Um musical, dois filmes, sessenta anos | Mergulhando no sublime amor de ‘West Side Story’
A nova versão de “Amor, Sublime Amor” está certamente no mesmo nível do filme de 1961
Por Nate Buzelli*, para cobertura colaborativa da Cine NINJA
Cinema, como muitas outras artes, tem o poder dos 3 Is: inspirar, impactar, influenciar. O cinema, agora diferente das outras seis artes que o antecederam, consegue fazer isso de inúmeras formas; através do poder imagético, da música, da construção rítmica (a montagem), das performances e do texto – seja no conjunto ou, ainda que de frequência mais rara, no individual.
Há 11 anos atrás, eu fui impactado pelo filme que se tornaria um dos mais importantes para mim como artista e pessoa: “Amor, Sublime Amor” (West Side Story, 1961 — de Robert Wise & Jerome Robbins). Eu já o conhecia, afinal ganhara 10 Oscars na cerimônia de 1962 — o segundo maior número de estatuetas da AMPAS® para um único filme na história — mas não o tinha assistido por completo, só pegado algumas cenas isoladas quando foi transmitido em 2009 no canal TCM. Em 2010, achei uma cópia maravilhosa e comprei a mídia física do filme, o resto, para mim, é história.
Não havia visto nada como aquele filme, mesmo sendo um fã absoluto de musicais. Os mais próximos, em termos de expressão artística e cor, seriam “Agora Seremos Felizes” (Meet Me in St. Louis, 1944) e “A Roda da Fortuna” (The Band Wagon, 1953), ambos de Vincent Minnelli, mas ainda extremamente distantes do que seria o musical inspirado em Romeo e Julieta que é o tema deste artigo.
Como muitos já sabem, originalmente “Amor, Sublime Amor” foi criado por Leonard Bernstein e Arthur Laurents, com letras de Stephen Sondheim e direção/coreografia de Jerome Robbins para os palcos, estreando em 1957 na Broadway. Apesar de algumas indicações ao Tony (perdeu para The Music Man), a obra não fizera muito sucesso até que a Fox comprou seus direitos e, em 1961, a adaptação cinematográfica tomou os EUA, e consequentemente o mundo como um furacão, se tornando a maior bilheteria daquele ano.
O impacto histórico de “West Side Story”, como o filme ficaria mais conhecido mesmo nos países de lingua não-inglesa, é óbvio: o primeiro musical americano a contar com “dança moderna” no cinema, foi o primeiro musical americano a abordar a tragédia e o racismo de forma explícita, foi o primeiro a ser ambientado numa periferia, o primeiro a ser gravado majoritariamente em locação e por aí vai. Os motivos, porém, da minha paixão e obsessão com o filme vão muito além de sua importância histórica, ou de qualquer identificação com a história necessariamente. Para este a que vos escreve, tal filme é antes de mais nada um ballet filmado, o qual materializa a expressão – esta que reafirma a existência e assume o valor de necessidade fundamental, ainda que básica, para o ser humano.
A cena inicial que contextualiza o cenário, encontrando do alto o playground e nele os “minúsculos” Jets – os quais insignificantes ainda se acham as mais importantes pessoas da cidade – ganha ritmo junto a música, que existe em diegese (os assobios e estalar dos dedos) e extra-diegese. Aos poucos, os observadores Jets, formados por americanos descendentes de europeus, passam a dançar com prazer, certamente marcando e celebrando “seus” territórios, até o momento em que o encontram o porto-riquenho líder dos Sharks, Bernardo.
O bastão figurativo (filmado num raccord de personagem) é passado e agora vamos conhecer os porto-riquenhos, que em meio à imigração para uma nação historicamente controlador e racista, querem estabelecer seu território e mostrar que também podem crescer naquele país, afinal, no West Side de Manhattan nos anos 50 era essa a realidade que conheciam (como o número “Gee, Officer Krupke” deixa claro mais pra frente).
Novamente, eles não demonstram seus sentimentos e vontades através de diálogos ou socos e chutes. Não, a fisicalidade que aparece não vem através de pancadaria, mas dança, coreografias que querem deixar claro para você, espectador, que o que estás prestes a assistir não é convencional, não é um musical que quer esteticamente viver no realismo do dia a dia, mas uma história que será contada à partir de ritmo, corpo e música.
