Com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), histórias de contaminação por agrotóxicos, como da Comunidade Araça (MA), podem ser evitadas

Foto: Brasil de Fato

Texto de Marcelo Almeida, da Articulação Nacional de Agroecologia e Lizely Borges, da Terra de Direitos

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como constitucional a Lei 16.820/2019 que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no estado do Ceará. Apesar de ser uma lei estadual, o julgamento tem repercussão nacional. Isso porque a  Lei – única no Brasil de proibição estadual – é referência e de conteúdo similar a projetos de lei em tramitação em 18 estados. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6137/2019 julgada pelos ministros nesta semana é de autoria da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade, de representação dos interesses ruralistas, busca anular a lei em várias esferas e poderes, desde sua tramitação legislativa, na sanção da Lei pelo governador do Ceará, até a justiça estadual. Diante de seguidas derrotas, a CNA acionou o STF e, novamente, a organização ruralista perdeu.

No julgamento virtual encerrado na sexta-feira (26), por unanimidade, os ministros acompanharam o voto da ministra e relatora da ADI, Cármen Lúcia, pelo reconhecimento da constitucionalidade da Lei 16.820/2019, conhecida como “Lei Zé Maria do Tomé”. Líder comunitário e ambientalista, Zé Maria foi assassinado em 2010 por denunciar os efeitos nocivos dos agrotóxicos na fruticultura irrigada, na Chapada do Apodí.

E foi justamente a intensa contaminação de agrotóxicos por pulverização aérea de comunidades da Chapada do Apodi que motivou a elaboração e defesa da lei. Localizadas na divisa do Ceará com o Rio Grande do Norte, as comunidades passaram a apresentar maior ocorrência de câncer, doenças neurológicas, puberdade precoce, entre outras doenças e distúrbios. Diversos estudos atestaram que a intensa exposição aos agrotóxicos tinha direta relação com as enfermidades. A história de Apodi é semelhante a de diversas outras comunidades espalhadas Brasil afora. 

De acordo com o Dossiê “Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos”, elaborado pela Campanha Contra os Agrotóxicos e pela Terra de Direitos, a exposição forçada aos agrotóxicos impacta diretamente diversos direitos, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à vida, à saúde, ao trabalho digno, à alimentação e nutrição adequadas, à moradia e ao modo de viver. 

A publicação traz o estudo de 30 casos emblemáticos de violações coletivas de direitos humanos pela contaminação por agrotóxicos que mostram que, apesar de toda a sociedade ser afetada de alguma forma pelo veneno, as comunidades camponesas, os povos indígenas e as comunidades tradicionais correspondem à parcela da população mais exposta e vulnerável. 

As violações coletivas mais recorrentes identificadas pela pesquisa são a pulverização aérea de agrotóxicos, seguida da pulverização terrestre, da exposição em ambiente de trabalho e do despejo inadequado do produto e suas embalagens. Nesse sentido, as principais áreas contaminadas são residências ou moradias, onde também se acumulam impactos à saúde humana, com ocorrência de intoxicações agudas.

Um dos casos apresentados na publicação foi o da pulverização aérea contra as comunidades tradicionais de Carranca e Araça, localizadas no município de Buriti (MA), que aconteceu em abril de 2021. Cerca de 20 famílias camponesas (95 pessoas) foram atingidas pelo veneno lançado pelo avião pulverizador, o que acabou causando transtornos à  saúde  das pessoas atingidas. 

Moradores da comunidade tradicional Araça, em Buriti (MA), atingidos pela pulverização aérea de agrotóxicos. (Foto: Diogo Cabral)

Segundo Diogo Cabral, advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Polícia Civil foram imediatamente acionados para que apurassem o caso. Pouco tempo depois, a Defensoria Pública e a Fetaema ajuizaram uma ação civil pública contra as empresas e os dois sojicultores que foram identificados como envolvidos no lançamento dos agrotóxicos. Na época, houve instauração de inquérito policial e uma decisão judicial proibindo a pulverização aérea no raio de 1.500 metros das comunidades e determinando que os sojicultores custeassem os exames e atendimentos médicos das pessoas atingidas.

A ação civil pública segue sem julgamento até hoje e a liminar que proíbe qualquer pulverização nas proximidades das comunidades Carranca e Araça continua em vigor. Mas o inquérito policial, depois de uma demora excessiva para iniciar e de vários problemas na identificação de vestígios durante a perícia, concluiu que não houve materialidade delituosa dos fatos que foram denunciados pelas comunidades, ou seja, que não houve provas suficientes para constatar que um crime ocorreu.

“Isso é grave, pois nós entendemos que houve [provas do crime], sim, e isso atesta a omissão estatal em evitar esses tipos de situações de contaminação. E é permissivo também, no momento em que empresas e pessoas físicas cometem ilícitos ambientais e ficam impunes”, avalia o advogado.

Apesar de concluído, o inquérito ainda não foi enviado para o Judiciário, inclusive para que o Ministério Público possa se manifestar.

