Transmutações Cárnicas com Anis Yaguar
A entrevistada da semana para o #ArtistaFOdA, é Anis Yaguar, artista visual, transmutante, performer e construtora de ficções visionárias.
Por Amanda Olbel / @planetafoda
A entrevistada da semana para o #ArtistaFOdA, é Anis Yaguar, artista visual, transmutante, performer e construtora de ficções visionárias. Interiorana do Rio de Janeiro, nascida na divisa entre Angra do Reis e Paraty, 1996, nos conta que desde cedo sempre gostou de observar de maneira sinestésica a vida, em que tudo poderia ser visto com um grau de interesse diferenciado e um olhar sensível. Portanto, a experiência de sua corpa com o gesto, o toque, a pele, a dança, – o balanço, o sentir, o calor, o suor, o contato com a mata, com a terra -, sempre foi um motor de busca e vislumbre, até entender que havia também um desejo de âmbito profissional.
Dessa forma, Anis começou estudando fisioterapia, e assim, foi entendendo as questões das movimentações, articulações e anatomias, o que acabou por acrescentar muito em sua expressividade corporal. Entretanto, percebia ainda não ser o campo exato de aprofundamento de que ela estava em busca. Até que se dá o encontro de almas entre Yaguar e a maravilhosa Matheusa Passareli, também artista visual talentosíssima, quem lhe abre os horizontes para repensar sua trajetória e adentrar no universo artistico. E que hoje deixa saudades em muitos corações, após sua partida trágica em 2018.
“Matheusa é uma pessoa que sinto ser de extrema importância para minha formação de vida, a qual eu tenho com muito carinho, cuidado e respeito. Ela quem me abriu uma ponte até o entendimento da expressão artística.”
Logo, após grandes influências da amiga, iniciou graduação de Artes Visuais na UERJ, no ano de 2017, também tendo passado por formações artísticas na EAV do Parque Lage; Casa França-Brasil e no Espaço Saracvra. Desde então, vem estudado e se interessado pela performance, pelo audiovisual e recentemente na construção de objetos e próteses.
A artista diz acreditar muito na potência da visualidade, uma vez que vivemos em uma sociedade extremamente imagética em suas simbologias e representações, e por isso deseja que cada vez mais corpas dissidentes tenham a possibilidade de serem vistas, escutadas e acolhidas. Portanto, cria imagens, movimentos e materialidades que de alguma forma dialogam com essa experiência dentro de seu processo de transição. “Transição” , em que o prefixo TRANS, lhe traz muito a ideia de movimento, de deslocamento, de sair de um lugar a outro. E retomando a ideia de Gilles Deleuze sobre o conceito de devir, alinhado ao princípio das diferenças, o devir está atrelado à potência de diferir de si mesmo, que é a diferença tomada enquanto o processo de dilatação, desintegração e rearranjo de um corpo envolvido na relação, e não a diferença como comparação ou negação de diferentes. Corpas em trans(formação), estariam portanto, em eternos devires. Eternos “vir a ser”, num movimento contínuo de se perceber a si mesmas, tanto como as pessoas e os ambientes ao seu redor.
“Minha corpa e minha experiência de performatividade são meus principais pontos de partida, os motores de minha pesquisa dentro da arte. Mas não só nela, porque acredito que a arte seja só um local onde me encontro para poder expressar e transgredir, mas que a experiência vai além desse espaço institucional e estigmatizado. Então penso bastante nas condições cárnicas que trazemos em matéria, e nas possíveis transmutações dela, em transcender a carne, e da não fixação em um lugar esperado. Acredito muito na força da criação de ficções visionárias, um termo disponibilizado por Walidah Imarisha, uma intelectual escritora estadunidense, a qual diz sobre a possibilidade de criarmos realidades outras, a partir da ideia de que toda realidade já foi antes ficção”.
Anis Yaguar atualmente também elabora e realiza muitas de suas performances com sua parceira Sumé Aguiar, que juntas criam uma potência em sua relação afetiva, e consequentemente em sua relação de trabalho. Por serem duas pessoas transgêneras, diz pensarem bastante na questão de alicerçar outras formas de relações afetivas, em como construir outros caminhos, outros pares que não os tradicionais. Costumam abordar esse tema em seu trabalho conjunto, e que inclusive, em um deles, entitulado de “Edificação”, é uma celebração de seu primeiro ano de relacionamento, e se colocam grandiosamente trajadas em vestidos vermelhos sobre o rio Mambucaba, edificando suas existência, assim como a relação entre elas.
