Todo menino é um Rei
Caetano, Bethânia e a família Velloso celebram o Terno de Reis em Santo Amaro, uma oportunidade para refletirmos sobre a infância num Brasil que regride socialmente.
Há um Brasil que gosta de festa e que levanta a bandeira da alegria, para ocupar as ruas, percorrer casas e comunidades, levando música, cores e brilhos, como os presentes oferecidos ao menino Jesus pelos Reis Magos da tradição católica. Esse Brasil que transforma devoção em festa é o que encontramos nas ruas da pequena Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, na noite de seu Terno de Reis.
Chegamos ao casarão de número 179 da Rua do Amparo acompanhados por um de seus filhos mais ilustres, o cantor e compositor Caetano Veloso. Lá dentro, a cantora Maria Bethânia, junto aos irmãos Mabel e Rodrigo Velloso, aguardam pela visita dos reis e também dos que não são reis. Durante décadas, foi a matriarca da família, Dona Canô, quem abriu as portas de sua casa para os festejos, tradição que agora é mantida pelos filhos.
“Essa menina sempre gostou de festa”, nos recorda o enfeite com a fotografia de Dona Claudionor Viana Teles Velloso ainda menina, colocado na porta da casa onde cresceram Caetano e Bethânia. Foi o irmão Rodrigo quem fundou o Terno de Reis Filhos do Sol em 1954, para homenagear o aniversário de casamento dos pais, Zezinho e Canô, e também para manter viva a tradição da celebração aos Reis Magos, trazida ao Brasil pelos portugueses.
Em tempos de retrocesso social, como esses que vivemos, a defesa da alegria é ainda mais fundamental. Sobretudo quando o avanço da pobreza extrema impacta em nossas crianças e adolescentes.
É impossível viver a festa dos Reis Magos, sem pensar de forma mais ampla na questão da infância no Brasil e no crescimento da pobreza e da vulnerabilidade social dessa parte da população brasileira. Um dos dados mais alarmantes divulgados em dezembro pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na SIS (Síntese de Indicadores Sociais) conclui que, de 2016 para 2017, aumentou o números de pobres e que 43,4% das crianças entre 0 e 14 anos estão abaixo da linha de pobreza. O relatório também mostra que essa faixa etária está mais vulnerável, sendo a faixa etária mais privada de proteção social, condições adequadas de moradia e saneamento básico.
O levantamento, baseado na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), não é o primeiro a constatar que o Brasil se tornou mais pobre e mais desigual nos últimos anos, afetando principalmente as regiões Norte e Nordeste, com efeitos devastadores principalmente entre as mulheres negras com filhos e sem cônjuges.
Do total de brasileiros em domicílios em que a pessoa de referência era uma mulher sem cônjuge e com filhos de até 14 anos, 56,9% estavam abaixo da linha de pobreza. Se a responsável pelo domicílio era uma mulher preta ou parda (igualmente sem cônjuge e com filhos no mesmo grupo etário), essa incidência subia para 64,4%.
Enquanto caminhamos por Santo Amaro acompanhando o Terno de Reis Filhos do Sol, é impossível não pensar nos filhos do abandono parental, nos filhos das mulheres negras que regressam à extrema-pobreza. É impossível não desejar mais empatia, compaixão e solidariedade num país que trata assim sua infância e que joga na vulnerabilidade social milhões de meninos e meninas que como Caetano e Bethânia, poderiam encher de orgulho suas famílias e comunidades se tivessem mais oportunidades.
Enquanto avança a miséria e a fome em nossos lares, convém recordar que no Brasil do século XXI há milhões de meninos e meninas a quem precisamos presentear não apenas com incenso, ouro e mirra, mas com comida, escola e oportunidades de futuro, afinal, todo menino é um rei.