Por Nicole Adler

Com apenas 19 anos, Kauê Alves lançou nesta quinta-feira (18/09) seu primeiro álbum, “Quando eu era quase eu”, que reúne parcerias com compositores regionais, como Samuel Carvalho — da banda Soprü —, e também com o renomado Paulo Novaes, compositor e produtor musical. A obra dialoga com a Nova MPB, mas carrega uma identidade própria, marcada pela “tocanticidade” e pela incorporação de elementos culturais do estado, como a tradicional Sussa de Natividade.

A produção do álbum é assinada por Frederico Garibalde, renomado produtor e músico atuante na cena tocantinense. Em entrevista, Kauê e Fred compartilharam detalhes sobre o processo criativo — da concepção inicial até o resultado final. O artista também revelou, em primeira mão, as motivações que o levaram à música, suas principais referências e a forma como constrói suas composições.

Início de tudo

O interesse de Kauê pela música começou aos 7 anos, quando seu pai, músico autodidata, lhe deu seu primeiro violão de presente. Embora a música sempre tenha feito parte de sua vida, com pais músicos e rodas de violão em encontros familiares, Kauê confessa: “de início não era um negócio muito gostoso não, confesso que eu fazia porque eu via meu pai feliz ali ensinando e não por realmente gostar de fazer e tal”. Com o tempo, porém, ele revelou: “Até que eu fui começando a ganhar paixão por aquilo, começando a inclusive a superar meu pai nas coisas, nas tocadas, e assim chegou num ponto que eu chegava com dúvidas e ele não sabia saná-las”.

Apesar de ter feito algumas aulas de guitarra, o músico afirma que a maior parte do seu aprendizado foi autodidata, explorando a internet e “tirar uma música e não entender porque aquilo era e ir atrás de pesquisar”. Seu processo de composição começou paralelamente ao aprendizado do instrumento. Kauê também conta que, desde a infância, escrevia poemas, e desses poemas surgiram suas primeiras composições.

Assim como a maior parte das pessoas, Kauê também se interessa muito pelos procedimentos que tangem os processos de composição dos artistas: “Toda vez que eu encontro (um artista), eu faço essa pergunta: Pô, como é que funciona o seu processo de criação, assim? Como é que você faz? O que é que você faz primeiro? É melodia, é letra, é o quê? Como é que é?”. Entretanto, relata que apesar de fazer essa pergunta à outros músicos, não possui propriamente um processo de composição, cada faixa é feita de um modo ou jeito diferente.

Nesse sentido, Kauê afirma: “eu acho que esse álbum também por seu primeiro, eu acho que ele conversa muito com isso, com esse fato de me descobrir como compositor também. Foi um álbum de descoberta mesmo, em diversas facetas, assim”. Daí já vem a primeira de muitas significações referentes ao nome do álbum, “Quando eu era quase eu”, que revela essa constante metamorfose e mudança de Kauê como músico, pelas variadas fases da vida.

“Eu costumo dizer que todas as músicas que eu compus agora, elas vêm sendo escritas desde o momento que eu comecei a aprender a tocar, desde o momento que eu conheci a música” – Kauê Alves

O mundo musical e cultural por trás do álbum

Já antecipando, entre todas as referências a maior é o Tim Bernardes, de quem Kauê é fã de carteirinha. O músico afirma: “Atualmente, eu vejo como referência nacional, o Tim Bernardes, o Rubel e o Paulo Novaes. Eu sinto esses três sempre como referência, é uma coisa que eu consumo muito e que eu conheço muito”.

Além do Tim, os outros dois também estão na frente. Apaixonado por Folk, o primeiro álbum que o músico mostrou para Fred no início dos trabalhos foi o Pearl, do Rubel. E declara, que uma das suas maiores referências também envolve o Bob Dylan, justamente por essa admiração ao gênero Folk.

Por acaso do destino, Paulo Novaes acabou sendo uma das participações do álbum, acaso que foi principalmente graças ao produtor Fred, e ao produtor recifense Raul Misturada. Kauê Alves contou sobre a experiência do músico ter topado: “Então isso foi muito mágico assim, e aí novamente cada vez mais, vendo aquela luz se transformando em realidade, aquilo tudo que eu sonhei”.

