“Todos nós somos canalhas!” Teatro Oficina escancara o abuso que a sociedade finge não ver
Em tempos de casos de violência doméstica expostos diariamente, a montagem de “7 Gatinhos” funciona como um espelho incômodo da realidade brasileira
por Taísa Rodrigues
Enquanto o Brasil registra um feminicídio a cada seis horas e casos como o do homem que arrastou a ex-namorada por 100 metros dominam as manchetes, o Teatro Oficina apresenta uma obra que parece ter sido escrita ontem — mas data de 1958. “7 Gatinhos”, de Nelson Rodrigues, segue em cartaz até 25 de dezembro, expondo com brutalidade cirúrgica os mecanismos de abuso que ainda estruturam a sociedade brasileira.
“Todos nós somos canalhas”, dispara a diretora Joana Medeiros, que também interpreta o patriarca abusador Seu Noronha. “Nelson grita: nós todos somos escravos uns dos outros! Nós todos somos abusivos uns com os outros!”
A montagem dirigida por Joana Medeiros dispensa o conforto da distância histórica. Pelo contrário: funciona como um tapa na cara de uma sociedade que se recusa a encarar suas próprias entranhas. No cortiço do Bixiga, uma família aparentemente comum revela a podridão escondida por trás das aparências — e ninguém sai ileso.
“A violência doméstica no Nelson é a última caída de máscara”, explica Joana. “Quando a gente entra no incesto, na casa, no massacre do feminino, no patriarcado — dentro de homens e mulheres — de como realmente tratamos nossos filhos, isso é irreversível.”
A diretora, que enfrentou seus próprios traumas para construir o espetáculo, vê no processo de interpretar o abusador uma forma radical de cura. “Eu sou uma abusadora. Nós somos. É um choque tremendo. Eu vivi muitos casos de abuso na minha infância.”
“O abuso é patrimônio da humanidade. Que triste dizer isso, mas é cultural”, complementa Viviane Clara Gangá, que interpreta Dona Aracy — a mãe cúmplice que fecha os olhos para a violência dentro de casa. Vítima de violência doméstica, a atriz mobiliza pesquisa e parte de sua própria história para construir uma personagem simultaneamente vítima e abusadora.
“Muitas vezes a gente nem se vê. Eu, particularmente, não percebi a violência que vivia até chegar ao limite da gravidade de tudo”, conta Viviane. “Esqueci de ser mulher. Esqueci de ser gente. Então fica o alerta: os sinais estão sempre aí. Não podemos permitir esses abusos. Não podemos nos enganar.”
O público como cúmplice
No Teatro Oficina, o público não assiste: participa. As portas se fecham durante a apresentação, e todos ficam trancados com os personagens — obrigados a confrontar sua própria cumplicidade.
“O público tá trancado com aquela carniça daquele miliciano e com Noronha nos infernos. Ele não é espectador, é cúmplice, assim como eu e você”, afirma Joana. “Nós somos cúmplices. Nelson fala isso tão fortemente.”
A responsabilidade artística, diz ela, é imensa: “Se eu olhar para mim, para minha vida, 55 anos… e para o público, a gente sabe que não tá ileso. Mesmo num terreiro sagrado como o Teatro Oficina.”
Para Viviane, o teatro cumpre papel fundamental de denúncia: “Precisamos nos ver nesses abusos, nesses preconceitos. Precisamos nos ver nas nossas agressividades, para que, no espelho, consigamos nos olhar e melhorar.”

O desafio de interpretar o agressor
Victor Rosa, intérprete de Bibelot — o homem que trai a esposa doente, engravida uma menor e tenta empurrar outra mulher para a prostituição — encara a tarefa de dar vida a um personagem que concentra múltiplas formas de abuso.
“Um dos maiores desafios é aguentar esse cavalo. Agüentar tudo isso e conseguir falhar sem virar do avesso”, explica. “Há sempre o perigo de se deixar seduzir e acabar entrando na onda do personagem.”
A montagem revela como a sedução funciona como ferramenta de manipulação: “A grande armadilha é o público simpatizar. E perceber, no fim, que aquilo com que talvez se identifique é assassinado, estraçalhado — não é o certo.”
A atualidade assombra
A sincronia entre Nelson Rodrigues e a realidade brasileira de 2025 é perturbadora. Enquanto o STJ absolve um homem que estuprou uma menina de 13 anos e os casos de feminicídio se multiplicam, “7 Gatinhos” mostra que pouco mudou desde 1958.
“É absurdo, dá medo pensar que o cara escreveu isso em 58. E tá aqui, ó, agora, aqui e agora”, observa Victor.
Joana vê na obra uma possibilidade de catarse coletiva: “O papel do teatro é catarse. É renascimento diário. É encarar nossa humanidade de forma rasgada. Nelson é psicodélico. Ele fura o medíocre. Ele sacode e quebra a barreira do cotidiano e da mediocridade.”
Diferente da realidade — onde a impunidade domina — em “7 Gatinhos” há consequências. A montagem oferece algo como uma “revanche do feminino”, uma justiça simbólica que o mundo real ainda não garante às vítimas.
Para Viviane, transformar a dor em força cênica é um salto: “Me sinto fênix. Me sinto viva. É contraditório, porque é uma peça que fala do contrário disso, mas ao final eu me vejo e me coloco nesse lugar de fênix.”
A transformação do Teatro Oficina
Joana enxerga o momento atual do Teatro Oficina como histórico. Para ela, a montagem de “7 Gatinhos” marca a renovação do espaço criado por Zé Celso Martinez Corrêa.
“Esse elenco antigo, branco, cis, patriarcal… a gente tá explodindo isso. E tá nascendo dentro de nós uma possibilidade, um pequeno broto”, afirma a diretora sobre a nova conformação da companhia, que agora inclui mulheres e homens trans e corpos diversos em cena.
O processo é intenso: “Essa equipe de pessoas muito jovens, pulsantes e vivas, e ao mesmo tempo conflituosas… tudo vira questão. São novos corpos, novas reivindicações, e isso tudo é uma panela de pressão.”
Mas é nessa tensão que ela vê a potência transformadora: “Muito cuidado com esse broto, para que ele floresça. Há uma busca imensa por amor, por união. Precisávamos subir pra essência, entrar num estado de conexão.”
Para Joana, essa renovação aponta para o futuro: “Essa cesalpina tá apontando pro parque, pros rios, pros povos indígenas, pros povos negros. Estamos ruindo, mas está nascendo uma possibilidade dentro de nós.”
“7 Gatinhos” segue em cartaz no Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520 – Bixiga/SP) até 25 de dezembro, sempre às segundas e terças, às 20h. Ingressos de R$ 25 a R$ 120.



