Manco Capac é uma banda de rock psicodélico que vem conquistando espaço na cena alternativa carioca, apresentando composições autorais do seu primeiro EP e versões de artistas que influenciam sua trajetória. Com o uso de samples — recurso comum na produção do hip hop —, o grupo cria texturas e camadas sonoras que ultrapassam a esfera puramente musical, evocando atmosferas e paisagens que dialogam com o imaginário do ouvinte.
Com um trabalho que valoriza o ao vivo, a banda acredita na intensidade e na imprevisibilidade da performance como complemento às gravações de estúdio. Nos shows, o som ganha ainda mais corpo e energia, revelando uma face mais crua e espontânea da banda. Essa dualidade, entre a construção do estúdio e a performance no palco, é a parte central da identidade da Manco Capac.
A banda disponibilizou no YouTube, na última semana, as primeiras gravações oficiais de uma apresentação ao vivo. As faixas escolhidas, ‘Memória Curta’ e ‘Bom Jantar’, foram registradas durante o segundo show no Sebo Baratos da Ribeiro (RJ), realizado logo após o lançamento do EP Bom Jantar. Ainda este ano, o grupo promete lançar um novo single, deixando a estética lo-fi e partindo para um som com mais definição e presença.
Quem é a Manco Capac?
A Manco Capac já passou por diferentes formações ao longo de sua trajetória, e contou, em seu início, com a colaboração de músicos que hoje não fazem mais parte do grupo. Atualmente, sua formação conta com: Carlos Renan, nos efeitos, eletrônicos, percussão de mão e backing vocals; João Diegues, no vocal, guitarra, percussão de mão e sampler; Victor Hugo Massacesi na bateria; e Ricardo Lannes, na guitarra, vocal e efeitos. Além disso, Renan, João e Ricardo são compositores e produtores da banda.
O início da banda partiu de uma ideia de Ricardo, guitarrista, que desejava montar um grupo musical. Ele convidou João para assumir o baixo, além do producer João Gabriel e do flautista Maurício, que mais tarde deixariam a formação. No início, o próprio Diegues fazia a bateria no teclado, e só a partir da compra de um sampler que as músicas foram, de fato, tomando forma. Inclusive, um dos outros bateristas que fez parte da Manco foi o João Guilherme Speltri, que tocou na banda de hardcore alemão Pisscharge.
Em outubro de 2023, a Manco Capac fez seu primeiro show no Sebo Baratos da Ribeiro (RJ), apresentando quatro músicas autorais. Ricardo relembra a estreia com carinho: “Pra mim a memória é boa, na verdade. Eu lembro muito dessa sessão de sentir o nervosismo caindo de música pra música claramente”. O clima do evento foi descrito pela banda como um verdadeiro encontro em família, com amigos comparecendo em peso, e durante a entrevista, aproveitaram até para “mandar um beijo pra tropa do apoio”.
Inclusive, coincidentemente, no dia da primeira apresentação da banda, Renan subia ao palco com um projeto pessoal, marcando uma presença indireta que já sinalizava a futura conexão entre eles. Ele relembra que o som da Manco: “Tava bastante cru, assim, o lado textural da música, tinha o sample e o arranjo de guitarra”. Assim, essa primeira experiência de tocar ao vivo ajudou a “gatilhar o início desse processo” de adaptação e preparação para performances futuras, assim como as possibilidades e a adaptação com o sampler.
Uma curiosidade é o nome da banda, inspirado no fundador lendário do Império Inca e primeiro governante de Cusco. Ele é uma figura mítica, com uma história que mistura elementos históricos e religiosos. João Diegues relata que a escolha do nome foi muito orgânica: “A gente precisava de um nome pra banda e foi procurando no livro de história algum interessante, aí na parte das Américas tinha os Incas e Maias, e Manco Capac a gente achou que soava legal”. Apesar disso, é possível fazer uma analogia com o próprio som experimental deles, que, assim como a lenda de Manco Capac, brinca com camadas sonoras que evocam tanto raízes meio míticas e místicas, quanto paisagens modernas, ecoando essa ideia de um mito.
