O projeto Terreiro de Mangueira, mesmo tendo atravessado uma pandemia, chegou aos seus 5 anos. É formado por amigos que se conheceram através do samba, principalmente no subúrbio carioca, e hoje se consideram uma família. Com o desejo de escutar e cantar sambas pouco executados no cenário, o grupo resolveu botar pra frente um sonho antigo: criar uma roda de samba com identidade própria, no sentido de resgatar compositores e composições já não tão lembradas. Através de amigos, conseguiram um espaço no pé do Morro da Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro, reduto de grandes sambistas que imortalizaram pérolas deste gênero musical.

O projeto se consolidou tocando todo terceiro sábado do mês com um diferencial: resgatar sambas antigos, de compositores famosos ou não, tocando de forma acústica. A ideia é uma roda com músicos alinhados com a proposta, e um público a fim de interagir, trocar e aprender. O ambiente é bem intimista e interativo, com a galera animada, cantando e batendo na palma da mão. O projeto visa ser um espaço democrático, e já chegou a botar mais de 500 pessoas em alguns eventos.

De acordo com o cavaquinista do grupo e um dos produtores do Terreiro, Valmir Marques, que toca desde a adolescência mas não vive profissionalmente do samba, botar um samba na rua não é uma tarefa muito fácil, principalmente algo tão específico como o que eles fazem. “Sendo samba popular e mais antigo, tudo é mais difícil ainda. Resolvemos entre nós quatro,  criamos coragem, conversamos com amigos próximos, e juntos conseguimos  chegar no que somos hoje. Antes de chegar no Varandão, tentamos outros espaços, até que um casal, amigos do dono do bar , sugeriu esse espaço no pé do morro e gostamos muito. Muito sambista vem aqui”, explicou.

Rodas como Terreiro de Crioulo, Samba da Cabeça Branca, Serrinha, Pedra do Sal e tantas outras, são algumas das referências das andanças do grupo antes de construir sua própria identidade e espaço.“Juntamos a vontade de escutar e fazer samba do jeitinho que a gente gosta”, complementou Lucia Maria, uma das produtoras. 

Um dos intuitos quando o projeto foi criado, segundo Aurea Monteiro, produtora e integrante da roda, era trazer composições do povo da Mangueira, devido à importância da escola de samba.“Tem muita gente que estava sendo deixada de lado, então as crianças não estavam sabendo quem era Cartola, Nelson Cavaquinho, Preto Rico, etc. Começamos com esse resgate para entender a grandiosidade desse morro, e todos os outros baluartes cantados em outras rodas de samba”, afirmou.

Foto: Terreiro de Mangueira

O Terreiro de Mangueira canta muito Candeia, Zé Keti, Wilson Moreira, Noel Rosa, Almir Guineto e tantos outros compositores mais antigos, mas não tocam só os clássicos desses mestres. Foi assim que foram atraindo um público apreciador de samba de raiz, e também de outros sambistas. A cantora Teresa Cristina, por exemplo, já passou por lá algumas vezes e divulgou bastante em suas redes dando muita visibilidade à proposta. Paulinho Henrique do Terreiro de Crioulo, Chico Alves, Vanderlei Monteiro, Bira Show e Guesinha, filha de Dona Neuma, da Mangueira, dentre outros, também já passaram pelo samba e sempre que podem, voltam.

Em 2023 começaram a ser chamados para tocar em outros lugares. Há três anos fazem o famoso Trem do Samba, que leva diversas rodas para Madureira, na zona norte do Rio, em comemoração ao Dia do Samba. Tiveram também a primeira experiência fora do Estado, quando foram tocar em Belo Horizonte (MG), mas com algumas dificuldades.“É um projeto difícil de colocar em qualquer lugar. Não é que a gente não queira, mas procuramos ficar aqui. O nosso samba é muito específico, acústico, antigo, não é fácil. Para a gente também é mais interessante fazer com que o público venha”, destacou Valmir.

Na conversa com os produtores, ficou clara a unanimidade de fazer a festa no próprio quintal, sem pensar muito no crescimento do projeto para fora. Para a produtora do grupo, Aline Maia, muitas propostas que aparecem querem fazer adaptações que não se adequam ao formato do projeto. “Não vemos essa necessidade. Somos muito fieis ao nosso propósito, e está muito claro esse nosso trabalho de resgate com o público. Queremos a participação das pessoas, quem quer ouvir está ali na roda e aprende da maneira que a gente aprendeu também. Anota um pedacinho do samba, pesquisa sobre o compositor e outras músicas, já chega no próximo trazendo outras coisas. Se a gente vai só para os sucessos, não é o Terreiro de Mangueira”, explicou. 

