Começa oficialmente em agosto a Temporada França-Brasil 2025, uma iniciativa cultural e política que marca o relançamento da relação entre os dois países após a ruptura diplomática provocada pelo governo Bolsonaro. Proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro encontro com Emmanuel Macron após a reeleição, a Temporada é mais do que uma celebração artística: é uma aposta estratégica na diplomacia cultural como ferramenta de transformação.

Inspirada nos intercâmbios realizados em 2005 e 2009, a nova temporada tem como eixos centrais a democracia, o meio ambiente e a diversidade cultural. À época da última experiência, a Temporada resultou em um incremento de 25% no número de turistas franceses no Brasil, e as matrículas em cursos de português na França apresentaram crescimento superior a 30% — números que evidenciam o sucesso da iniciativa.

Neste ano, são quase 300 projetos, sendo 108 cruzados, frutos de colaborações entre instituições e artistas da França e do Brasil. Os destaques da programação estão disponíveis para consulta. A programação completa será disponibilizada na internet até o dia 15 de agosto.

“Queremos construir relações de longo prazo entre organizações da sociedade civil dos dois países. O foco foi em projetos com potencial de continuidade”, afirma Anne Louyot, comissária francesa da Temporada e diplomata de carreira com especialização em diplomacia cultural.

Poética da Relação

Anne conta que se inspirou muito no poeta Édouard Glissant e sua poética da relação para construir a curadoria.

“Esse conceito mostra o poder do diálogo, da energia das relações humanas, bilaterais e multilaterais. Essa temporada é um evento diplomático onde a cultura tem um papel fundamental para alimentar e estimular esse diálogo. A cultura não como um fim, mas como um território aberto; não como uma identidade fechada, mas como fermento de encontro; não como só as coisas do passado, mas como poder de transformação, dinâmica, sempre em movimento.”

O filósofo e escritor franco-caribenho Édouard Glissant, autor de ‘A poética da Relação’. Foto: Divulgação

Glissant é um pensador da diáspora que elaborou um impactante projeto filosófico e poético para refletir sobre os efeitos da colonização. Além de influenciar a Temporada, sua obra também estará presente em “A terra, o fogo, a água e os ventos: Por um Museu da Errância” — a primeira exposição internacional apresentando a coleção de arte de Glissant em relação às novas gerações. A mostra estará no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a partir de 2 de setembro.

Paulo Miyada, diretor artístico do Instituto Tomie Ohtake, explica que a obra do poeta martinicano defende a importância da relação entre diferentes. Segundo ele, Glissant propõe que pessoas e comunidades podem se transformar mutuamente a partir do encontro, sem que isso exija o apagamento das diferenças, da opacidade ou do que é intraduzível em cada um. Para Miyada, essa perspectiva se contrapõe diretamente a discursos de ódio e políticas que enxergam a diferença como uma ameaça à integridade dos indivíduos.

Territórios e periferias no centro

A programação, que começa na França e se estende até dezembro no Brasil, envolve espetáculos, exposições, fóruns, festivais, mostras e residências, ocupando cidades como Brasília, Salvador, Belém, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza e Belo Horizonte.

A curadoria priorizou iniciativas que nascessem da colaboração entre instituições francesas e brasileiras, com foco em territórios periféricos e criativos dos dois países. A proposta é desconcentrar a produção cultural, ampliar o acesso e valorizar as resistências locais.

Coreógrafa guadalupense Lena Blou se apresentará na Bienal Internacional de Dança do Ceará. Foto Lou Denim

Na curadoria, os territórios franceses ultramarinos também conquistaram destaque. “Trabalhamos também com Guiana, Martinica e Guadalupe para promover uma França que o Brasil ainda não conhece”, destaca Louyot.

Um exemplo é a programação da FLUP (Festa Literária das Periferias), que acontecerá de 20 a 29 de novembro, no Rio de Janeiro, e receberá autores, poetas e pensadores caribenhos, africanos e europeus, fortalecendo as trocas literárias transatlânticas.

Serão mais de 40 atores da intelectualidade francófona, entre eles Bonaventure Ndikung (voz potente nos estudos raciais e de gênero), Felwine Sarr (economista e filósofo da descolonização), Patrick Chamoiseau (ícone literário caribenho), Malcolm Ferdinand (ecoativista e teórico da justiça climática) e Mabolula Soumahoro (estudiosa afro-diaspórica).

Um triângulo virtuoso: Brasil, França e África

Além do foco bilateral, a Temporada aposta na criação de um novo triângulo de cooperação entre Brasil, França e África, com trocas artísticas, gastronômicas, acadêmicas e musicais.

“Queremos formar um triângulo virtuoso. Nossas histórias coloniais são diferentes, mas nossas responsabilidades e possibilidades de ação conjunta são complementares”, explica a diplomata.

Obra de Alexia Ferreira, artista visual de Fortaleza, presente na exposição O Poder de Minhas Mãos.

Entre os destaques dessa conexão estão a exposição O Poder de Minhas Mãos no SESC Pompeia, com artistas da diáspora africana; e o festival WOW – Mulheres do Mundo, no Rio de Janeiro, com diálogos entre mulheres da Maré, da Guiana e da Martinica sobre justiça climática e racismo ambiental.

Democracia em cena, com a juventude

A cerimônia de abertura oficial da Temporada será o Fórum Democracia e Juventude, em Brasília, entre os dias 19 e 21 de agosto, reunindo 80 jovens brasileiros e franceses em debates sobre economia solidária, igualdade de gênero, combate à desinformação e democracia cultural.

O Fórum faz parte do Festival Convergências, que nasce do encontro entre culturas, ideais e propósitos comuns. O festival ocupará diferentes espaços da capital federal com atividades gratuitas entre 18 e 23 de agosto. A programação inclui ainda o espetáculo aéreo Respire, da companhia francesa Les Filles du Renard Pâle, com uma performance de funambulismo entre o Museu da República e a Biblioteca Nacional, além do show da premiada cantora Angélique Kidjo, ao lado de convidadas brasileiras especiais.

Angélique Kidjo se apresenta no Festival Convergências, em Brasília. Foto: Divulgação

“Eu achei simbólico começar com um evento em Brasília, que é o coração da democracia brasileira. Um evento bilateral com participantes brasileiros e franceses sobre a questão democrática, que é uma urgência de primeira importância para o mundo — e especialmente para as novas gerações”, comenta a curadora Louyot.

Cultura como estratégia de paz

Mais do que uma programação cultural, a Temporada se estrutura como uma política de longo prazo, com projetos de formação, residências artísticas e continuidade institucional. “Acho que esses dois países também podem trabalhar juntos para fazer da cultura uma ferramenta pacífica de evolução”, conclui Louyot.

Outro projeto que carrega esse espírito é o fórum Nosso Futuro – Diálogos África-Europa, que acontece em Salvador de 5 a 7 de novembro. Personalidades africanas e europeias participarão do encontro para discutir grandes desafios sociais e imaginar novas formas de cooperação, reafirmando a importância das trocas entre África, Europa e suas diásporas.

Anne Louyot. Foto: Francio de Holanda

Diplomata de carreira, Anne conta que escolheu a diplomacia cultural porque ela toca as pessoas e constrói relações entre comunidades: “É uma diplomacia mais profunda, mais duradoura. Queremos buscar novos caminhos de diálogo entre nós, nossos países, e estabelecer esses diálogos para um mundo em paz”, finaliza Louyot.