“O encontro com a Sumé, é outro encontro extremamente importante para mim. Ela é outra artista a qual eu tenho o prazer e honra de estar vivendo intimamente ao mesmo tempo e espaço. É gratificante ter alguém ao seu lado para ajudar em seus processos, e acredito que a gente faz muito isso, temos a quem recorrer e com quem contar quando surge alguma ideia ou desejo. Somamos forças para estarmos produzindo coletivamente e também individualmente. Acreditamos na força de nosso encontro, entre trocas constantes.”
Varias de suas apresentações performáticas são sustentadas por elementos da natureza, como árvores e plantas, rochas, cachoreiras, terra, e sisal, e são de uma relação bem própria de sua corpa com essas materialidades orgânicas. Existe algo de muito potente e visceral, de uma intensidade enorme por detrás do que temos como registro. Uma tentativa de integração com o ambiente, reiterando esse olhar sensível e sinestésico, de quando era nova. Subvertendo a lógica da condição cárnica da genitalia, socialmente instaurada ao nascimento. E como diria Espinoza: O que pode o corpo? Quais são suas restrições, prazeres, possibilidades, privilégios, limitações e seus desdobramentos? Yaguar entra em oposição às diretrizes heteronormativas, se testando nos rearranjos possíveis e imaginaveis de configuração de seu próprio corpo.
Em sua apresentação “Parto de Mim Mesma”, da série Casulos, do ano de 2019 a vemos nua e envolta por um tule de malha preso ao teto do espaço. Assim como uma borboleta prestes a (re)nascer, inicia gestos delicados, competindo o espaço pequeno do tecido com seus braços e pernas, cambaleando um tanto, como se fossem seus primeiros passos de vida. Até se desvenciliar ofegante de sua antiga pele. Ato simbolico de representação, parindo a si mesma em sua nova configuração papilônica, também inciando um novo ciclo em sua carreira.
Assim como esse, Anis possui outras obras fortes, de carater ousado e transgressor. Em Remodulação nº1 e Remodulação nº2, tenta criar adequações de partes de sua corpa, com pedras de diferentes gemas penduradas aos mamilos, que vao se alterando de tamanho, cada vez mais esticando o bico do peito.
“transmutar a carne. alongar o peito. curar enquanto dói, suar enquanto cresce.
transbordar a água interna. entre o peso e a pedra.”
Já no segundo, amarra pelo corpo todo cordas de sisal, comprimindo seu torso e membros, incluindo a genitália.
“estruturações corpóreas remodeladas
em processos cirúrgicos não
sintéticos, e tampouco orgânicos.
nas ruas, é o ponto de fuga inicial
para os olhos alheios. nunca foi sobre
negar o biológico, mas talvez em como
temos que nos relacionar diante
das convenções estabelecidas em cima dele.
resgate das que vieram antes. “
Para finalizar, um dos trabalhos mais recentes, que também chama atenção pela sutileza do ato é o entitulado de “Prótese Anca”, objeto desenvolvido juntamente de Sumé, durante a residência artística na Galeria Refresco, no ano de 2020, também com pedras de quartzo rosa, porém dessa vez com bases de resina e pigmento de urucum. A obra consiste em uma fileira das tais peças, que se estende por todo percurso da coluna, sobre o corpo apoiado pelos braços e pernas no chão, e o torço num banquinho de madeira. Unindo assim, a perspectiva da materialidade com os aspectos energéticos, fazendo uso de resina e cristais, para estar formulando uma outra percepção corpórea, nessa ideia de estar manipulando e transcendendo a carne. Como se a morte estivesse intregada a vida desde o começo, pois na verdade ela nunca esteve separada, nos nascemos na morte.
Para ter aceso às publicações da performer Anis Yaguar, acesse seu perfil do instagram, @anisyaguar, onde compartilha fotos e processos, assim como sua página de portifólio com registro de todos os trabalhos. Siga também o perfil do @planetafoda para ficar por dentro dos próximos #ArtistasFOdA’s, publicados todas as quintas-feiras.