O desafio do mercado

Atualmente o grupo é composto por seis músicos, sendo dois, produtores da roda. Os demais tocam profissionalmente em outras projetos pela cidade, como Raphael Gravino (Violão do GRES Acadêmicos do Salgueiro) e Raul Benjamim (Sambotica, Boteco do DG). A correria é sempre fechar com a bilheteria, a venda de bebidas, comidas, para o pagamento da equipe e dos músicos. A busca nunca foi, segundo eles, o aspecto financeiro. A prioridade é pagar o espaço, os artistas, o som e as bebidas. Com o passar do tempo, o público foi chegando e tornando o projeto mais auto sustentável, mas ainda assim nem sempre a conta fecha.

“Todos os músicos adoram o terceiro sábado do mês, porque aqui é onde a gente bebe da fonte, se realiza e faz o que gosta. Porque nem sempre o artista faz o que gosta, não é?”, questionou Lucia Maria. “O dia que não der mais, não deu. A gente gosta disso: luz clara, intervalo com samba, sem amplificador, e é muito difícil. Tem produtores que não querem isso”, complementou Aurea Monteiro. 

O sentimento geral é de trazer um público maior e que a cada edição aumente a participação de pessoas que se identificam com este tipo de proposta. Sambistas de outros grupos, como Galocantô, Samba do Trabalhador, Moça Prosa, Pagode da Garagem, Samba da Volta, Casa de Marimbondo, do Bar Bip Bip, dentre muitos outros, frequentam ou já passaram também pelo estabelecimento. O jornalista Pedro Bassan e o ator Humberto Carrão também já foram vistos curtindo. A ideia é não crescer só nas redes sociais (atualmente quase 20 mil no Instagram), e sim dar mais qualidade ao que é oferecido no local e garantir o ganha pão dos envolvidos na empreitada.

“Sem vaidade, um vai passando para o outro. Entender a nossa proposta e que tem gente que faz isso na cidade. Muitas rodas fazem, na verdade, e às vezes a gente desconhece. Estamos abertos para todos, a pessoa pode pedir um tom e cantar. Esse povo do samba é importante para a gente”, reforçou Aurea Monteiro.

Aline Maia, Aurea Monteiro, Lucia Maria, e Valmir Marques

Renovação geracional e os antigos

Questionados sobre a renovação geracional do samba e o cenário atual, frente ao propósito de resgate dos antigos no projeto, há uma convergência no sentido de “sempre cabe mais um, desde que haja qualidade”.

“Quando a gente fala de qualidade, é sempre importante manter a perspectiva daquilo que a pessoa se propõe a fazer. Porque se a gente julgar a partir da nossa ótica, às vezes parece que a gente não curte o trabalho, mas não é isso. São propostas de trabalho diferentes, acho que tem uma nova geração que já nem é tão nova e chega muito forte criando e alcançado muitos lugares. Muitos deles estão indo para outros estados e sendo cada vez mais conhecidos”, disse Aline Maia.

“Não existe fase ruim para samba, e sim gerações e muitos nichos diferentes. Nós, por exemplo, temos um público muito específico. Quem vem pela primeira vez, a gente fala: galera, vamos conversar lá atrás, aqui é para aprender. Não tem problema não saber, estamos todos aqui para aprender. Então, não tem bom e ruim, tem todos os gostos e o que você está procurando. Nossa maior preocupação é a alegria dos nossos músicos, que eles recebam e saiam daqui bem”, acrescentou Lucia.

Foto: Terreiro de Mangueira

Samba e política

Durante as eleições da vitória do presidente Lula sobre o Bolsonaro, havia um sentimento geral por parte do público participante dos eventos em defesa da democracia e do candidato e programa que acabou vencendo. Apesar de não se manifestarem publicamente nas redes e durante as rodas, fica evidente entre o público que frequenta o local uma característica mais à esquerda contra a intolerância e os preconceitos em geral. Segundo os integrantes do grupo, a política se faz nos repertórios e referências a personalidades que já passaram pelo samba.

“Por mais que a gente não levante bandeiras de maneira oficial usando o nome do Terreiro, acho que temos um entendimento das nossas questões: somos mulheres negras, vivendo no Rio de Janeiro, fazendo samba e cultura popular, dentro de uma comunidade. Isso na sua essência é uma atitude política, então a gente sempre se posiciona a favor dessa e outras questões”, ressaltou a produtora Aline Maia

Para uma das produtoras, Aurea Monteiro,  samba e política caminham juntos, como dizia Candeia: “Ele já fazia política lá na década de 70, teve samba censurado naquela época, então isso tudo tem muito a ver. A gente que é devoto dele não pode deixar de falar de política, expondo nas músicas, no samba e em situações de momento”.

No Dia do Samba no ano passado, a vereadora Tainá de Paula (PT-RJ), que foi reeleita como uma das mais votadas na Câmara Municipal, por exemplo, passou pela casa e acabou fazendo uma fala política. Ela foi a segunda mulher preta mais votada na cidade, e isso é muito importante para o projeto ao dar visibilidade e reforçar as mesmas bandeiras de luta.