Por Daniele Agapito

Escrevo da varanda de um prédio com vista para a sede da PF em Brasília, poucos dias após a condenação de Bolsonaro. Não de caso pensado, apenas porque era o flat mais barato que encontrei no Plano Piloto. Mas essas e outras sincronicidades dos meus dias no Distrito Federal despertaram a vontade de fazer esse registro escrito: tudo parece girar em torno da mesma sombra, a Ditadura Militar.

Vista do meu flat na Asa Norte. Foto: Arquivo pessoal

11 de setembro, Bolsonaro foi condenado a 26 anos de prisão por tentativa de golpe de estado. Pela primeira vez, um ex-presidente é sentenciado por atentar contra a democracia.

12 de setembro, a 3 km do STF, O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, abre o Festival de Brasília. Uma revanche não orquestrada e histórica: o festival foi proibido entre 72 e 74 pela censura.

O Agente Secreto acompanha a fuga de Armando, sob o codinome de Marcelo, (Wagner Moura) para Recife, minha cidade natal. E fala de um passado mal passado. Sangrento. Diz muito sobre o presente também. Como pontuou Kléber na coletiva: “este é um filme sobre coisas que estão voltando.”

“O Brasil tem um trauma com a lei de anistia de 79 (…) É estranho, em 2025, ouvir novamente: anistia ampla e irrestrita. Parece que todos os estupros, sequestros e violências foram esquecidos.” — Kleber Mendonça Filho, debate no Cine Brasília, 13/09

Ele então fala das “palavras aposentadas que começaram a voltar nos últimos dez anos”: pessoas se autointitulando “de bem”, “patriotas”, entre outros slogans já conhecidos do vocabulário fascista. E não há exagero nisso. Aos cinéfilos, vale lembrar o clássico Um Dia Muito Especial (1977), que se abre com imagens do encontro entre Hitler e Mussolini em Roma, onde Ettore Scola registra esses jargões em diálogos engomadinhos, que caberiam facilmente na boca daquele primo mala da nova geração.

Outros assuntos que acabaram voltando, e que Kleber fez questão de pontuar, é a nova onda de hostilidade contra nordestinos. Isso eu confirmo em primeira pessoa, quase como uma agente secreta. Ou melhor, como uma pernambucana “assintomática” vivendo no Sul do país. 

Explico: Saí de Recife aos 17 anos para acompanhar meu pai numa transferência de trabalho em Curitiba. A recepção não foi calorosa. Alguns anos depois de instalada no Paraná, quando Dilma Rousseff foi afastada da Presidência da República, começou a onda do “O Sul é o meu País”: adesivos nos carros, cartazes pela rua, grupos no Facebook e até panfletos separatistas. Um deles recebi pessoalmente, das mãos de uma senhora simpática que interrompeu minha caminhada pelo parque Barigui. Não era um recado direto, ela nem imaginava que eu era pernambucana. De boca fechada, não dava pra notar. Afinal, “não pareço nordestina”, frase que ouvi inúmeras vezes como se fosse elogio. Logo eu, que sempre achei chique e de vanguarda nascer em Recife. E assim, seguia ouvindo ofensas sem pudor, como se não me dissessem respeito. “Temos que separar o país e deixar esse povo tocando sanfona pra lá”, dizia a avó do meu ex-namorado na minha cara. 

Campanha Publicitária do Movimento “O Sul é Meu País” – viral por péssima diagramação e gosto duvidoso. Foto: Reprodução

Noutra ocasião, em São Paulo, já com meu DRT de atriz, pedi a uma agência para me apresentar em projetos na minha cidade natal. Ouvi: “você não vende uma pernambucana.”

Vendendo ou não vendendo, fato é que O Agente Secreto mexeu com símbolos e flashes da minha memória, e também da memória coletiva da cidade, sempre com suas antenas voltadas para o mundo: o carnaval ao som das orquestras de frevo, a brincadeira da La Ursa, o medo do tubarão, a lenda da Perna Cabeluda, alguém que lembra voinho, um ou outro estrangeiro, a cacofonia de sons do centro, poetas marginais, pastores de rua e músicas americanas ecoando nos pilotis dos prédios, como nas festinhas anos 70 organizadas pelos amigos dos meus pais. “I love to love you, baby”. Donna Summer, por que não? Kleber não é um purista. Eu, tampouco. 

No fim da coletiva, arrisquei dizer algumas palavras ao diretor nos corredores do Cine Brasília, mas o que saiu foi apenas: “sou sua conterrânea”. Ele arregalou os olhos diante do meu desmantelo e da aleatoriedade da cena, mas foi a forma que encontrei de expressar que me reconheci naquela ficção, tanto pela origem compartilhada quanto pelo reconhecimento da ferida ainda aberta da Ditadura Militar. Nasci em 1988, já em um país livre. Oficialmente, a ditadura havia acabado em 1985.

“Em um país com tendências antidemocráticas, é preciso relembrar sempre o óbvio.” — Kleber Mendonça Filho, debate no Cine Brasília, 13/09

Por fim, e sem querer dar muito spoiler, aviso que a direção de arte de Talles Junqueira é um escândalo, a trilha sonora pede playlist no Spotify. E Wagner Moura não apareceu  no Festival porque ensaia Um Inimigo do Povo, de Ibsen. Está perdoado.

Coletiva de imprensa “O Agente Secreto”. Foto: Humberto Araújo
Daniele Agapito na sessão de abertura do Festival de Brasília com “O Agente Secreto”. Foto: Arquivo pessoal