Cabral considera que essa situação revela como as grandes empresas de soja do Maranhão atuam com pouca vigilância e fiscalização estatal, já que a poluição causada pelo uso excessivo de veneno não é objeto de controle por parte do Estado. Quando há situações como essa, os crimes não são apurados da forma que deveriam ser e não há uma devida indenização e reparação dos graves problemas relacionados à saúde e aos prejuízos materiais.

Em alguns casos, como o de Araça e Carranca, além do lançamento do agrotóxico, existe um contexto de conflito agrário que é potencializado pela pulverização de veneno.

“Tem inclusive a desconfiança de que o uso desses produtos se encaixa na perspectiva de expulsão, ou seja, de criar situações de embaraço e de permanência na terra, impossibilitando o desenvolvimento normal das atividades econômicas, sociais e culturais dessas comunidades”, acredita Cabral.

Área desmatada pelo agronegócio em Buriti (MA). (Foto: Diogo Cabral)

Os desafios para fiscalizar o uso de agrotóxicos

A necessidade de qualificar os atuais mecanismos de fiscalização e controle do uso de agrotóxicos no Brasil também é uma questão apontada por Naiara Bittencourt, advogada da organização Terra de Direitos e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. 

Segundo Bittencourt, cada estado brasileiro possui seus próprios órgãos e instituições de fiscalização e controle, com normas e atribuições específicas, o que dificulta o atendimento a partir de um protocolo unificado e rigoroso. A maior parte das autuações ou fiscalizações depende de inúmeras provocações de comunidades ou sujeitos afetados, que diversas vezes não têm suas denúncias atendidas.

Ao ser questionada sobre quem perde e quem ganha com a estrutura atual de denúncia e fiscalização, a advogada responde:

“Quem ganha são as grandes empresas de agrotóxicos, proprietários, arrendatários e agentes violadores de direitos em geral, pois há pouca fiscalização e controle. Consequentemente, há poucas autuações. Assim, torna-se vantajoso aos violadores descumprir a legislação vigente, pois as chances de responsabilização são baixas. Quem perde, obviamente, são as comunidades e pessoas afetadas, especialmente as que vivem em áreas rurais e com grande presença do agronegócio com produção de commodities e alta aplicação de agrotóxicos.”

Esse contexto de pouca fiscalização do uso de agrotóxicos, omissão dos órgãos do Estado, falta de reparação e indenização das vítimas e medo dos denunciantes resulta em uma baixa judicialização dos casos. Para se ter uma ideia, dos 30 casos analisados pela pesquisa “Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos”, apenas 13 tiveram alguma judicialização (em um caso houve judicialização reversa). Alguns dos casos analisados ainda tramitam judicialmente, mas, até o momento, em nenhum deles  as vítimas foram integralmente reparadas. Em 3 casos houve reparação parcial e, em 27, não houve qualquer reparação pelos danos ou violações ocorridas. Em apenas 11 dos 30 casos houve responsabilização dos agentes violadores.

Foto: Agência Brasil

Entre as medidas que poderiam ser adotadas pela União e estados para garantir mais segurança às comunidades expostas, está a criação de um canal unificado para denúncias de contaminações ou intoxicações por agrotóxicos, que integre as devidas diligências nos âmbitos da saúde, meio ambiente, agricultura e direitos humanos, facilitando o atendimento da população exposta.

“Podemos cobrar para que os mecanismos de denúncia sejam unificados. E devemos fomentar que as denúncias sejam realizadas e divulgadas quando há omissão do Estado no atendimento e fiscalização”, sugere Bittencourt.

Mas, enquanto não existe um mecanismo unificado, o que se constata é uma realidade complexa para fazer uma denúncia de contaminação ou intoxicação por agrotóxicos no Brasil. Atualmente, os órgãos a serem acionados e o caminho a ser percorrido vai depender do tipo de violação e do impacto causado pelo veneno, que podem ser: intoxicações ou outros danos a povos, populações e trabalhadoras/es por agrotóxicos; pulverização aérea em desacordo com as normas técnicas; contaminação do meio ambiente; transporte, armazenamento e descarte irregular de embalagens de agrotóxicos; morte de abelhas, insetos ou outros animais; uso de agrotóxicos em áreas urbanas para capina química; contrabando e uso de agrotóxicos ilegais. 

Diante das dificuldades encontradas pelas comunidades nos estados e municípios, a Campanha Contra os Agrotóxicos criou uma sessão dentro do seu site com um passo a passo para orientar a realização de denúncias: https://contraosagrotoxicos.org/como-denunciar.

A página na internet traz diversas informações que podem ajudar na identificação dos danos causados, na coleta de provas e na busca de parcerias e apoios para fazer a denúncia e acompanhar a violação. Também é possível encontrar uma lista, por estado, de instituições e órgãos públicos do Sistema de Justiça e de diferentes áreas de atuação, como saúde, meio ambiente, fiscalização agropecuária, trabalho, direitos humanos, alimentação, entre outras.