“A gente estava conversando esse dia sobre o acaso, é muito interessante como isso funciona e como as coisas vão acontecendo sem a gente pensar, sem a gente planejar, e só acontece, né? – Kauê Alves

Além das referências musicais, existe um mundo literário e fotográfico por trás, que incentivou profundamente o conceito estético e musical do álbum. Kauê relata que: “principalmente, dois escritores da modernidade agora, da contemporaneidade, que é o Bruno Fontes e o Vinícius Queiroz, são brasileiros e com certeza absoluta a poesia, a maneira como eles escrevem, influenciou muito na minha escrita também”. O músico completa, com outra referência estética muito importante no seu álbum: “E da construção visual do álbum, tem uma exposição fotográfica do escritor José Eduardo Agualusa, chamada A Gramática do Encontro e do Infinito”.

O processo de produção de “Quando eu era quase eu”

O conceito do “Quando eu era quase eu” pode ser compreendido como uma reflexão sobre as transformações naturais da vida. Assim como as experiências, emoções e perspectivas se modificam com o tempo, a música também acompanha esse movimento, adquirindo novas formas e sentidos. O título do trabalho remete justamente a essa condição transitória da existência, em que o sujeito nunca é plenamente estático, mas está sempre em processo de se tornar. Dessa maneira, as canções funcionam como retratos de momentos que, mesmo marcados por mudanças, preservam a essência do percurso vivido, revelando uma identidade em constante metamorfose.

O processo de produção começou quando o músico levou para Fred 12 músicas, onde cinco foram selecionadas para compor o álbum. Kauê relata que a afinidade com o produtor foi instantânea: “Eu acho que ele foi realmente a primeira pessoa que conseguiu me entender”. E completa que: “Eu acho que existe um campo assim, onde as palavras não habitam, as palavras não chegam, então é uma coisa muito sentimental, né? Ele conseguiu chegar nesse campo meu, ele conseguiu adentrar nisso, onde as palavras minhas não chegavam”.

Fred relatou exatamente esse compromisso como produtor: “o meu trabalho com produto musical é entender quais as referências, entender qual é a bagagem de som que o artista tem, qual é o gosto do artista, como ele deseja soar”. Muitas vezes, o trabalho do produtor acaba ficando em segundo plano em relação ao artista, como por exemplo Jards Macalé ao produzir o álbum Transa, de Caetano Veloso, entre diversos outros casos. Na entrevista, entretanto, Kauê destacou Fred repetidamente como uma peça fundamental na construção do projeto, enfatizando que “as pessoas que fazem a máquina rodar, são essas aí”.

“Acho que mais da metade do resultado ele vai acontecendo no meio do processo, como se a música falasse, e a gente fosse só canal pra receber e executar do jeito que tem que ser, do jeito que o universo queria que fosse” – Fred Garibalde

Além disso, o intuito de Kauê era fazer um álbum focado no violão e voz — algo que foi para um caminho bem diferente, claro, ainda com o violão em evidência. Mas é notória a quantidade de texturas que permeiam as faixas, tanto percussivas, quanto harmônicas, promovendo um dinamismo rítmico. Ele relatou que inicialmente queria um álbum triste e melancólico, principalmente devido a fase que estava vivendo. Entretanto: “Meus sentimentos foram passando também a esse decorrer do tempo e as músicas foram tomando uma nova forma e principalmente as músicas mais animadas que tem esse teor mais dançante, né. Então com certeza mudou, como eu mudei as músicas também mudaram”. Revelando, mais uma vez, o marco central que é o nome do álbum, o “quase ser eu” devido às metamorfoses constantes da vida.

A partir dos violões, então, todo o resto foi composto por cima. Fred enfatizou que apesar das referências como o folk e o indie, a sonoridade do álbum foi composta “tentando valorizar sempre elementos da cultura tocantinense, da cultura brasileira, com os células rígidas, por causa de maracatu, tem meio que uma roda de folia ali no início da faixa O Cisco”.

