Um legado líquido, evolução e transformação em ‘Planeta dos Macacos: O Reinado’
O início de uma nova trilogia, com Wes Ball oferecendo um novo olhar para a franquia ao revisitar o relacionamento entre símios e humanos para abordar a fragilidade dos mitos e a transformação das sociedades ao longo do tempo
Por Hyader Epaminondas
A mais recente adição à saga “Planeta dos Macacos” não apenas marca um recomeço impressionante, mas também estabelece o início de uma segunda trilogia para a franquia com excelência trazendo novas ideias e argumentos rumo a um futuro promissor. Sob a direção de Wes Ball com o roteiro de Josh Friedman, o filme se brilha desde os seus minutos iniciais ao encerrar de forma simbólica a história da trilogia anterior num avanço temporal de aproximadamente 300 anos para mostrar as ramificações do legado de César, fundamentado na base das leis “Macacos unidos fortes” e “Macaco não mata macaco”.
Essa abordagem não apenas presta homenagem à equipe envolvida nos capítulos protagonizados por César, mas também marca o início de uma nova era na narrativa, onde estamos diante de um tabuleiro completamente novo, com cada peça representando um elemento intrigante e inexplorado. Estamos testemunhando uma nova era da civilização dos macacos, uma era de redescobertas junto com os personagens, onde a tecnologia pode ser revisitada e reaproveitada.
Dos vastos cenários naturais às cenas de ação eletrizantes, cada aspecto visual é elaborado para criar um mundo que é ao mesmo tempo familiar e totalmente extraordinário numa experiência visualmente deslumbrante. A fusão perfeita entre os efeitos visuais e a narrativa envolvente do filme nos transporta para um universo onde a fronteira entre o real e o imaginário se dissolve completamente.
Os avanços na tecnologia de captura de movimento são evidentes em cada gesto, a naturalidade com que os macacos se movem, interagem e expressam emoções é verdadeiramente impressionante, evidenciando uma evolução notável em comparação com os filmes anteriores. Não há traço de artificialidade ou rigidez em suas performances, ao contrário, eles parecem habitar o mesmo mundo que nós, exibindo toda a complexidade e sutileza de movimento que esperaríamos de seres vivos reais graças a dedicação do elenco na captura de movimentos.
A trama humana, agora rebatizados como “Ecos”, uma nomeação que ressoa simbolicamente com a queda da humanidade, surpreende pela simplicidade ao focar em apenas um personagem, colocando toda a responsabilidade emocional desse lado da história nas costas da atriz Freya Allan, interpretando a misteriosa Nova. Allan sintetiza o lado humano, com perfeição, trazendo uma personalidade complexa projetada por suas ações livres de remorso, devido à certeza presente em sua visão de mundo.
Do lado dos primatas, temos o embate ideológico sobre o futuro da sociedade primata entre Proximus Caesar, interpretado por Kevin Durand como uma versão distorcida e megalomaníaca do líder da primeira trilogia, e o protagonista Noa, que ganha vida pelo talento do intérprete Owen Teague, com sua projeção em tela se exaltando como uma máquina do tempo tentando resgatar o passado que se perdeu, enquanto Peter Macon se posiciona como o coração da jornada, interpretando o orangotango historiador Raka.
Com uma visão constantemente apontada para o horizonte, a trama resgata elementos dos filmes anteriores para forjar um novo caminho rumo ao futuro da saga com grande ênfase na ideia de coletividade.
O novo protagonista
É num ritmo dinâmico em que somos imersos na jornada de amadurecimento do novo protagonista, Noa, um jovem chimpanzé do clã das águias cujo nome foi escolhido de forma interessante, evocando o herói bíblico que construiu uma arca para salvar os seres vivos de um dilúvio catastrófico. Ao longo da jornada de Noa, podemos enxergar paralelos impressionantes com o Mito da Caverna de Platão. Assim como os prisioneiros na caverna são limitados pela sua percepção limitada da realidade, Noa inicialmente está confinada às limitações da sua própria perspectiva, enraizada nas crenças e normas da sociedade do Clã da Águia em que foi criado.
Porém sua decisão de desafiar essas restrições e explorar além das fronteiras estabelecidas espelha o ato de seguir para fora da caverna, rumo à luz do conhecimento, uma alegoria que simboliza seu impulso inicial de consertar o bastão elétrico, uma escolha peculiar levando em consideração do uso do mesmo item em “Planeta dos Macacos: A Origem (2011)”. A notável flexibilidade de aprendizado contínuo e adaptabilidade de Noa ressoa com a ideia platônica de que o verdadeiro conhecimento vem da constante busca pela verdade.
Ele se destaca pela nítida insegurança em seguir os passos de seu pai, o senhor das águias e líder do clã, mas também por sua capacidade de manter a mente aberta diante das adversidades, absorvendo sabedoria das experiências vividas. Essa habilidade o diferencia dos demais primatas, pois permite que ele possa prosperar em um mundo em constante mudança onde tudo espalhado pelo cenário pode ser uma oportunidade rica de redescobertas fundamentais para o futuro do planeta.
