
Um mundo de sonhos, mentiras e ilusões em ‘Anora’, de Sean Baker
Não há espaço para sonhos burgueses de lua de mel para quem vem de baixo, principalmente em relações assimétricas de poder localizadas em um universo onde elas são pautadas unicamente pelo dinheiro
Por Ricardo Carvalho
Com uma cena de créditos de abertura belíssima e que incomoda muito o espectador preso às moralidades de uma sociedade contemporânea cada vez mais puritana, Sean Baker inicia seu mais recente longa mostrando bem a que veio. Trabalhando de cara com diversos elementos de oposição, como a luz azul e vermelha, o traveling da direita para a esquerda, personagens sentadas e outras em pé e uma música que romantiza o plano que mostra mulheres exibidas como em uma vitrine de shopping, ao mesmo tempo que somos apresentados à Anora (Mikey Madison) em um close-up que desfoca o fundo de forma quase psicodélica, temos os eixos narrativos principais colocados sobre a mesa: sonhos, as relações humanas meramente transacionais como parte do sistema que fabrica esses mesmos sonhos e, é claro, um choque de classes típico da filmografia do diretor. Tudo isso em menos de um minuto e meio de tela.
Anora, a personagem do título, é uma trabalhadora sexual de um clube de strip em Nova Iorque que esbarra com um cliente chamado Ivan (Mark Eidelstein), filho de um bilionário russo, que está passando férias nos EUA. Os dois desenvolvem uma afinidade quase instantânea muito bem trabalhada pela dupla de protagonistas com destaque especial para atuação brilhante, e cheia de camadas, de Mikey Madison. A partir daí, o filme começa a desenvolver as promessas da abertura com muita calma e maestria a fim de desenhar de forma bem convidativa e encantadora a narrativa clichê da trabalhadora sexual que é salva pelo casamento como um “príncipe encantado”.
É incrível o fato de que o próprio filme tem plena consciência que está usando uma abordagem historicamente liberal e misógina da questão, mas a usa apenas como uma configuração inicial para preparar o terreno para a pancada de realidade que vem mais à frente. Tendo controle total da obra, Baker usa esse artifício para ganhar a atenção da audiência que, de uma forma geral, é embriagada dessa narrativa tão batida, quanto palatável. Tendo em vista todos esses pontos, não é difícil se pegar torcendo pelo sucesso do romance juvenil e explosivo de Anora e Ivan, seja você crítico ou entusiasta desse clichê.
Para tanto, Baker, com sua direção e montagem exímias, em conjunto com o magnífico trabalho de fotografia de Drew Daniels (“Euphoria”), entrega um vislumbre sensorial impactante. Planos exuberantes destacando as cores daquela vida de sonhos entre Nova Iorque e Vegas, vangloriando o dinheiro, a juventude, o tesão e a energia do casal, são montados de forma ágil e intensa com músicas empolgantes. Essa mescla tem a finalidade clara de nos entregar uma dose cavalar de dopamina típica das mídias sociais, atual dispositivo criador de sonhos e ilusões, e dos tempos atuais de relações transacionais e fugazes. No auge desse surreal “faz-de-contas”, somos trazidos à força por uma mudança abrupta no enredo e ritmo do filme para sua segunda parte, mais cadenciada, quando os pais de Ivan descobrem o casamento dos dois. Para acabar com essa união que eles consideram vergonhosa para a família, os magnatas enviam capangas para resolver a questão enquanto que, ao mesmo tempo, embarcam no jatinho da família em direção aos EUA.
Nesse ponto, o filme gira quase 180 graus e passamos a encarar uma espécie de comédia física típica dos anos 30, mas com uma pegada tragicômica dolorosa, trazendo o início da derrocada desse sonho liberal tosco apresentado no primeiro ato. O casamento começa a desmoronar rapidamente quando Ivan foge ao ser confrontado pelos funcionários da família, deixando Anora sozinha com três homens desconhecidos. Neste cenário de horror, o filme tensiona a corda entre a comédia dos absurdos que se desenrolam na tela e o suspense gerado, principalmente, pela nossa preocupação com a integridade física e mental de Anora. Todos os elementos do filme aqui convergem para momentos que são engraçados, mas totalmente sufocantes. Essa sensação, reflete muito bem os primeiros estágios de luto pelo fim do que não chegou a se concretizar de fato: o sonho de princesa, que foi por água abaixo. Entre negação e raiva, o filme nos joga de um lado para o outro alternando entre gargalhadas escandalosas e suspiros de terror, algo extremamente difícil de ser executado, mas levado a cabo por toda a equipe de forma primorosa.
Após vinte minutos tensos, pulamos para a terceira fase, quando Anora e os funcionários da família saem à procura de Ivan por entre fugas e perseguições insanas em Nova Iorque. Neste momento, o filme vai se transformando em uma peça cada vez mais densa, sombria e melancólica. Anora tenta, sem sucesso, barganhar por seu lugar ao sol. Os quadros e planos, antes vívidos, coloridos e deslumbrantes, dão lugar a uma Nova Iorque cada vez mais escura e de poucas cores, retratada com tomadas mais longas enquadrando os personagens cada vez mais isolados, espremidos contra os cantos da tela. Eis que a figura de Igor (Yura Borisov), um faz-tudo de um dos capangas da família, começa a tomar destaque. Não só pelo arco do personagem, mas também pela atuação majestosa de Yura, meu favorito aos prêmios de ator coadjuvante dessa temporada.
