Trigo transgênico: ainda é possível cancelar liberação do produto no Brasil
Entidades lançam carta sobre histórico de irregularidades da CTNBio e riscos do trigo transgênico à biodiversidade, à saúde e à alimentação. Documento lamenta silêncio do Conselho Nacional de Biossegurança sobre o tema
Texto de Gilka Resende, comunicadora do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
Ainda é possível reverter a liberação do trigo transgênico no Brasil. É o que afirmam organizações e movimentos sociais em carta questionando a decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável pela análise de organismos geneticamente modificados no país. O documento foi elaborado após a Comissão se pronunciar, via parecer encaminhado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), diante da mobilização pelo cancelamento da aprovação do comércio e do cultivo do trigo HB4 no país. As entidades acionaram o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), reivindicando ao seu presidente, o ministro da Casa Civil Rui Costa, uma audiência sobre o assunto. Porém, ainda não obtiveram resposta.
A CTNBio, justamente o órgão questionado em ofício protocolado em março, mesmo sem apresentar novos dados, voltou a afirmar que “o trigo HB4 é seguro ao meio ambiente e à saúde humana e animal”. Em contraponto, além de denunciarem uma histórica falta de lisura nas decisões da Comissão, as entidades reforçam que o processo de aprovação do produto foi “confuso e tumultuado”. Diante disso, afirmam que vão continuar pressionando para que o CNBS coloque o tema em pauta. Do ponto de vista administrativo, o Conselho, que tem poder político e reúne diversos ministérios, poderia ter apresentado recurso à decisão da CTNBio até o dia 6 de abril. No entanto, o coletivo de entidades argumenta que o CNBS “pode e deve” voltar ao assunto com base no princípio da autotutela, que estabelece um período de cinco anos para analisar a legalidade de atos administrativos.
Dentre diversos questionamentos, a carta destaca que mudanças nas regras da Comissão, a partir de 2020, são contrárias ao que define o sistema internacional de biossegurança. A CTNBio passou a entender que as consequências da introdução de um organismo transgênico já são previsíveis no momento da avaliação de riscos, dispensando um acompanhamento contínuo de possíveis efeitos adversos em variados setores e escalas.
“Sem plano de monitoramento, há um verdadeiro apagão de informações, em um completo negacionismo da ciência”, destaca trecho do documento. “Houve graves vícios e irregularidades, o que nos causa indignação. Precisamos de respostas reais”, protesta Marciano da Silva, da Associação Nacional de Pequenos Agricultores (ANPA).
Os únicos países que liberaram o plantio do trigo HB4 foram a Argentina, onde ele foi desenvolvido, e o Brasil. Diante disso, ao contrário do que afirma a CTNBio, as entidades defendem que não há uma ampla documentação sobre a segurança do trigo transgênico. A Comissão diz que análises de campo ocorreram no Paraná e em Minas Gerais, mas as organizações e movimentos sociais criticam o sigilo sobre as informações e questionam se estudos em apenas dois estados seriam suficientes para dimensionar os impactos na biodiversidade brasileira.
“Se ocorreram estudos nos nossos biomas, como exige a Lei de Biossegurança, mantiveram confidencialidade sobre algo que a sociedade precisa conhecer”, diz Marciano.
Aprovação acelerada
Mesmo que sua decisão interfira na segurança alimentar e nutricional e na saúde da população, já que o trigo está frequentemente presente à mesa na forma de pães, biscoitos, pizzas, dentre outros, a CTNBio promoveu apenas uma audiência sobre o tema, realizada de forma online em 2020. Na ocasião, houve a garantia de que o foco do pedido se restringia à importação da farinha de trigo transgênica.
“O próprio representante da empresa solicitante da liberação do trigo HB4 falou que, antes de 2024, não seria possível pensar em realizar estudos de adaptação e avaliação de riscos nos biomas brasileiros. Sendo realista, nas palavras dele, os estudos poderiam ocorrer em 2026 ou até mais para frente. Estamos curiosos em saber qual é a qualidade científica da decisão da CTNBio, que já chegou a uma conclusão em 2023”, questiona Gabriel Fernandes, do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Outra denúncia se refere ao uso do processo relativo à importação da farinha, aprovada em 2021, a fim de acelerar a liberação do plantio do HB4. Marijane Lisboa, professora de Ciências Socioambientais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, lembra que a Comissão não incluiu nenhuma entidade representativa de consumidoras e consumidores na audiência sobre trigo transgênico, sendo essa mais uma irregularidade. “Os direitos dos consumidores estão sendo absolutamente desrespeitados”, destaca ela, que foi membro titular da comissão na qualidade de especialista do setor de 2012 a 2015. A suposta eficácia produtiva do trigo transgênico frente às mudanças climáticas também é contestada. “O trigo HB4 vem com a promessa de ser uma alternativa frente à seca, quando é produto de um modelo de agricultura que causa, em grande parte, o aquecimento global. É como se fosse o cachorro correndo atrás do próprio rabo. É mais do mesmo”, ilustra Gabriel, que também integra a organização mineira Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM).
Democratizar a CTNBio
Diversos pontos centrais foram excluídos da audiência realizada pela CTNBio, como o uso do agrotóxico glufosinato de amônio, veneno atrelado ao novo transgênico que é proibido em países da Europa; a determinação de normas para evitar a contaminação de lavouras de trigo não geneticamente modificado; e avaliações sobre impactos no ar, na água e no solo, enfim, em toda a biodiversidade e nas populações que mais a protegem, isto é, povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, agricultoras e agricultores familiares, agroextrativistas, dentre outros.
“A CTNBio tem um defeito de formação. Ela tem uma maioria de representantes de ministérios que não são responsáveis nem pelo meio ambiente nem pela saúde. E tem uma maioria de cientistas que, no geral, são favoráveis aos transgênicos. Faltam especialistas em toxicologia, em ecologia, em agricultura… Ela foi desenhada para facilitar a liberação de transgênicos no Brasil”, analisa Marijane.
Sobre isso, Gabriel destaca ser importante renovar a Comissão, buscando pesquisadoras e pesquisadores qualificados e independentes. “O novo governo tem grandes desafios para retomar o processo democrático no país. Talvez o MCTI não tenha ideia de como funciona a CTNBio. Do contrário, não assinaria esse cheque em branco ao repassar a posição da Comissão. Ficamos muito preocupados e, ao mesmo tempo, estamos à disposição para contribuir no processo de democratizar a CTNBio”, conclui.
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