Ilustração: Nature Jornal

Texto publicado originalmente por Sofia Belardinelli no site da Universidade de Padova.

A dieta desenvolvida pela comissão EAT Lancet, da revista científica The Lancet, publicada em 2019, propõe um modelo alimentar que protege tanto a saúde humana quanto a saúde ambiental, enquadrando-se assim plenamente na definição de “dieta sustentável” desenvolvida pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). A dieta proposta pela EAT Lancet também é pensada como universal: isto é, inclui uma série de características e critérios de escolha que – pelo menos em teoria – são transversais às diferenças econômicas, ambientais e culturais locais e, portanto, podem ser colocados em prática em todas as partes do mundo.

Um dos principais méritos que devem ser reconhecidos neste documento é, sem dúvida, o fato de ter indicado um caminho: o relatório da Comissão EAT Lancet fornece de fato uma solução viável e cientificamente correta para alimentar a crescente população mundial sem ultrapassar os constrangimentos planetários, como acontece hoje. A inovação, essencialmente, consiste em ter abordado a questão da necessária transformação dos sistemas alimentares com uma abordagem holística, capaz de unir – e, esperamos, resolver em conjunto – duas grandes questões da nossa era: a crise ambiental e a crise sanitária em curso hoje.

No entanto, a própria universalidade desta proposta suscitou inúmeras críticas: em primeiro lugar, a sua falta de aplicabilidade. Por outras palavras, foi destacado que é difícil adotar em larga escala a dieta sustentável desenvolvida pela comissão EAT Lancet precisamente devido à falta de atenção às complexas interações entre as dimensões globais e locais e à identificação de estratégias para harmonizar interesses, muitas vezes conflitantes, dos diferentes sistemas envolvidos.

Num artigo publicado na revista científica PNAS, um grupo intercontinental de investigadores destacou a necessidade de garantir que a transformação do atual sistema alimentar global seja realmente alcançável. Para que isso aconteça, é fundamental compreender as condições de possibilidade dos quatro níveis envolvidos: agrícola, econômico, social e cultural. Até agora – dizem os autores – a investigação sobre este tema tem prosseguido em níveis paralelos, numa compartimentalização que abrandou a mudança. Agora é o momento de colmatar estas lacunas e adotar uma abordagem verdadeiramente interdisciplinar, para que possamos preencher as lacunas que ainda existem.

Uma das deficiências da dieta recomendada pela Lancet consiste em não contextualizar adequadamente a dieta e os hábitos alimentares das pessoas. Um primeiro elemento a ter em devida consideração é, neste sentido, o contexto nacional ou regional no qual se formam os hábitos alimentares de indivíduos e de comunidades inteiras. Além disso, se forem examinados tanto o impacto ambiental como os custos em termos de saúde humana, é claro que estes dois parâmetros nem sempre coincidem: em vários casos, pelo contrário, uma dieta de maior qualidade corresponde a um maior nível de emissões. A questão é que não existe uma solução, mas há muitas que mudam dependendo de uma variedade de fatores externos concorrentes, desde o ambiente até às condições sociais.

Outro fator de grande importância é a dimensão econômica do sistema alimentar global. O crescimento econômico e a globalização – explicam os autores da investigação – contribuem conjuntamente para a “transição nutricional” e os padrões alimentares a ela associados.

Em vários países em desenvolvimento, por exemplo, com o avanço do crescimento econômico há uma tendência para abandonar antigas tradições culinárias, muitas vezes consideradas demasiado humildes ou obsoletas, em favor de um consumo crescente de proteínas animais. Isto não é um bom sinal, especialmente porque a mudança dos nossos hábitos alimentares no sentido de uma maior sustentabilidade pode representar um passo importante para a redução da pegada de carbono do sistema alimentar, tanto a curto como a longo prazo, e pode também contribuir significativamente para a redução de doenças não transmissíveis e, consequentemente, melhorar o estado da saúde humana à escala global. Certamente, para que isso aconteça devemos primeiro reconhecer que – como apontam os autores da pesquisa da PNAS – “não há dieta ou um sistema alimentar global, mas sim uma infinidade de sistemas alimentares locais e dietas individuais”. É por esta razão que, para tornar o sistema alimentar global sustentável, não podemos confiar nas escolhas dos cidadãos individuais, mas é necessário concentrar-nos nos aspectos ambientais, econômicos, de saúde e sociais de toda a cadeia de produção e consumo.