João Batsow, artista, fotógrafo e amigo da banda desde o seu início, também faz esse paralelo entre o som e o nome da banda: “Uma coisa que eu sinto que tem na música deles, é uma coisa meio meio andina, assim, sabe? Que o próprio nome já sugere, assim, Manco Capac, a figura que guiou o povo Inca para fora da caverna e tal”. Sugerindo também que o som ao vivo, com um caráter mais sinestésico, tem esse poder, tal qual a figura mítica.
A colagem sonora da Manco Capac: camadas com origem em samples
As camadas sonoras da banda são um dos pontos centrais tanto no EP quanto nas apresentações ao vivo. O processo de produção e composição da Manco se estrutura fortemente sobre o uso de samples, importante elemento a ser contextualizado antes de adentrar mais no fazer-música da banda.
Samples são trechos de áudio pré-gravados – que podem ser fragmentos de músicas, ruídos, falas, batidas ou qualquer tipo de som – reutilizados em novas composições. Em vez de tocar ou gravar cada elemento do zero, o artista captura esses fragmentos e os manipula digitalmente, alterando velocidade, tom, timbre ou encaixando eles em novas camadas rítmicas.
Essa técnica, inclusive, é amplamente usada no Hip-Hop, que a banda destaca como pertinente no processo de produção, como aborda Ricardo: “Isso pra mim já traz muito da parada do Hip-Hop, né? De você cantar em cima de algum sample de alguma música. Ou de uma base, um ritmo bom, assim, uma bateria forte”. Dessa forma, eles explicaram que as gravações funcionam de maneira semelhante à captação de adlibs ou backing vocals, como se os midis de um beat de trap ou hip-hop se transformassem em uma guitarra, um piano ou em uma ideia de voz, mas sempre trabalhados com efeitos.
“Por mais que seja um banda de rock, o processo de produção é muito mais de hip hop” – Ricardo Lannes, guitarrista da Manco Capac
Essa relação da banda de rock com o fazer-música do Hip-Hop é interessante, e revela como os gêneros podem dialogar e se influenciar mutuamente, ultrapassando fronteiras estilísticas. Mostra também que a apropriação de técnicas, como o uso de samples, loops e colagens sonoras, não se limita a um estilo específico, mas funciona como um recurso criativo capaz de enriquecer qualquer processo de produção musical. Renan relata que os samples já são escolhidos com uma sonoridade e um objetivo bem definidos: “Desde a seleção dos samples, já tinha uma sonoridade específica que eu tava procurando”.
A repetição e os loopings são marcas evidentes nas músicas da Manco Capac, criando uma estética de “mantras de um mundo fantástico”, em que as recorrências harmônicas e textuais evocam uma realidade lúdica e hipnótica. Como João Diegues conta: “Os samples meio que induzem a gente a fazer o arranjo de uma forma que trabalhe e valorize também o loop. Então acho que acaba pegando essa característica meio de mantra”. Essa estética aproxima a proposta da banda de uma dimensão quase ritualística da música, em que a repetição não se torna monotonia, mas sim um caminho para a imersão.
Inclusive, faço um paralelo entre esse processo de produção musical e o fazer artístico de Carlos Renan e João Diegues. A dupla conduz o projeto “Desvisual Produções” — ainda em sua fase inicial, mas já incorporando práticas que João desenvolve há tempos —, no qual criam flyers, cartazes, estampas e outros produtos de design gráfico por meio de colagens, tanto digitais quanto analógicas.
Esse processo, portanto, de utilizar samples como alicerce para outras camadas funciona como uma verdadeira “colagem sonora”, em diálogo direto com a prática visual da dupla. Assim como nas colagens gráficas — em que fragmentos de imagens se recombinam para gerar novas formas e sentidos —, a música da Manco Capac sobrepõe texturas, timbres e efeitos para criar paisagens sonoras.
A própria capa do EP da Manco Capac é fruto de colagens, como conta Renan: “A montagem foi de uma propaganda que eu peguei numa revista da National Geographic, propaganda de cereal dos anos 70, sabe?”. Ou seja, essa convergência entre som e imagem evidencia uma mesma lógica criativa: de reaproveitar, reorganizar e reinventar materiais preexistentes, os transformando em algo singular e original.