Sob a delicada tapeçaria da natureza selvagem, nosso guia, Noa, é um explorador de primeira viagem e nos conduz com um olhar curioso por esse período fascinante e que foi mal explorado no filme “Batalha do Planeta dos Macacos (1973)”. Cada nova descoberta revela as complexidades de um mundo há muito esquecido. Testemunhamos o processo quase poético de apagamento dos vestígios de uma civilização perdida ao mesmo tempo em que somos imersos numa história sobre ressignificações.
É uma jornada que nos estimula a explorar cada detalhe, desvendando os significados ocultos por trás das ruínas silenciosas, um lugar que já foi uma grande metrópole. Embora essa civilização tenha desaparecido sem deixar rastros tangíveis, suas ruínas ecoam uma mensagem poderosa sobre nossa relação com o planeta no mundo contemporâneo e como podemos aprender com os erros do passado para construir um futuro mais sustentável e consciente.
A fragilidade do mito e a reconstrução da história
“Planeta dos Macacos: O Reinado” marca uma evolução na saga, não apenas em termos de enredo ao introduzir outras tribos de símios, cada uma com suas próprias tradições, crenças e dinâmicas sociais, mas também em sua reflexão sobre a preservação e a disseminação das ideias. Assim como os macacos herdam a terra devastada pelos humanos, há um paralelo claro com a forma como as ideias podem ser transmitidas e moldadas pelas gerações seguintes, seja para o bem ou para o mal.
A primeira versão de “O Planeta dos Macacos (1968)”, adaptada pelo diretor Franklin J. Schaffner e suas sequências excepcionais da época com outros realizadores, apresentou ao mundo uma distopia icônica que ecoou através das décadas, explorando temas como a natureza da civilização, a brutalidade da guerra e a capacidade do homem de se autodestruir sempre acompanhados com diálogos inteligentes repletos de ironias do casal de cientistas composto pela psicóloga Zira, pelo arqueólogo Cornelius e pela militância visceral de seu filho, César, em “A Conquista do Planeta dos Macacos”.
Assim como vemos a transformação do mundo dos macacos nesta nova trilogia, testemunhamos também a transformação das ideias, muitas vezes distorcidas ou manipuladas para atender a agendas diferentes. A narrativa central deste novo filme é uma reflexão sobre a fragilidade líquida das ideias e a erosão dos mitos que cercam a figura de César, que emerge como um fantasma fragmentado no imaginário coletivo.
A perspicácia do roteiro se manifesta através de referências sutis e criativas aos filmes anteriores, tecendo elementos e aspirações futuras que ecoam momentos marcantes da franquia. Embora a trama inicialmente sugira um enredo de vingança, o diretor Wes Ball consegue escapar dos clichês, apresentando um arco de ascensão ácido em meio aos destroços de uma sociedade corrompida pela influência humana.
A evolução das sociedades e o conflito de ideias
Ao longo de toda a saga, a franquia expõe a verdadeira natureza humana, despida de sua máscara de hipocrisia, retratando os humanos como agentes de destruição, da mesma forma que também ilustra o processo de corrupção dos símios ao adotarem os costumes humanos em suas sociedades, mostrando como a influência e a assimilação de padrões culturais podem distorcer os valores e princípios originais de uma comunidade.
Em “O Reinado” os papéis se invertem, com os humanos assumindo características mais primitivas e coletivas, enquanto os macacos se elevam para assumir um comportamento mais humano e individualista. É justamente nesse cenário desafiador que testemunhamos o amadurecimento genuíno do nosso novo protagonista ao longo desse primeiro capítulo, imerso em meio a dilemas complexos, desprovido de soluções simples sobre sobrevivência e coalização das espécies.
Enquanto César cativava com sua consciência de classe sublime, Noa se destaca pelo seu coração aberto às novas possibilidades, indicando um caminho rumo à evolução. Simbolicamente, o filme provoca reflexões sobre a evolução como um imperativo para a sobrevivência social, César foi um líder visionário, seus sucessores gradualmente se tornam retrógrados ao incorporar ideias humanas em suas sociedades, diluindo a identidade original forjada por ele de união.
Também é explorada a importância dos símbolos ao longo da narrativa, revelando como a compreensão das coisas mudam à medida que seus significados são repassados. Há um conflito fascinante sobre a preservação do legado e a interpretação de seu significado, que acrescenta camadas de complexidade à trama. “Planeta dos Macacos” sempre foi uma dissertação sobre o poder da linguagem e da comunicação, uma mensagem especialmente relevante em um mundo onde o diálogo genuíno e a conexão interpessoal estão cada vez mais raros.
“Planeta dos Macacos: O Reinado” destaca de forma vívida que a batalha pela preservação das ideias é muito mais do que simplesmente combater o esquecimento, é a responsabilidade de proteger e nutrir o legado das ideias que foram transmitidas, garantindo que elas não sejam distorcidas.