Um ano de Dom e Bruno: assassinatos de defensores humanos e ambientais na Amazônia seguem sem solução
O roteiro de assassinatos de defensores de direitos humanos e do meio ambiente na Amazônia é praticamente o mesmo há 40 anos
O roteiro de assassinatos de defensores de direitos humanos e do meio ambiente na Amazônia é praticamente o mesmo há 40 anos: em locais com vulnerabilidade econômica, crimes brutais são cometidos contra quem interfere nas relações sociais e, após as mortes, vem a impunidade.O caso do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari há um ano, é um exemplo disso.
Um ano depois, os assassinos mudaram a versão e alegam ter matado para se defender do indigenista, que os perseguia e os ameaçava. A defesa sustenta que indígenas e pescadores viviam em paz até Bruno intervir. Diz ainda que a primeira versão dos acusados foi extraída mediante tortura das polícias Militar e Federal no Amazonas. O histórico de Bruno e de conflitos no Vale do Javari contrapõem a versão contra ele.
Dos assassinatos de grande repercussão nas últimas quatro décadas, apenas o do seringueiro Chico Mendes, em 1988, e o da missionária católica Dorothy Stang, em 2005, resultaram em punição de toda cadeia do crime: desde os mandantes até os executores. O procurador federal Felício Pontes, auxiliar da acusação no julgamento do assassinato de Dorothy Stang, afirma que há um padrão nos crimes de mando —e o objetivo é convencer o júri a ver o assassinato como algo sem premeditação, onde, na verdade, há pistolagem. Para ele, essas alegações são feitas para proteger os mandantes.
“É para dizer que o status quo é legítimo, que as coisas estão boas do jeito que estão e quem se atreve a mudar acaba morrendo. É muito usado nos conflitos na Amazônia”, diz ele, que tem 20 anos de experiência jurídica na região. O cenário é confirmado em relatório da ONG Global Witness de 2022 sobre violência rural. Nele, o Brasil aparece como o país mais letal para defensores do meio ambiente e de terras. De 2012 a 2021, foram 342 assassinatos, mais de 85% deles na Amazônia. Cerca de um terço dos mortos eram indígenas ou afrodescendentes. O estudo também observa que poucos casos ganham a atenção da mídia.
O promotor do Ministério Público do Pará Edson Cardoso de Souza afirma que um dos obstáculos para vencer a impunidade é convencer o júri. O promotor atua há 20 anos na área criminal e foi o responsável pela acusação dos condenados no assassinato da missionária Dorothy. “O mandante é uma coisa mais abstrata. E convencer o júri é a parte mais angustiante para evitar a impunidade. Por mais que o júri concorde que estão mortos e [que aqueles] são os autores, pode ocorrer uma absolvição. A defesa vai dizer: ‘Esse pessoal não é da região, não aceitava que derrubasse uma árvore, que pescasse um peixe'”, diz Cardoso.
O promotor Cardoso afirma que a alegação de legítima defesa exige o mínimo de provas. No Vale do Javari, ressalta, há um segundo crime que é ocultação de cadáver, comum em homicídios dolosos e premeditados. O desaparecimento da arma de Bruno é outro ponto negativo para a defesa. “A embarcação dele foi perfurada pelas balas do Bruno? E a arma do Bruno? Se eles enterraram o corpo, tiveram acesso à arma”, questiona.
“A morte do Dom e do Bruno seria evitável se a Funai e o sistema de Justiça estivessem funcionando”, opina.
No caso de Bruno e Dom, no depoimento à Justiça, o pescador Amarildo Oliveira, que confessou ter matado, esquartejado e queimado o indigenista e o jornalista, ao ser questionado sobre a ocultação dos cadáveres, respondeu: “Eu não ia deixar um ser humano para os urubus comer. Jamais ia deixar um urubu comer um ser humano. Para mim, aquilo não era certo”.
Relembrando:
O indigenista Bruno Pereira, 41, e o jornalista Dom Phillips, 58, foram mortos a tiros de espingarda, esquartejados, queimados, e enterrados duas vezes numa área de igapó, como forma de ocultar seus cadáveres. Foram encontrados graças às denúncias e buscas de indígenas da região. Bruno era um dos mais importantes indigenistas da sua geração e especialista em indígenas isolados. Perseguido na Funai, passou a atuar como contratado da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) no treinamento de indígenas para monitorar invasões ao território. Dom Phillips, que escrevia um livro sobre a Amazônia, o acompanhava na viagem para coletar conteúdo. A atuação de Bruno incomodava a gestão da Funai na época e as pessoas que atuavam na pesca ilegal na região.
Via Folha de São Paulo