Sobreviver pra cuidar: os degraus da vida de Lenir
A história de Lenir Rodrigues é a moldura exata da crise do cuidado escancarada pela pandemia de Covid-19 no Brasil: mulher preta da periferia, mãe solo ..
Por Ananda Miranda, Isabella Baltazar, Renata Bravo.
Fotografias: Ana Clara de Castro
A história de Lenir Rodrigues é a moldura exata da crise do cuidado escancarada pela pandemia de Covid-19 no Brasil: mulher preta da periferia, mãe solo de cinco filhos, diarista, que conta com a comunidade para conseguir garantir o sustento de sua família. Ela não está entre os 39% de diaristas dispensadas sem pagamento durante a pandemia (dado da pesquisa do Instituto Locomotiva, de abril de 2020), mas está entre os 40% das mulheres que viram seu sustento comprometido, de acordo com a pesquisa SemParar, realizada por Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista (SOF). Nenhuma dessas realidades é favorável a esta mãe solo que integra um grupo de mais de 10 milhões de mulheres brasileiras, segundo o IBGE.
Lenir não é exceção, é parte da grande parcela de 4,5 milhões de trabalhadoras domésticas brasileiras envolvidas na economia do cuidado, segundo o Dieese (2020). Cuidado que a sociedade impõe à mulher, sem lhe dar direito ao descanso – ou, sequer, a adoecer. O cuidado não é garantido a quem cuida. No caso de Lenir, não houve gestão governamental eficiente que lhe permitisse permanecer em casa, protegida junto a seus filhos, em um país onde o primeiro caso de morte por Covid-19 foi de uma trabalhadora doméstica: Rosana Aparecida Urbano, de 57 anos.
Lenir, felizmente, teve um destino diferente de Rosana, ainda que várias partes das histórias delas se entrecruzem – mesmo que elas nunca tenham se encontrado. Mas tantas outras Rosanas e seus familiares entraram para a fatídica estatística brasileira de pessoas que morreram por falta de uma gestão adequada da pandemia e de uma política integrada que aconselhasse as pessoas a ficarem em casa e desse o suporte financeiro necessário para isso.
Ela tem uma história comum a tantas outras que formavam o universo de 236 mil trabalhadoras domésticas do Espírito Santo antes da pandemia, segundo o Sindicato das Empregadas Domésticas do estado (Sindomésticas-ES). Ao mesmo tempo, tem sua história particular, da qual recortamos um capítulo nesta zine: como é ser uma diarista moradora do Morro do Cabral, mãe solo, com dois filhos com deficiência e que não parou de trabalhar na pandemia.
Conceição Evaristo é uma escritora brasileira que foi reconhecida por sua obra quando já era idosa, ainda que tenha produzido ficção ao longo de toda sua vida. Seu olhar passa, de forma contundente, pela vivência da subalternidade. Dá-se, pois, o que a escritora cunha por “escrevivência”: escrever a partir de seu corpo de mulher negra. Sua literatura de crítica social intersecciona gênero, classe e raça em simultâneo. Conceição não foi uma criança rodeada de livros, ela costuma dizer em entrevistas, mas sempre esteve rodeada de palavras. Suas narrativas têm origem muito mais no que foi por ela vivido do que lido.
De sua realidade, a escritora destaca Ponciás, Ditinhas e Marias brasileiras para personificar trabalhadoras domésticas, profissão que teve dos 8 aos 25 anos, enquanto estudava em paralelo.
Lenir Rodrigues não é escritora como Conceição. Ela interrompeu os estudos aos 10 anos, quando seu trabalho como faxineira se intensificou. Não por acaso, a classe das trabalhadoras domésticas do Brasil é formada majoritariamente por mulheres negras e elas começam cedo na profissão. Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2020, o número de trabalhadores domésticos no Brasil era de 4,9 milhões e, deste total, 4,5 milhões são mulheres – ou seja, 92%. Assim como Lenir, 65% delas são negras.
“Eu ajudava a mulher a limpar a casa desde pequenininha. Eu subia em um banquinho pra limpar as coisas. Sou pequenininha até hoje (risos).” (Lenir)
E é mesmo. Lenir, que está prestes a completar 43 anos, é uma mulher pequena e tão magra que lhe saltam as veias dos braços e mãos. Seu cabelo curto, na altura dos ombros, é contido em um rabo de cavalo baixo. Parece ter sido moldado com alguma destreza, já que não se vê um fio sequer fora do enlace apertado. Tampouco se vê fios brancos, de modo que chamá-la de dona Lenir, parece uma ideia descabida, que beira a indelicadeza.
Quando chegamos ao pé do morro onde ela vive, pudemos ver de relance (porque nos concentrávamos mais nos degraus irregulares) uma menina de vestido florido correr escada abaixo com a maior habilidade. Veloz. Não era uma criança, era Lenir. “Eu sou elétrica!”, ela diria mais tarde, e as pernas rápidas fariam sentido. “Eu não paro dentro de casa. Tô sempre fazendo alguma coisa na rua. Minha vizinha fala: ‘Lenir, não sei como suas pernas não doem’ “, diz. Nós também não.
“Eu sempre fui ativa. Aí ela [a patroa da mãe] disse: ‘Maria, deixa essa menina comigo aqui!’. Aí, eu passei a ficar trabalhando com ela. Minha mãe lavava as roupas. Às vezes, eu que trazia as trouxas pra ela e levava, pra não cansar a minha mãe. Mas não era muita coisa não, era meio expediente. Era tipo fazer uma companhia pra ela, mas ali ela foi me ensinando muita coisa”, conta.
