Por Mayra Balan**

Em outubro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução nº 348/2020, que prevê regras de tratamento para população LGBTQIA+ custodiada pelo Estado. A Resolução tem três objetivos principais:

“I – a garantia do direito à vida e à integridade física e mental da população LGBTI, assim como à sua integridade sexual, segurança do corpo, liberdade de expressão da identidade de gênero e orientação sexual;
II – o reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero e sexualidade da população LGBTI; e
III – a garantia, sem discriminação, de estudo, trabalho e demais direitos previstos em instrumentos legais e convencionais concernentes à população privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitoração eletrônica em geral, bem como a garantia de direitos específicos da população LGBTI nessas condições.”

Esta Resolução foi fruto de um amplo debate envolvendo sociedade civil e poder público, na busca por dignidade da população LGBTQIAPN+ privada de sua liberdade. Já em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 527, determinou que presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino poderiam optar por cumprir penas em estabelecimento prisional feminino ou masculino.

É difícil quantificar a população LGBTQIAPN+ encarcerada, pois muitas têm receio de se autodeclarar pertencentes dessa população devido a possíveis riscos de sanções tanto administrativas, quanto por outras pessoas presas.

Na pesquisa “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnósticos dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, nas 508 unidades prisionais que responderam ao formulário de pesquisa, foram identificadas 4.748 pessoas que se autodeclararam LGBT.

Em geral, elas estão presas junto a pessoas autodeclaradas heterossexuais, em celas ou alas específicas para sua orientação sexual e identidade de gênero ou até em unidades prisionais inteiras destinadas especificamente para a população LGBTQIA+.

Este é o caso da Penitenciária de Segurança Média (PSME) II, localizada em Viana, que abriga especificamente a população LGBTQIAPN+ no Estado do Espírito Santo, contendo aproximadamente 300 pessoas, presas provisoriamente e condenadas em regime fechado e semiaberto.

Ela foi inaugurada em maio de 2021 e, deste então, passa por diversos desafios que são acompanhados pelas pastorais, movimentos e grupos da sociedade civil que acompanham este ambiente.

Entre os desafios, apresenta-se o alto índice de pessoas com demandas de atendimentos à saúde mental e o baixo acesso aos direitos legalmente previstos, o que neste caso resultou, no primeiro ano de funcionamento desta unidade, em média de sete óbitos, tendo sido classificados, majoritariamente, como suicídios.

Em maio de 2023, a assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional esteve no local para acompanhar a assistência religiosa.

De início, na entrada da unidade, observamos um banner repleto de informações sobre pronomes de tratamento e formas politicamente corretas para se referir à população LGBTQIA+, como o uso inadequado do termo “opção sexual”, seguida da forma correta: “orientação sexual”.

Ao nos dirigirmos para as galerias, chamou-nos a atenção, na parede, em folha sulfite, estavam coladas cópias de uma Portaria que dizia que as pessoas presas, para manter a disciplina, deveriam manter o corte de cabelo e barba de pente nº 03 .

Entramos num espaço gradeado, com as celas trancadas em volta de nós. Inseridas naquele panóptico, as agentes de Pastoral Carcerária leram o Evangelho segundo Mateus, 28, 16-20. “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo”.

Após a leitura e reflexão, conversamos com os homens e mulheres ali encarcerados/as que trouxeram diversas situações que mostravam que aquela unidade prisional, apesar de sua especificidade, viola direitos como qualquer outra.

Uma pessoa, de cabelos na altura dos ombros, penteados para trás e presos com presilhas, pediu para conversar. Fui e perguntei seu nome, ela disse: “João* ”. Olhei para ela e falei: “Mas é desse nome que você quer que eu te chame?”. Ela disse que sim e contou que, naquela semana, tentou suicidar-se 8 vezes.

Em outra cela, que as presas disseram ser o seguro (mas ficava junto às demais), a mesma dinâmica: “Qual seu nome?” – “Júnior*” – “Mas como você quer que eu te chame?” – “Ah, então é Larissa*”. Um sorriso frouxo e uma gota de brilho no olhar apareceram ao ver que alguém se preocupava em não chamá-la pelo nome morto.

Larissa* disse que as pessoas que habitavam as celas do seguro estavam ali porque foram estupradas e ameaçadas em outras celas. Isso porque homens heterossexuais teriam sido transferidos para a unidade e estariam intimidando as pessoas LGBTQIAPN+, especialmente as mulheres trans e travestis. A consequência disso foi a população trans e travesti no seguro e com banho de sol reduzido, para não causar alvoroço.

Em outro momento, falei com Lara* e Jéssica*. Apesar de se identificarem com o gênero feminino, disseram que estavam de cabelo raspado e bigode por fazer para conseguir sobreviver ali sem sentir tanto medo.

Também conversei com Carlos*, que disse poucas coisas com nexo. Estava completamente atordoado, devido à ingestão incontrolada de remédios, e com os braços cortados.

