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‘Sugarcane’ faz denúncia primorosa dos pecados da Igreja contra povos indígenas
Documentário indicado ao Oscar relata agressões sofridas por crianças indígenas em internato católico no Canadá.
Por Junyander
Em maio de 2021, o Canadá foi abalado pela descoberta de que mais de 200 crianças indígenas desaparecidas haviam sido enterradas clandestinamente nos arredores de um internato administrado pela Igreja Católica e financiado pelo governo. Os corpos encontrados eram de “alunos” da extinta Escola Residencial Indígena de Kamloops, parte da política estatal de “integração” dos povos originários que “educou” milhares de crianças nativas ao longo de décadas. A notícia de que haviam sido cavadas centenas de covas irregulares bem debaixo dos narizes da Igreja e do governo pode ter impressionado a nação; mas, para os povos indígenas do país, era apenas a confirmação de algo que eles já sabiam há décadas: ao longo da história canadense, “educação” significou apagamento cultural, e “integração”, nada menos do que genocídio – tal qual aconteceu em todas as Américas.
É com esse pano de fundo que tem início o longa “Sugarcane” (2024), indicado ao Oscar de Melhor Documentário neste ano. Acontece que a cidade de Kamloops abrigava apenas uma das dezenas de escolas internas criadas para “se livrar do problema dos índios”, as quais se espalhavam por todo o território nacional. Longe dali, na reserva indígena que dá nome ao filme, operava a antiga Escola Residencial da Missão de Saint Joseph, que está no centro de uma investigação realizada pelo povo indígena local, a Primeira Nação de Williams Lake, cujos membros foram vítimas do sistema missionário. Nos terrenos do colégio, suspeita-se que se encontram os restos mortais de outros “alunos” (seria mais apropriado dizer “reféns”) secretamente sepultados.
Os desdobramentos desses fatos são o foco dos cineastas Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie: mais do que em resultados, a dupla está interessada no significado do processo investigativo para os envolvidos e nos efeitos duradouros (coletivos e pessoais) dos acontecimentos investigados. Sua direção, a despeito do potencial alarmante do caso, afasta-se sabiamente do sensacionalismo e confere uma densidade intimista ao documento, sem prejuízo de sua importância coletiva.
Protagonizado pelo próprio Julian Brave NoiseCat, jovem indígena da Primeira Nação, o filme acompanha sua jornada pessoal e comunitária em busca de respostas sobre o histórico nebuloso da Missão de Saint Joseph. O pai de Julian, Ed Archie NoiseCat, fora obrigado, como tantas outras crianças de Sugarcane, a frequentar o internato local, onde sofrera todo tipo de agressão por parte dos padres que dirigiam o estabelecimento. O protagonista quer reconstituir a biografia de seu pai, que funciona como uma metonímia da história do povo ao qual pertence.
Com esse objetivo, os diretores dividem o documentário em quatro frentes, que avançam em paralelo sobre o passado da missão. Na linha de frente, seguimos os passos da ativista Charlene Belleau e da arqueóloga Whitney Spearing, encarregadas de apurarem as evidências dos crimes cometidos no colégio missionário (Charlene é tia de Julian; ela também fora submetida ao colégio interno e investiga o caso há anos). Em outro núcleo, observamos a rotina de Willie Sellars, chefe da Primeira Nação e porta-voz oficial da investigação junto à imprensa. Na terceira linha, acompanhamos as reações ao desenrolar das apurações pela perspectiva de Rick Gilbert, antigo chefe da Primeira Nação (outra vítima de Saint Joseph). Por fim, em primeiro plano, temos Julian, quem coleta, de porta em porta, relatos de testemunhas que ajudam a compor o quadro de violações de direitos emoldurado pela Igreja Católica – e pendurado pelo Estado canadense – e a desvendar a origem de seu pai, cujo nascimento, envolto em mistério, ocorreu dentro da missão.
À medida que a Primeira Nação se aprofunda nos eventos de Saint Joseph, diversas atrocidades são desenterradas antes que se possa confirmar a existência das covas ocultas nos terrenos do internato. A relevância pública da investigação é corroborada pela abrangência dos relatos em primeira pessoa dos abusos físicos sofridos pelos sobreviventes entrevistados. E – importante dizer – o termo “sobreviventes” não se trata de mera força de expressão: os castigos impostos pelos padres às crianças indígenas configuravam cruéis sessões de tortura, que iam desde obrigá-las a suportarem o peso exaustivo de calhamaços carregados com os braços estendidos acima da cabeça até a açoitá-las repetidamente. Tais crueldades eram apenas uma parte da rotina do colégio, e havia toda uma rede criminosa de sustentação e acobertamento desses atos hediondos, que eram agravados por um robusto sistema de violência psicológica de fundo religioso. Em mais de uma entrevista, os sobreviventes comentam: as mesmas pessoas que os definiam como pecadores eram as que cometiam os piores pecados.