A primeira briga generalizada, ao final da abertura que considero — honestamente — perfeita (você pode vê-la no YouTube se quiser), os rapazes brigam dançando. Jerome Robbins foi creditado como diretor do filme ao lado do experiente Robert Wise; só uma personalidade forte como a de Robbins faria com que cada detalhe de suas coreografias e as principais ideias por trás delas estivessem transmitidas nas telas. Esse é o fundamento para o filme, que voa através de figurinos que “assumem” cada personagem, movimentos de câmera revolucionários para a época, enquadramentos (hoje icônicos) que sobrepõem os corpos dos personagens sobre a cidade que os envolve, uma direção de arte que se aproveita das cores mais fortes (o vermelho, o rosa, o azul, o amarelo) sem qualquer vergonha.
É um cinema que assume que é antes de se perguntar o que pode ser.
Eu não tenho a intenção de destrinchar cada parte do filme. Para isso, os ótimos escritores do The Film Experience já fizeram uma série em 3 partes sobre o filme, a qual recomendo que confiram aqui.
Os anos ’60 em Hollywood significou uma era de transição, de enfraquecimento do código Hays e da crescente influência do cinema moderno europeu sobre as terras americanas. Por isso, as atuações ainda variavam entre clássicas para as telas (aquele tipo de atuação mecânica cheia de maneirismos) e modernas (o “método”, ascenção do Actor’s studio). Além disso, ainda era costume dos estúdios escalarem atores para representarem qualquer personagem, não importa a etnia ou nacionalidade, por exemplo Mick Rooney em “Bonequinha de Luxo” (1961) e Jennifer Jones em “Suplício de uma Saudade” (1955). O mais importante era que houvessem estrelas nos papéis principais para que a publicidade fosse construída ao redor delas – e para que o espectador tivesse familiaridade com os protagonistas. Foi assim que Natalie Wood, descendente de russos, assumiu o papel da porto-riquenha Maria no clássico filme — e foi pareada com um ator com quem tinha zero química (Richard Beymer, o famoso link fraco do filme original). Se é imperdoável argumentar à favor da escalação de Wood como uma porto-riquenha, eu acho válido argumentar à favor de sua performance, afinal ela foi provavelmente a atriz mais vibrante que Hollywood viu.
Adicione o problema do casting ao fato do filme escurecer a pele dos personagens porto-riquenhos e junte a esses dois problemas o fato de que a Fox e Robert Wise queriam vozes mais específicas para alguns números, então Russ Tamblyn e Rita Moreno foram dublados, cada um, em uma música enquanto Natalie Wood e Richard Beymer foram dublados durante todos os seus números. Assim, existiam motivos o suficiente para que um estúdio — ou diretor ambicioso — justificasse uma nova adaptação na era de “novas adaptações”.
E foi isso que aconteceu através de Steven Spielberg, um dos melhores e mais famosos cineastas que o cinema já viu. Ainda que ame o filme original, me vi animado com o anúncio de um novo “West Side Story”, especialmente quando Tony Kushner, um dos dramaturgos e roteiristas mais relevantes dos últimos 30 anos foi trazido para cuidar do roteiro.
Grande parte do público atual de cinema, sejam eles casuais ou cinéfilos, tem resistência com o filme de 1961. Sabemos que obras de estética “moderna” em seu tempo envelhecem muito mais rápido que abordagens clássicas, por isso mesmo cansei de ouvir sobre pessoas que pararam de ver o filme original porque a “briga inicial foi dançada”.
Se o musical ganhou revivals na Broadway (todos excelentes por sinal) por que não permitir que um diretor desse calibre trouxesse sua visão do mesmo para as telas?
Então, flashfoward para 2022.
Eu assisti ao novo filme três vezes no cinema. A primeira vez foi confusa, fiquei estranhando cada movimento que fosse diferente do filme original, o qual vi inúmeras vezes, mas gostei bastante. A segunda vez, consegui experienciá-lo pelo que é e aproveitar o virtuosismo do diretor, que entrega um plano mais espetacular que o outro, com níveis de dificuldade altíssimos ainda que servindo a narrativa e permitindo que os atores brilhem através do drama, não só pelos méritos musicais. Já na terceira vez fui convencido de que esse novo filme está certamente no mesmo nível do filme de 1961. No fim do dia, são obras bem diferentes para gerações bem diferentes.
“Você (Walter Mirisc) fez um West Side Story para todos os tempos. Eu fiz um West Side Story para este tempo.” — Steven Spielberg, no podcast The Director’s Cut)
Spielberg prioriza a narrativa trágica, influenciada pelo neo-realismo italiano na abordagem cenográfica, e política (amplificada pelo texto transcendente de Kushner). Sim, é um espetáculo, mas repleto de conteúdo e forma; a câmera se torna coro trágico afinal, apontando para os elementos que vão levar os personagens ao revés derradeiro (“garantia de destruição mútua” já diz o traficante de armas que encontra os Jets num bar) como um foreshadowing.