“É bem parecido com a questão do sample, são colagens baseadas em coisas antigas, em recortes de revistas, em livros antigos” – Carlos Renan, efeitos da Manco Capac
Capa do EP ‘Bom Jantar’ da banda carioca Manco Capac.
O Rock Psicodélico para além do som
A psicodelia, enquanto gênero musical surgiu nos anos 1960, se destacou pela ousadia em transformar o estúdio em um verdadeiro laboratório de sons, abrindo espaço para experimentações que criavam paisagens sonoras. Grupos como The Beach Boys, especialmente com o álbum Pet Sounds, exploraram texturas harmônicas, ruídos e efeitos que transportavam o ouvinte para atmosferas quase oníricas. No Brasil, inclusive, essa busca por novas sonoridades encontrou terreno fértil no Rio de Janeiro, onde artistas como Jorge Ben misturaram ritmos afro-brasileiros, harmonias e timbres, traduzindo em música uma “psicodelia tropical”.
Dentro do gênero musical, a Manco Capac relata justamente essa liberdade criativa que vai para além da música, marcada por referências visuais e sensoriais. Ricardo, por exemplo, relata que para ele a faixa ‘Entranhas’ do EP é meio azul: “Eu gostaria que se alguém associasse alguma cor a alguma música, fossem as mesmas que eu meio que associo, sabe?”. O músico também fala sobre o que o inspira nos processos de produção: “As inspirações são coisas que eu gosto, e me dá vontade de fazer alguma coisa que tenha algum movimento legal. E eu só sei fazer música, então eu tento fazer música que eu acho que tenha um movimento legal. Tipo árvores, o aglomerado de árvores visto de longe na mata, ou o efeito do vento nas árvores, pra mim isso é uma influência”.
João Diegues também comenta suas influências particulares: “Coisas que são bonitas, algum canto de algum pássaro numa árvore que tá bonita e tá batendo um sol diferente. Aí me dá uma sensação que eu tento recapturar, não da mesma maneira, sabe? Não é fazer uma releitura, mas só ter aquilo como certa referência”. O guitarrista, inclusive, afirma que existem sensações transmitidas pelas músicas, que não tem uma definição em palavras.
“Além de uma atmosfera, a busca de uma sensação específica, meio que deixar a bússola mental balançando e quando ela marca o norte verdadeiro — o lugar certo que a gente tem que ir —, a parada realmente clica” – João Diegues, Guitarrista da banda
Renan já atribui às texturas sonoras da banda carioca, formas abstratas: “Vejo muitas pinturas diferentes em nossas músicas. Atribuo muito isso nas escolhas texturas, liricismos que mesmo quando abstratos evocam uma emoção específica, e algumas escolhas de composição que convencionalmente já evocam uma vibe específica. Considero o nosso som bastante sinestésico, na minha opinião não é muito difícil puxar comparações abstratas ao ouvir nossas musicas”. Essas são algumas uma das formas, então, que a experiência sinestésica se manifesta nas faixas da Manco Capac.
Ao vivo X Estúdio: as duas faces de uma mesma banda
Desde o início da entrevista, os integrantes da banda enfatizaram repetidamente a relação Manco Capac “no estúdio X ao vivo”. Essa distinção envolve diversos fatores, sendo um deles, como observa o guitarrista Ricardo, o processo de criação em estúdio: “A gente fica muito mais tempo gravando, discutindo, ouvindo e trocando referências, falando o que acha e aprendendo a arranjar e produzir, do que tocar assim”.
O músico acrescenta: “Eu posso gravar 60 vezes, 100 vozes, se eu quiser. E aí no ao vivo, tipo, vira meio que quatro pessoas tocando tudo. Então, é. Tem uma diferença, acho que são duas ideias”. Eles comentam também que os encontros para ensaio também se distinguem das sessões de trabalho em estúdio, já que muitas ideias surgem justamente do ato de tocar juntos.
Ricardo acrescenta que nessa diferença entre o som ao vivo e o som de estúdio, o primeiro tende a ser mais rock, enquanto o segundo resulta em algo mais pop. João relata que o feedback do público descreve o show como “algo meio Pink Floyd”. O palco — com a sua imprevisibilidade e desorganização —, abre espaço para uma sonoridade mais imprevisível e solta, enquanto o estúdio concentra ideias mais planejadas e amadurecidas entre os integrantes.
