
‘Tempo de Guerra’: O mergulho de Alex Garland no véu bélico do horror
Depois de questionar a política interna dos EUA em “Guerra Civil”, Garland volta seu olhar para a guerra do Iraque, ao lado de Ray Mendoza, em um relato visceral baseado em fatos reais
Por Hyader Epaminondas
Há um tipo de silêncio que só existe no campo de guerra. Não é a ausência de som, mas a ausência de sentido. Em Tempo de Guerra, Alex Garland e Ray Mendoza expõem esse vazio até que reste apenas a carne viva da experiência. Sem discurso, sem bandeira, sem Deus. Apenas o homem, seu fuzil e o pavor. O corpo é o último a desistir: sangra, treme, corre. Mesmo quando a mente já não entende mais o que faz ali.
Se em Guerra Civil, Garland dissecava a violência simbólica da imagem e da política, aqui ele mergulha na brutalidade tátil da operação militar. A guerra é exposta como sobrevivência crua, sem metáforas. Ainda assim, o filme é profundamente imersivo, como se cada disparo em Ramadi reverberasse no estômago de quem assiste.
Não há espaço para glamourização ou heroísmo. Os soldados funcionam como uma entidade coletiva. Mesmo com rostos conhecidos no elenco, isso se desfaz com o primeiro tiro. Tudo é claustrofóbico, abafado, coberto de poeira. O realismo transforma a locação em um campo de batalha real, um pesadelo digno de um transtorno de estresse pós-traumático.
Embora o foco esteja nos soldados americanos, o filme evita qualquer panfletagem. Ao contrário, como era de se esperar da união criativa entre Garland e Mendoza, o que emerge é um autêntico filme de terror. A guerra, aqui, é capturada com frieza quase documental. O horror está nos olhos de quem sobrevive e isso fica explícito quando enquadra ambos os lados do conflito, e a câmera registra um recorte tão aterrador quanto honesto da realidade.
Um drama encarnado
A imersão começa já nos créditos iniciais, com momentos banais de descanso e lazer. Pessoas comuns, fragmentadas em cenas de um cotidiano qualquer, antes de mergulharem no mar de sangue onde a pólvora se dissolve como veneno. A sonoplastia sustenta esse tom de desespero constante. Há pausas longas em que nada acontece, mas tudo é tensão. A guerra nem sempre grita. Às vezes, apenas sussurra até ensurdecer.
Baseado em relatos das Forças Especiais da Marinha dos EUA, o drama de guerra se desenrola quase em tempo real, expondo o delírio de um combate sem heróis. Não há suspense tradicional. A ameaça não tem rosto, ela se arrasta, se oculta, se infiltra, como a areia que gruda na pele dos soldados. O filme não oferece explicações geopolíticas, seu objetivo é fazer você sentir o desamparo absoluto. E, para deixar bem claro: a ameaça aqui não é uma inimiga visível, mas algo intangível, escondido e perdido nas inúmeras camadas da hierarquia cívico-militar.
Não há nomes, apenas funções. A individualidade se desfaz. A guerra corrói até a programação do treinamento. Nesse solo árido, a humanidade parece um erro de cálculo. É aí que o filme toca no que Lacan chama de o Real: aquilo que escapa à linguagem, que não cabe em narrativas. O real da guerra é o trauma. Um buraco que a razão não preenche. Tempo de Guerra não tenta representar, ele expõe. A câmera não encontra poesia, ela a inventa, como única forma de não sucumbir.
Esse sentimento reverbera nas guerras contemporâneas. Apesar da vigilância de drones e das tensões entre EUA e China, o inexplicável persiste, de Gaza à Ucrânia, nos confrontos velados e nas batalhas abertas, algo sempre escapa à compreensão. O medo nasce tanto do que é visível quanto do que permanece oculto. Tempo de Guerra captura essa essência: um reflexo dos conflitos atuais e um aviso das batalhas que ainda virão.
O trauma como roteiro
D’Pharaoh Woon-A-Tai, no papel do jovem Mendoza, é um achado. Seu olhar está sempre em alerta, buscando uma saída, uma resposta. Ao seu redor, Will Poulter, Joseph Quinn e Cosmo Jarvis sustentam uma narrativa sem música, guiada apenas pela respiração dos personagens. Quando eles correm, você corre. Quando param, é o mundo que explode em ruído.
Apesar de Mendoza ser a alma do filme, a direção conjunta da dupla é precisa. A guerra deixa de ser pano de fundo, torna-se personagem. Opressiva. Indiferente. Cíclica. Sua vivência direta com os eventos projeta uma dimensão de urgência. Não são apenas lembranças, são cicatrizes. E cada cena carrega o peso de quem ainda sangra por dentro.
A tensão nas ruas, o peso das decisões, o medo constante, tudo pulsa. Cada movimento da câmera é uma tentativa de resistir a um trauma que ainda habita o presente. A angústia de Mendoza, dentro e fora de cena, causa no filme um nervo exposto, aproximando-o de um documentário emocional.
E é aí que Tempo de Guerra encontra sua poesia: feita de estilhaços, tremores e olhos que miram um horizonte sem promessas. Pode parecer que já vimos filmes assim antes, mas este se recusa a ser apenas cinema. Ele quer ser memória. Trauma. Persistência.
Porque, diante do Real, tudo o que resta é o corpo.
E ele treme.