Spielberg altera a ordem e o contexto de alguns números — até porque é impossível fazer qualquer coisa mais icônica que “America” no telhado e “Cool” no estacionamento — criando novos significados que contribuem mais para a construção (e desconstrução) dos personagens do que para o espetáculo como um todo. “I Feel Pretty”, por exemplo, volta à sua “posição” original — contrariando Stephen Sondheim, que detestava esse número porque vinha depois da briga entre as gangues; ele achava com razão que não era o que você deveria sentir no momento (e por isso que foi antecipado no filme de ’61 para o primeiro ato, antes de “One Hand, One Heart”). Mas Tony Kushner, entretanto, achou que se fosse colocado na posição original, ele conseguiria intensificar o penhasco de sentimentos onde Maria cairia, indo da ilusão do amor e da esperança de ascenção para a realidade cruel e desigual daquele Estados Unidos em questão de 5 minutos.
Os dois lados da América: a terra das oportunidades e a terra da opressão.
“[…] Eventualmente os gringos matam tudo.” — Chino
Mesmo que discordemos da escolha, ela funciona porque a coreografia de Justin Peck (diretor artístico do New York City Ballet) para Rachel Zegler, diversificando a interação com novos props dentro da ironia de que sabemos algo importante que ela não sabe, nos leva a pensar exatamente sobre a impossibilidade de qualquer fuga. É melodramática antes de se tornar trágica.
O filme de 1961 não tá preocupado com a construção de personagens, porque eles são símbolos que preenchem a narrativa. Tudo o que você precisa saber sobre eles está nas roupas, na forma que eles dançam, cantam e interagem com os elementos ao redor. Não é um “problema de roteiro”, uma falha ou incompetência de Ernest Lehman — considerado um dos grandes roteiristas do cinema americano — porque esse jamais foi o objetivo deles.
O roteiro de Tony Kushner também se beneficia dos mais de 60 anos que se passaram desde a obra original, podendo olhar para a região com um senso histórico muito maior. O Lincoln Center só foi finalizado em 1969, mais de 10 anos depois da abertura do musical na Broadway e 8 anos depois que o filme saiu. Hoje, sabemos que o West Side de Manhattan se tornou um bairro rico e que em uma parte daquela região, prédios e mais prédios, foram derrubados para que o Lincoln Center, um local extremamente importante para a cultura americana, fosse levantado (o que carrega por si só um significado fascinante para os personagens do filme).
O novo filme também não é um ballet. Enquanto Wise/Robbins filmaram brigas como danças, Spielberg filma danças como brigas, repleta de agressividade e emoções adolescentes. No novo filme também não vemos a sobreposição dos corpos sobre a cidade dentro do quadro, mas a presença mais ativa dos cidadãos interagindo com a música e com os números — inclusive a polícia, que se torna mais ameaçadora (ainda que patética) com Corey Stoll assumindo o chapéu de Tenente Schrank.
Essa ameaça leva ao fabuloso plano final, em que Valentina tira a arma das mãos de Chino e se coloca ao lado dele para que a polícia não o mate.
Cada filme encontra sua linguagem, o curioso é que enquanto Wise/Robbins tentam modernizar, Spielberg esbanja de sua versatilidade classicista, abordando cada cena como um quadro que se recompõe a cada movimento, vibrantes como os filmes de Michael Powell e Emeric Pressburger, e evocando ainda mais os contrastes visuais de Douglas Sirk — na nova versão de “One Hand One Heart”, ele evoca o vitral de “Tudo O Que o Céu Permite” (1955).
Se em 1961, Rita Moreno e George Chakiris foram absolutamente as principais estrelas do filme (ambos, inclusive, ganharam merecidos Oscar no ano seguinte), em 2021 existem várias opções no cardápio; Ariana DeBose é automaticamente a mais comentada; o papel de Anita é o mais desafiador, com as coreografias mais difíceis – peças repletas de nuances musicais e dramáticas (“America” e “A Boy Like That/I Have a Love”) e uma cena de estupro que ficou mais realista, ainda que menos impactante, na nova versão (mais sobre isso em breve). Quero, porém, chamar atenção para Mike Faist, que transforma Riff num personagem complexo, alguém que não teme a morte, mas perder os amigos que estão ao seu redor, porque a existência sozinha — sem uma gangue ou pessoas com quem ele possa se identificar — é a mais dura tragédia.