É então de primordial importância levar em consideração a dimensão política da administração dos sistemas alimentares. Com a globalização e a expansão das cadeias de abastecimento, produção e consumo, algumas grandes empresas multinacionais estabeleceram-se como intervenientes importantes na gestão dos sistemas alimentares globais. A tendência das grandes empresas do setor alimentar de privilegiar o lucro econômico levou a uma verdadeira revolução na produção e consumo de alimentos: por um lado, de facto, os pequenos produtores e as comunidades locais estão agora dependentes de tecnologias intensivas geridas por um oligopólio global (pense, por exemplo, na posição de grande poder das empresas que comercializam as sementes de alguns dos mais importantes culturas agrícolas e rentáveis ​​no mundo, como os cereais); por outro lado, a procura constante do lucro econômico tem favorecido a produção de alimentos de elevada intensidade energética mas pobres em nutrientes, cujo custo de produção é baixo e que, em muitos casos, criam dependência, garantindo assim o seu sucesso no mercado. As consequências destas escolhas na saúde da população mundial são agora evidentes: os alimentos mais saudáveis ​​do ponto de vista nutricional são menos acessíveis aos segmentos mais fracos da população do ponto de vista socioeconômico.

Para não ultrapassar alguns pontos críticos para a proteção da saúde humana e ambiental, é necessário realizar “uma redefinição cultural e econômica que vá além dos interesses locais, nacionais e regionais de curto prazo”, afirmam os investigadores. A responsabilidade pela melhoria do sistema alimentar global não pode pesar sobre os indivíduos: as grandes empresas que foram protagonistas na transformação deste setor devem ser chamadas a prestar contas pelas suas ações passadas e a assumir a responsabilidade pelo papel de liderança que desempenham hoje. É função da política colmatar a disparidade de poder entre os cidadãos e estes grandes intervenientes econômicos e, para o fazer, os governos devem reduzir as liberdades econômicas de que o setor privado gozou até agora, favorecendo, em vez disso, a proteção da saúde pública, tanto humana como ambiental.

Portanto, as reformas do sistema alimentar já não podem considerar a sustentabilidade ambiental e a saúde como externalidades econômicas (como tem sido o caso até agora), mas devem reconhecer estas áreas como condições de possibilidade e objetivos últimos do próprio sistema. Trata-se, antes de mais, de conseguir uma mudança de mentalidade: é necessário – afirmam os autores do estudo – chegar a acordo sobre um novo contrato social.

“As empresas têm o poder, os decisores públicos têm a responsabilidade, os cidadãos têm o direito de desfrutar de alimentos eticamente responsáveis ​​e economicamente acessíveis como um bem comum. – S. Biesbroek et al. (2023) Rumo a dietas saudáveis e sustentáveis para o século XXI: Importância das considerações socioculturais e económicas. PNAS 120, 26:e2219272120

“O sucesso do processamento de alimentos depende criticamente de mecanismos sociais para limitar o poder corporativo na medida em que este entre em conflito com o interesse público na saúde e no ambiente. Os cidadãos e as organizações privadas devem assumir a responsabilidade pelo ambiente e implementar hábitos, políticas e estratégias que melhorem o sistema alimentar. No entanto, é, antes de mais, responsabilidade dos governos liderar esta transformação, também através de organizações que impõem transparência aos intervenientes econômicos. Estes últimos, por sua vez, terão de responder pela criação de melhorias tangíveis na agricultura, nas cadeias de abastecimento, na frente da justiça, no acesso aos alimentos e no desenvolvimento de um ambiente alimentar saudável”.

O “novo contrato social” exige, portanto, uma revolução nas relações de poder que surgiram nas últimas décadas: a excessiva liberdade concedida até agora aos grandes atores econômicos é incompatível com a proteção do bem comum, e questionar este paradigma, que até agora foi dominante, é hoje uma questão existencial. O bem comum – neste caso, a saúde humana e, sobretudo, a preservação do ambiente natural, que é a condição de existência da nossa espécie – deve ser protegido prioritariamente: não pode ser de outra forma.

Referências:

S. Biesbroek et al. (2023) Rumo a dietas saudáveis ​​e sustentáveis ​​para o século XXI: Importância das considerações socioculturais e econômicas. PNAS 120, 26:e2219272120m>