Do que disse, deu pra entender que se cortava e se automedicava porque a família parou de visitá-lo e, sem eles, não suportava viver ali. Zonzo, afastou um esparadrapo do seu pulso e mostrou um ferimento aberto, ainda com sangue, dizendo que era muito difícil viver ali.

Carlos* não foi a única pessoa com sinais de automutilação. Várias, especialmente as travestis, tinham marcas em seus braços e relataram ter tentado tirar a própria vida.

Flávio* relatou a convivência diária com bombas de gás e balas de borracha. Não só ele, como a maioria das pessoas que conseguimos conversar mostraram diversos ferimentos em carne viva, vindo do uso de armamento menos letal. Esses ferimentos estavam presentes também em Maria* e José*, companheiros de cela de Mateus *.

Mateus estava sentado numa cama, com a bolsa de colostomia apoiada no chão. Maria e José contaram que são elas que alimentam Mateus, porque ele não consegue. São elas que higienizam suas escaras e ferimentos, porque ele não tem mobilidade física pra isso.

São elas que o carregam nos braços para levar ao buraco na terra que faz suas necessidades, porque a cela não tem vaso sanitário. Mateus não tem direito à cadeira de rodas, tampouco à cadeira para banho. Maria e José disseram que, porque Mateus não consegue se defender, ele é agredido fisicamente pelos policiais penais.

A visita foi bastante estarrecedora para esta assessoria. Numa unidade prisional destinada à população LGBTQIA+, travestis são estupradas, não têm seu nome social respeitado, se veem obrigadas a cortar seus cabelos e têm seu banho de sol reduzido. Pessoas com deficiência são negligenciadas e agredidas pelo Estado. Homens que se relacionam com homens levam tiros de bala de borracha e são colocados em celas com homens héteros homofóbicos. A LGBTfobia muito presente entre os servidores das unidades, homens e mulheres sobrecarregados, sem formações de rotina e fortalecidos por uma lógica violenta de manutenção da segurança.

Num paralelo com o previsto na Resolução nº 348/2020 do CNJ, o que vimos foram:

I – estupros, uso de spray de pimenta e balas de borracha;
II – falta de tratamento pelo nome social, além de mulheres trans e travestis se verem obrigadas a cortar seus cabelos, seja por ordem da direção, seja para se manterem vivas naquele espaço;
III – reclamações de falta de acesso ao trabalho, ficando todas e todos ociosas(os) boa parte do tempo.

E sabemos que essa é a realidade de muitos dos cárceres do Brasil. Não é uma especificidade da PSME II, ou do estado do Espírito Santo. A diferença é que, ali, a unidade se baseia num ato normativo que tem como premissa o respeito a uma determinada população, que é desrespeitada aqui fora também.

Entendemos que unidades prisionais destinadas a grupos específicos podem tentar melhorar o cotidiano das pessoas pertencentes aqueles grupos.

Mas o que vemos, na prática, é o maior encarceramento daquela população que, como em todo o sistema prisional, é majoritariamente preta, pobre e periférica, como também o desrespeito sistemático a elas. É assim no encarceramento feminino, é assim no encarceramento de pessoas com deficiência, é assim no encarceramento de idosos(as), é e será assim no encarceramento de pessoas LGBTQIA+.

Quando o ministro Luís Roberto Barroso decidiu que as pessoas trans e travestis deveriam escolher o lugar que cumpririam a pena, para tentar resguardar a integridade delas, logo pensamos: se o Estado não é capaz de garantir a segurança das pessoas LGBTQIA+ encarceradas, que deixem-nas livres.

Depois da ADPF 527, veio a Resolução do CNJ. Depois dela, vieram unidades prisionais específicas para eles, elas e elus. Nada do que veio parece ter mudado a realidade.

Contudo, o Governo Federal ainda tem a oportunidade de salvar a vida e garantir a integridade da população LGBTQIA+ encarcerada concedendo indulto específico para essa população.

No dia 20 de junho de 2023, a Pastoral Carcerária Nacional, em conjunto com outras entidades de defesa dos Direitos Humanos, apresentou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária proposta de indulto para este ano. Dentre as diversas proposições, tem-se que a população trans que esteja encarcerada em condições desconformes à Resolução nº 348/2023 deve ter o lapso reduzido para a metade para ser indultada.

Ainda, poucas semanas após essa visita, no mês em que se volta o olhar para a luta do orgulho LGBTQIA+, foi-nos noticiado mais um registro de óbito na PSME II, neste caso, investigado como homicídio.

O alto e recorrente número de mortes e violências são graves sinais que demonstram a necessidade do olhar das políticas para a população LGBTQIA+ no Estado, no Brasil e no mundo!

 

* Os nomes foram substituídos por pseudônimos para preservar as pessoas
**Mayra Balan é assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional (CNBB)