Riff é explicitamente racista e mesmo assim sentimos pena e certo afeto por ele. Os motivos cinemáticos? Primeiro, casting impecável que viu em Mike Faist o rosto certeiro: olhos pequenos que parecem impedir as lágrimas de sair, o corpo magro para sinalizar que é vulnerável mas longo para supor que pode ser imprevisível, e principalmente a maneira que Faist encontra de invocar aquela criança frustrada, a qual todos conhecemos, que vê sua preocupação como a coisa mais importante do mundo; uma arrogância adolescente.
O mínimo de identificação que passa pela barreira é o suficiente.
A transformação de Maria é a segunda mais evidente, não apenas por trazerem Rachel Zegler (descendente materna de colombianos) para o papel principal, mas porque Natalie Wood é uma lenda. Zegler é impecável cantando e puro carisma quando humor é exigido — suas cenas com David Alvarez são eletrizantes e sua química com Ansel Elgort é real, gerando um dos momentos mais lindos do filme, a sequência de “Tonight” na sacada (a qual destaca o virtuosismo de Spielberg).
Porém, são nos momentos mais dramáticos que Zegler não parece carregar e “modular” as informações que recebe — principalmente na cena final. Seus olhos parecem convencidos antes que seu cérebro possa digerir a informação (chamado de antecipação no teatro, algo bem comum considerando que o ator ou atriz já leu o roteiro e sabe o que está prestes a acontecer). Nessa horas, vou sempre apontar para o final do filme de 1961, em que Wood, dentro das características de performance da época, justifica seu título de estrela. Ela toma seu tempo, como se não soubesse lidar com o choque, age com imprevisibilidade, variando a velocidade com que entrega suas falas (cadência), e lutando contra um cansaço para enfim conscientizar seus “vizinhos briguentos” de tudo o que causaram.
Que fique claro, essa é apenas uma observação para ressaltar a valia de uma das atrizes mais singulares da antiga Hollywood; o filme de Spielberg jamais funcionaria com uma Natalie Wood, afinal, casting não é apenas sobre o melhor ator entregando falas e se emocionando na frente das câmeras, mas sobre química com os(as) colegas, sobre biotipo físico, sobre rosto e outros fatores — e o rosto de Zegler é perfeito para os close-ups que o diretor tanto ama.
O momento que vejo no novo filme sofrendo muito com a abordagem é a sequência em que Anita vai até Valentina para avisar a Tony sobre os planos de Maria (como citada anteriormente). No filme original, com sua abordagem poética e figurada (o “ballet filmado”) a cena parece assustadora: o estupro fica sugerido através de uma coreografia corajosa e cirurgicamente executada pelos atores e dançarinos; porém o novo filme conta com uma abordagem mais realista e trágica, logo não veríamos um estupro sugerido através de coreografia, mas o filme não poderia mostrar um estupro (por questões de classificação indicativa) da mesma forma que mostrou a briga entre as gangues; assim, a cena fica no meio termo, morna, impedindo que a tragédia final atinja emocionalmente seu teto.
Qual teria sido a solução? Talvez mudar a estrutura dramática, talvez mudar a intenção de Anita ou não permitir que a câmera visualizasse a ação, em vez ficasse com as outras personagens femininas que foram colocadas para fora. Mas seria um risco que se falho, traria consequências maiores para o filme do que a escolha mantida.
Talvez seja injusto comparar o legado existente de uma obra com outra em formação e não é a minha intenção através deste texto, apenas me aprofundar (de uma forma que não foi feita em qualquer artigo ou vídeo) sobre uma obra, dois filmes e 60 anos os separando. Quem ganha é o público, fãs de musicais e cinéfilos que podem apreciar, discutir e, em muitos casos, conhecer um musical da forma que o gênero merece, com a paixão e dedicação com que tais filmes eram feito entre as décadas de ’30 e ’60.
Que renove uma paixão, que inspire uma ação, que incite o conhecimento, a busca por mais informações sobre Sondheim e Bernstein, Laurents ou Robbins; sobre o teatro musical, o cinema antigo e as influências que fundamentaram o caminho para Spielberg nessa nova fase.
Cinema, e arte no geral, muitas vezes oferece a faísca para que a curiosidade floresça. Nunca é apenas sobre o que é explicado ou colocado no quadro; muitas vezes é mais sobre você e sua experiência do que sobre a obra sozinha, e é justamente essa subjetividade que mantém a arte na mente e no coração de todas as pessoas, como um clamor irrecusável, admitam elas ou não.
*Nate Buzelli é um cineasta e produtor audiovisual paulistano. Diretor criativo da Endofilmes, Nate também escreve sobre cinema e cultura há mais de 12 anos, tendo textos publicados em múltiplas plataformas online.