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O conjunto desses relatos confere um peso dramático ao longa e cria uma atmosfera comovente, mas sem jamais cair em um tom alarmista, o que demonstra o cuidado dos realizadores com um assunto tão delicado. Cientes do interesse público em se fazer ouvir tantos testemunhos, é na valorização do silêncio e da intimidade que a direção de Julian e Emily se destaca.
A predileção por ambientes familiares em detrimento de locais abertos se reflete nas imagens, que capturam de forma contrastante as ações em cada um desses espaços: os eventos públicos são apresentados em cenas curtas, com a câmera sempre distante da figura central, em uma imagem trêmula ou avariada, ao passo que as interações particulares são contempladas em cenas longas, com a câmera próxima aos interlocutores, em um retrato nítido e firme. Quanto aos diálogos, é especialmente marcante o fato de que, sempre que o texto exige uma resposta, os planos se demoram em eloquentes silêncios, que adensam ainda mais o significado pessoal dos eventos pretéritos e presentificam o seu efeito sobre cada um dos envolvidos.
Tais opções criativas reforçam o sentido subjacente aos relatos: para os indígenas, locais públicos, como o espaço escolar, representavam uma zona de desconforto, alheia e insegura. Por outro lado, a ausência de palavras em ambientes intimistas sinaliza a existência de um incômodo ainda presente, provocado por algo indizível.
O zelo adotado no tratamento do conteúdo é sentido também na forma. A fotografia, além dos estratégicos enquadramentos, preza por uma iluminação suave e cores sóbrias, que contribuem para uma ambientação ao mesmo tempo lúgubre e reconfortante. A montagem, que alterna entre uma frente e outra, imprime um ritmo equilibrado, assegurando o interesse do espectador sem lhe roubar o tempo necessário para absorver cada cena ou assaltá-lo com a próxima revelação. A trilha sonora – um espetáculo à parte – acolhe perfeitamente as informações apresentadas, aprofundando os momentos de ruminação com sua melodia grave e desconcertante.
A atenção dada aos detalhes também é notável. Observe, por exemplo, a cena que abre o documentário: há um close-up em uma imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus em seus braços, seguido de um plano que abrange todo o terreno da Escola Residencial e, depois, de um enquadramento que recai sobre o cemitério. Em outro exemplo, no primeiro encontro de Julian com o pai, este apresenta uma desculpa pouco convincente para não ter retornado a Sugarcane; o filho rebate, dizendo que, na verdade, ele nunca está disposto a revisitar o local; a música aumenta a tensão do diálogo e a câmera se detém na fornalha que está acesa mais ao fundo, atrás de Ed. Em mais um caso, na sequência em que somos apresentados a Rick Gilbert, este é filmado entrando em um cômodo, pelo lado de fora; quando a câmera o enquadra pelo lado de dentro, sua figura é emoldurada, ao fundo, pela porta por onde ingressou, acima da qual há um crucifixo e um retrato do Papa Francisco. Todos esses elementos são, a princípio, apenas sugestivos; mas, de certa forma, preparam o espectador para as revelações que virão adiante, ganhando significados específicos quando considerados em retrospecto.
Em uma das cenas mais emblemáticas, apresentada logo no início do filme, há um diálogo elucidativo entre Julian e sua avó, Kyé7e. O protagonista pergunta como se diz uma palavra específica em Secwepemctsín, a língua da Primeira Nação de Williams Lake. A avó responde e, segundos depois, conta que, antes de as crianças passarem pelo internato, todas falavam Secwepemctsín; mas, depois que foram levadas para lá, as coisas começaram a mudar. “Eles estavam tentando arrancar isso de nós…”, diz. Com “isso”, ela estava se referindo a nada menos do que a sua identidade.
Na sequência, Kyé7e deixa escapar, como quem pensa em voz alta, que havia mais coisas sobre as quais ela deveria ter falado ao longo da vida. Seu neto pergunta: “Que tipo de coisas?” Kyé7e não responde. Novamente, reina o silêncio.
Sem deixar de reivindicar uma reparação pelos crimes cometidos ou de sublinhar a importância da memória coletiva, Julian e Emily optam por manter o foco na história dos indivíduos. Longe de uma abordagem exclusivamente personalista, tal escolha visa a lembrar que, no interior de um povo, mais do que números, há seres humanos, cuja história de sofrimento merece, sim, ser lembrada, mas sem ignorarmos o fato de que o direito à memória não está isento da revivescência do trauma e, por isso mesmo, deve ser tratado com respeito e cautela. Nessa direção, ‘Sugarcane’ abala, mas sem desesperar; impressiona, mas sem escandalizar; suscita repugnância, mas não apela à exasperação. Mais do que um registro digno, o resultado alcançado dá um contorno cinematográfico primoroso à realidade denunciada e nos recorda de que, além do direito coletivo de lembrar, existe o direito individual de esquecer.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.