Igor é o único personagem em toda aquela dinâmica que, assim como Anora, vem da base da hierarquia social capitalista. Não à toa, os dois começam, muito gradativamente, a desenvolver um vínculo de natureza antagônica, complexa, mas, por fim, cúmplice. Tal ligação é muito bem representada pela fotografia e pela mis-en-cene. A primeira dá, aos poucos, o devido destaque a Igor como a única pessoa com a sensibilidade humana de entender o bizarro de toda aquela situação em que Anora se encontra. Já a segunda, trabalha lentamente a aproximação dos personagens dentro dos planos e quadros. Inicialmente, os dois estão sempre separados por um vazio, algum objeto ou uma estrutura cênica, até que, mais tarde, dividem os mesmos espaços, por menor que possam ser. Além da empatia pela personagem principal, Igor também é um dispositivo narrativo interessante, sempre empurrando Anora para fora daquele falso sonho capitalista mesmo quando ela insiste em persegui-lo, apesar do óbvio fracasso que se desenrola a sua frente.

A quarta e última parte do filme traz uma Anora que acorda de vez da ilusão ao ouvir da boca do seu “até-então príncipe encantado” que ela foi apenas uma diversão durante sua última viagem aos EUA. Não há espaço para sonhos burgueses de lua de mel na Disney para quem vem de baixo, principalmente em relações assimétricas de poder localizadas em um universo onde elas são pautadas unicamente pelo dinheiro. Se essa realidade já é brutal e avassaladora para trabalhadores homens, pior ainda para uma mulher trabalhadora sexual, um dos segmentos sociais mais marginalizados nesse show business hipócrita da qual fazemos parte chamado capitalismo.
Para um herdeiro bilionário, que é “apenas um moleque que não cresce e vive arrumando confusão”, Anora não passa de um um brinquedo, uma distração, extirpada de sua humanidade, de sua agência. Desumanização essa, aliás, que Baker faz questão de indicar com pistas por todo o longa através de pitadas de desdém por parte de Ivan, desde o início do longa.
Entretanto, Anora não é uma personagem fraca que apenas vai com essa maré fantasiosa, depois caótica e, por fim, triste. Pelo contrário, ela se mostra uma mulher de força que busca o que quer e luta até o fim, mesmo tendo caído no papo furado do conto de fadas burguês. Quem não cai? Vivemos apegados a ele diariamente, seja por livre vontade ou por influência do mundo que o perpetua 24 horas por dia. O roteiro de Baker, contudo, evita mais uma armadilha, a ideia boba de retratar a mulher trabalhadora apenas como forte e guerreira, unidimensional e sem sua devida complexidade. Fosse o caso, cairia na mesma desumanização que Ivan e sua família perpetuam contra ela. Muito pelo contrário, mais uma vez Baker mostra que sabe criar personagens como poucos.
O arco dramático de Anora revela diversas camadas, diversas Anoras, ou Ani, como gosta de ser chamada, que vão se revelando a cada minuto do longa. Ela sonha, como a cena de abertura deixa claro, mas também sabe que precisa triunfar em uma cidade predatória como Nova Iorque. Não é ingênua na relação com seus clientes e, apesar de um momento de euforia, também não é completamente inocente com Ivan, afinal, ela faz questão de tirar ganhos materiais robustos dessa dinâmica desde o início.
Além disso, seus desejos são bem palpáveis e ela ainda luta contra as tentativas da família de a tirar daquele lugar que acredita pertencer desde o momento que assinou o papel. Mesmo quando o poder dos super ricos se mostra mais forte do que sua capacidade de se impor, ela, ainda assim, não se entrega ao papel da princesa que perdeu sua única chance. Na contramão disso, Anora faz questão de cair atirando e apontando que Ivan não passa de um homem patético. Em um tempo em que jovens ricos e patéticos comandam a maior potência econômica e militar do mundo, é nada menos que prazeroso ver uma mulher trabalhadora colocando o dedo contra um deles e falando as verdades que muitos de nós gostariam de dizer.
A cena final dá ainda mais profundidade para a personagem e afunda qualquer dúvida sobre do que se trata o filme de Baker. O texto brinca com a expectativa da audiência média, que ainda está boiando na superfície da obra, nos levando rapidamente de volta à ideia liberal do homem salvador da trabalhadora sexual, encapsulado, dessa vez, em Igor. Anora, possivelmente por causa de uma vida de violências diárias naquele universo do sexo como produto capitalista, acredita que deve favor afetuoso e sexual ao homem bonzinho e atencioso e que salva uma fagulha de seu sonho – a aliança. Anora, então, encara a câmera de forma sedutora quase perguntando aos espectadores “é isso o que você quer?”. Deveríamos, entretanto, nos perguntar “já não basta tudo até aqui?”. Nessa angústia de ver o filme descambar para um fim de afirmação misógina e liberal, esquecemos que “Anora” não é um romancinho Hollywoodiano, pelo contrário. Logo, ao receber mais um gesto de afeto enquanto leva a cabo sua última sedução, Anora não sustenta a fachada de esconder tantas dores.
Enfim, juntos da protagonista, nos damos conta de que não vivemos em um mundo de sonhos, mas de mentiras e ilusões.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.