Tivemos um “Stonewall” brasileiro?
Onde nós estávamos durante aquele junho de 1969?
Por Rodrigo Cruz Lopes
Todo mês de junho, nós tiramos a bandeira do arco-íris do armário para realizar paradas LGBTQIA+ globalmente. O marco de junho é escolhido por conta da lembrança pelo aniversário das revoltas de Stonewall, tornando-se um símbolo da luta pelos nossos direitos. Para nós da América Latina, o movimento americano é por vezes tomado como parâmetro de comparação com as nossas próprias experiências. Mas afinal, o que Stonewall tem a ver com o Brasil?
Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova Iorque invadiu o bar Stonewall Inn com a premissa de apreender álcool ilegal. A ação dos nove policiais que entraram no bar, contudo, não se passava de um pretexto para a repressão. A situação, por outro lado, foi se transformando em sucessíveis atos de resistência contra a opressão de homossexuais que durou até o dia 03 de julho, ficando conhecidos como a Revolta de Stonewall.
Paralelamente, enquanto os homossexuais se mobilizavam nos Estados Unidos, o Brasil passava por um dos momentos mais rígidos da nossa ditadura civil-militar instaurada em 1964 e financiada pelo governo estadunidense. Em relação aos nossos corpos, a Censura Prévia, por exemplo, coibia qualquer manifestação cultural “contrária a moral e aos bons costumes” considerando que “tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira”[1]. Partindo desta premissa de combate a liberdade sexual, a homossexualidade foi duramente reprimida durante todo o regime militar por ser considerada uma ameaça a família tradicional brasileira.
A ditadura, no entanto, não impediu que a onda de Stonewall chegasse ao Brasil, uma vez que diversos intelectuais e militantes brasileiros assinavam jornais que se proliferaram nos Estados Unidos após as manifestações em Nova Iorque. É o caso de João Antônio Mascarenhas que recebia em sua casa o Gay Sunshine e por conta dessa ponte, o editor do jornal americano Winston Leyland se interessou em fazer matéria sobre o Brasil, reunindo-se aqui com Mascarenhas e outros jornalistas e intelectuais homossexuais, tais quais: Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan, Darcy Penteado, Francisco Bittencourt e Peter Fry. Em entrevista concedida a Carlos Roberto Silva, Mascarenhas diz ter perguntado aos colegas após o encontro: “Se ele (Leyland) pode desenvolver esse trabalho há tantos anos, nós aqui poderíamos fazer algo igual ou melhor!?”
É desta forma que nasceu o expoente jornal Lampião da Esquina em 1978, escrito por homossexuais com linha editorial voltada para as minorias combatentes à ditadura civil-militar. Lampião é hoje uma das principais fontes sobre a história do movimento homossexual ao LGBTQIA+ do Brasil[2]. É a partir dele que podemos conhecer, por exemplo, o Grupo de Ação Lésbico Feminista (GALF) e o Grupo Somos, primeiro movimento político homossexual organizado do nosso país.
No início dos anos 1980, estes grupos são personagens presentes em dois eventos geralmente considerados um levante homossexual tardio se comparado com a experiência de Stonewall. No aniversário de onze anos da revolta americana, em junho de 1980, o delegado Wilson Richetti da Delegacia Seccional do Centro de São Paulo preparou uma “operação limpeza” visando principalmente travestis, trabalhadoras sexuais e boates voltadas ao público homossexual. Na época, a edição nº26 de Lampião denunciou que em menos de uma semana, 1500 pessoas foram autuadas, além disso, delatou a tortura sofrida por travestis e prostitutas, descrevendo que uma das presas: “se atirou da Seccional do Centro para escapar da violência”.
No dia 13 de Junho, doze movimentos sociais se levantaram contra as ações da polícia na frente do Teatro Municipal: : Somos: afirmação homossexual, Movimento Negro Unificado (MNU), Ação Lésbica Feminista, Núcleo de Defesa da Prostituição, Associação de Mulheres, Grupo Feminino 8 de Março, Convergência Socialista, Departamento Feminino USP – DCE-Livre, Grupo Eros, Ação Homossexualista e Nós Mulheres entoavam gritos como “Amor, feijão, abaixo ao camburão”, “Libertem as travestis” e “Somos TODAS PUTAS”. A organização dos setores democráticos contra a violência levou ao secretário de segurança pública e os delegados responsáveis a terem que depor na Comissão de Direitos Humanos da ALESP, encerrando os planos de Richetti na “operação sapatão” realizada no Ferro’s Bar em dezembro daquele ano.
O Ferro’s volta a ser palco em conflitos com a polícia entre 23 de julho a 19 agosto de 1983, não é coincidência que essa última data é também é o Dia Nacional do Orgulho Lésbico, pois ela foi escolhida justamente por conta das manifestações do GALF contra o preconceito sofrido pelas mulheres lésbicas no estabelecimento, principais frequentadoras do bar. O boletim Chanacomchana editado pelas militantes do grupo descrevem que, em julho, o dono do bar proibiu a divulgação do boletim no interior do Ferro’s e chamou a polícia para dispersar as “baderneiras”. No entanto, as mulheres do GALF organizaram um ato naquele dia de agosto com presença de outros movimentos e da imprensa. Na ocasião, de acordo com a quarta publicação de Chanacomchana[3]:
Cercado por jornalistas, lésbicas não-militantes ou do GALF e pela vereadora Irede, o dono foi obrigado a discutir suas atitudes e as militantes do GALF conversaram com o dono e conseguiram com que ele declarasse perante imprensa que o grupo poderia divulgar seu boletim dentro do bar.
Por conta dos elementos que integram esse episódio: a relação íntima com o bar e o conflito com a força policial em uma metrópole, ele ficou conhecido como “pequeno Stonewall brasileiro”[4]. É inegável, assim, a influência positiva que Stonewall teve sobre nosso movimento homossexual durante os anos 1970 e 1980, tendo possibilitado uma rede de militância homoerótica internacional, mas tomá-lo como modelo de comparação para nossas experiências parece apenas servir para diminuí-las sem reconhecimento das nossas especificidades. Criar um Gay Sunshine em um país pretensamente democrático e imperialista – como é os Estados Unidos – não se compara a um Lampião da Esquina ou Chanacomchana confrontados a combater os preconceitos no meio de uma ditadura civil-militar. As histórias narradas aqui são apenas duas das inúmeras de perseguição e resistência que nossos corpos participaram e ainda participam no nosso país. O Brasil pode até ser o lugar que mais nos mata no mundo e isso não vem de hoje, mas é nele também onde construímos a maior parada LGBTQIA+ nesse mesmo mundo, ou seja, para que isso seja possível aqui, é um Stonewall ou mais por dia.
[2] Todas as edições de Lampião da Esquina estão disponíveis no site do Grupo Dignidade
[3] As edições de Chanacomchana estão disponíveis no Acervo Bajubá
Rodrigo Cruz Lopes é doutorando em Ciência Política na Unicamp