Batsow, fotógrafo e amigo da Manco, percebe essa diferença principalmente pelo uso intenso de camadas sonoras na produção da banda, comentando que já chegou a vê-los trabalhar com cerca de 80 camadas simultâneas. O artista explica: “Quando você lança um EP com 80 camadas, você tem que compatibilizar todas essas camadas uma com a outra, né? E quando você tá lidando com essa quantidade de camadas num ao vivo, você tem que abrir mão de certas camadas, ou de ter uma outra abordagem, que é o que eu sinto que eles fazem, sabe? Eles têm muito essa coisa do sample no ao vivo, mas acabam indo muito pro lado da guitarra e das vozes”.
Manco Capac ao vivo no Sebo Baratos da Ribeiro (RJ). Foto: Mafê (@cybericia)
Como alguém que ouviu inúmeras vezes Bom Jantar, diria que o EP da Manco Capac é uma verdadeira viagem sinestésica, conduzindo o ouvinte a um mundo lúdico e mágico por meio de loopings e texturas sonoras variadas, que definiria como “mantras de um mundo fantástico”, como citei acima. A cada audição, algo novo se revela, um detalhe que antes passou despercebido. Ao vivo, porém, essa sensação se intensifica, como relatam os próprios membros. O show da banda é uma experiência — no sentido pleno da palavra — em que a música deixa de ser apenas contemplação e passa a ocupar o espaço de forma intensa, envolvendo o público de maneira quase física.
Referências e a cena alternativa da música carioca
Ao falar sobre a cena musical do Rio de Janeiro, os membros da Manco Capac revelam uma visão ao mesmo tempo admirada e realista. Eles destacam tanto a força criativa das bandas locais, quanto os obstáculos que dificultam a circulação e a visibilidade do som alternativo.
O principal obstáculo apontado pelo grupo é a própria geografia do Rio de Janeiro. Renan, morador de Campo Grande, na Zona Oeste, explica que a distância e a dificuldade de transporte afetam não só os músicos, mas também o público, restringindo tanto a participação de artistas talentosos da região quanto o acesso de parte dos ouvintes à cena musical carioca.
A Manco Capac entrou na cena carioca por meio do intermédio do Coletivo Suspenso, um grupo de artistas e produtores da cena alternativa do Rio de Janeiro que atua como plataforma de apoio a músicos emergentes. Ele organiza eventos, abre palcos para novas bandas e busca fortalecer a rede independente, oferecendo oportunidades para quem tem dificuldade de acesso a casas de show ou estruturas maiores. Os integrantes destacam, de forma unânime, que foram muito bem recebidos — tanto pelo Coletivo quanto pelos artistas da cena em geral. Eles chegaram, inclusive, a mencionar com admiração bandas e músicos como: a Plano C, Ente e Economic Freedom Fighters.
Para fornecer as melhores experiências, usamos tecnologias como cookies para armazenar e/ou acessar informações do dispositivo. O consentimento para essas tecnologias nos permitirá processar dados como comportamento de navegação ou IDs exclusivos neste site. Não consentir ou retirar o consentimento pode afetar negativamente certos recursos e funções. Acesse nossa Política de Cookies
Funcional
Sempre ativo
O armazenamento ou acesso técnico é estritamente necessário para a finalidade legítima de permitir a utilização de um serviço específico explicitamente solicitado pelo assinante ou utilizador, ou com a finalidade exclusiva de efetuar a transmissão de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas.
Preferências
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para o propósito legítimo de armazenar preferências que não são solicitadas pelo assinante ou usuário.
Estatísticas
O armazenamento ou acesso técnico que é usado exclusivamente para fins estatísticos.O armazenamento técnico ou acesso que é usado exclusivamente para fins estatísticos anônimos. Sem uma intimação, conformidade voluntária por parte de seu provedor de serviços de Internet ou registros adicionais de terceiros, as informações armazenadas ou recuperadas apenas para esse fim geralmente não podem ser usadas para identificá-lo.
Marketing
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para criar perfis de usuário para enviar publicidade ou para rastrear o usuário em um site ou em vários sites para fins de marketing semelhantes.