelas ruas e coberta com tinta vermelha, Arce teve os cabelos cortados enquanto, sob insultos, foi obrigada a caminhar descalça por sete quilômetros pelas ruas da cidade.

Tudo isso era um prenúncio do que viria. Logo depois do golpe, as humilhações, perseguições e ameaças degringolaram em massacres. Em 15 de novembro, forças de segurança promoveram um ataque cruel e racista em Sacaba, Cochabamba. Quatro dias depois, em Senkata, na região de La Paz, a brutalidade se repetiu. Mais de 20 pessoas morreram, dezenas ficaram feridas e o trauma segue calando fundo no interior dessas comunidades. Eu conversei com as vítimas e sobreviventes e vi a dor se transformar em luta popular democrática, dois dias antes das eleições. As vozes delas dão vida ao próximo texto dessa série.

Vanessa é jornalista, cubanista, host do podcast FRONTeiras e professora de comunicação. É Doutora em Ciências Sociais e Humanas pelas universidades Paris VIII Vincennes – Saint-Denis e pela UFABC e Mestra em Estudos Latino-americanos pelo Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine, da Universidade Sorbonne-Nouvelle Paris III, na França. Em 2013, foi correspondente em Havana, Cuba, para Radio France Internationale, onde também trabalhou como repórter e apresentadora.

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