O disco conta com elementos da cultura tocantinense como a Roda de Folia no início da ‘O Cisco’. A roda de folia tocantinense é uma celebração popular de fé e música, em que foliões se reúnem em círculo para cantar, tocar e partilhar devoção comunitária. A sonoridade da roda de folia tocantinense é marcada pela fusão de vozes em coro com violas, caixas e pandeiros, criando um ritmo vibrante de devoção e festa.

Eles explicam também que buscaram tocar os violinos de Teógenes de forma rústica, aproximando ao máximo sua sonoridade da rabeca, instrumento tradicional do Norte/Nordeste. Além disso, simularam um roncador junto aos tambores e a um grito, buscando inserir ao máximo elementos que expressassem suas raízes locais dentro da proposta.

No que tange a composição de músicos, além do Paulo Novaes e Samuel Carvalho na voz, o álbum contou com outras participações: Nicole Adler no piano; Teógenes Sá no violino; Misha também na voz; José Alberto no rhodes e teclado; Pedro Henrique Sousa na bateria e percussão; e o próprio Frederico Garibalde em instrumentos como violão, baixo, guitarra e vocais, fazendo também a mixagem e masterização. Isso revela esse caráter colaborativo do álbum, sintetizando diversos tocares e perspectivas em unicidade.

Fred Garibalde, Kauê Alves e Nicole Adler durante as gravações do álbum. Foto: Kethelly Salgado.

O que esperar do álbum e do artista

Começando pelo artista, a perspectiva de sua carreira que se inicia com o marco do álbum, se encontra com Ariano Suassuna: “ele se considerava um realista esperançoso que não é nem um sonhador, e nem um pé no chão também demais. E eu acho que é que eu me considero também, eu acho que essa frase resume um pouco”. E com relação a próximos projetos, declara que, no momento atual, não faria um álbum diferente e provavelmente seguiria a mesma linha, embora reconheça que no futuro isso possa mudar, mais uma vez reafirmando o conceito do álbum.

Kauê definiu suas músicas, parafraseando Mauricio Pereira, como: “É um momento em que o poema mais lírico se mostra coisa mais lógica”, acrescentando que, “é essa relação do que eu vou ser, com o que eu sou, com o que eu fui, e isso de forma lírica e lógica”. O músico também grifou que o principal sentimento que acredita despertar em seus ouvintes vai ser o de nostalgia, afirmando que a nostalgia está ligada à lembrança e à saudade, elementos que sensibilizam facilmente as pessoas. Segundo ele, o álbum carrega intensamente esse aspecto, repleto de memórias, referências ao passado, ausências e saudades, o que favorece a identificação do público.

Para Fred, o produtor, o principal diferencial está na articulação citada acima de diferentes gêneros estilos, puxando para um lado musical mais orgânico: “Tem muita mistura do folk, do indie, então isso já é um grande diferencial porque é um violão um pouco mais elaborado do que as outras músicas da nova mpb que eu tenho conhecimento”. Criando assim, um balanço entre o Country Folk e a Nova MPB.

Minha impressão — de quem acompanhou desde o primeiro show solo voz-violão do artista até as primeiras demos e processos de gravação — é que se trata de um álbum extremamente maduro para um trabalho de estreia. Por “maduro”, refiro-me a um estilo original já consolidado, aliado a um conceito que dialoga plenamente com o que ouvimos. A sintonia entre produtor e músico é perceptível e transborda nas faixas, especialmente na riqueza de instrumentos e texturas variadas, que se entrelaçam de maneira tão coesa que parece não terem sido gravadas separadamente.

O show de lançamento será neste domingo (21/09) no Teatro do Sesc Tocantins às 19h, contando com a direção artística da produtora cultural Kethelly Salgado. O corpo de banda será composto por todos os músicos que colaboraram no processo de gravação do álbum, tocando não só as autorais, como covers originais de artistas como Tim Bernardes.