“Ela era uma mãe pra mim. Tudo o que eu pedia, ela me dava”, são as lembranças mais marcantes que Lenir tem da primeira patroa. “Ela morreu me chamando”, conta.
“No começo da minha vida, eu morava em um barraco quase caindo. Meu primeiro colchão, eu peguei no lixo.” (Lenir)
Lenir não foi casada com os pais de nenhum dos seus cinco filhos, Graciely, de 23 anos, Ângelo, de 21, Driely (17), Nicolly Sarah (10) e Marco (8). Todos eles foram criados por ela com o suporte de sua rede de apoio, sobretudo, de sua mãe, dona Maria. “Eu não coloquei na justiça [os pais das crianças], não fiz nada. Só coloquei nas mãos de Deus e pedi ‘Dai-me forças pra criar meus filhos’. A justiça vem do Senhor”, diz. Driely, a filha do meio, está grávida de Heitor. “Eu vou ajudar, mas eu, hein?! Tá tudo aí [as coisas do bebê], ela tomou conta do meu quarto já”, reclama. A avó de primeira viagem sabe que o cuidado do neto também será sua responsabilidade em um futuro próximo.
Os filhos mais velhos de Lenir são jovens com deficiência. Ângelo tem alguma autonomia para se mover: levanta da cama, toma banho sozinho e caminha de um cômodo para outro sem precisar de ajuda. Já Graciely precisa de ajuda para se locomover. Sua cadeira de banho quebrou durante a pandemia e até hoje não foi substituída.
Esse é apenas um dos percalços que contribuíram para aumentar ainda mais a carga de trabalho de Lenir com o cuidado. Devido à paralisação de alguns serviços na pandemia – não os de Lenir -, Gracy, como a jovem gosta de ser chamada, teve seu tratamento ortopédico interrompido. Mais de um ano e meio depois, a família celebra o atendimento médico que finalmente aconteceria na semana seguinte.
A casa da família Rodrigues, cuja estrutura foi condenada pela prefeitura há algum tempo, fica no finalzinho do morro, na parte mais alta que os incontáveis degraus da comunidade podem acessar. Quando Ângelo e Gracy precisam subir ou descer do morro, Dona Lenir se vê obrigada a pagar pela ajuda que os homens da vizinhança oferecem. Na rede de apoio de Lenir, a solidariedade tem gênero: feminino.
Por conta da limitação física e da falta de acessibilidade da residência, Ângelo e Graciely pararam de estudar na sexta e na sétima série, respectivamente. Lenir, que também interrompeu cedo os estudos, hoje é semianalfabeta.
“A vida a gente tem que segurar, de um jeito ou de outro, de tocar a vida pra frente, porque, se olhar pra trás, nada se resolve.” (Lenir)
Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia de SARS-CoV-2, a estratégia de mitigação do vírus indicada foi o distanciamento social. Para além das mudanças nas formas de interação social, as configurações de trabalho foram ampla e rapidamente repensadas ao redor do mundo, de forma que apenas algumas atividades seriam tidas como essenciais – e, por isso, deveriam ser mantidas em operação.
A atividade de empregada doméstica é impossível de ser exercida à distância e, para muitos confinados, é tida como serviço essencial. “Logo fui trabalhar, não tive pandemia, não. Foi a mesma coisa, a mesma rotina”, conta Lenir. Perguntada se a doença lhe causou medo, ela não hesita: “eu fiquei com medo, né? Porque não é toda pessoa que aceita a gente na casa dela para trabalhar”. Para Lenir, o medo diz respeito, na verdade, ao impedimento de trabalhar para garantir seu sustento e de sua família.
Em março de 2020, ela fazia rodízio em três casas diferentes. Nenhum dos empregadores ofereceu pagamento para que ela ficasse em casa no momento agudo de contaminação.
Lenir recebeu o auxílio emergencial oferecido pelo Governo Federal, porque recebia o Bolsa Família. Segundo Ivete Pereira, Presidenta do Sindicato das Empregadas Domésticas do Espírito Santo (Sindomésticas-ES), a estimativa é de que apenas 10% das trabalhadoras domésticas do estado receberam auxílio emergencial, já que só quem não tem carteira assinada podia receber, e “muitas das que deram entrada não conseguiram”. Para mães solo chefes de família como Lenir, o auxílio chegou a R$1.200 em 2020. Ela faz parte dos 45% das trabalhadoras domésticas que são chefes de família, segundo o Dieese (pesquisa com base em 2017). A família também conta com duas cestas básicas mensais doadas pela prefeitura, além do apoio de ações da comunidade, como do Instituto Serenata D’Favela, que também distribui doações.
Para uma diária de faxina, Lenir cobra R$100, mas o montante acumulado ao final do mês não cobre todas as contas da casa: “dá pra dar um pouquinho a cada um, só pra amenizar a história. Aí, no outro mês, dá mais um pouquinho”, explica a matemática própria.
Seis dos sete dias da semana de Lenir são iguais. De segunda a sábado, ela se levanta de uma curta noite de descanso, que não passa de quatro ou cinco horas de sono. Após acordar, sua principal tarefa é dar banho e vestir a filha mais velha. Serve o café da manhã a ela, enquanto prepara o almoço da família, que será servido mais tarde por dona Maria ou uma vizinha. É dona Maria também a responsável por aprontar Marco e Nicolly para a escola vespertina. Isso porque Lenir trabalha até por volta das 17 horas todos os dias.
À tarde, os jovens com deficiência fazem companhia um ao outro e veem a vida passar pela porta de entrada da casa. Antes que o dia caia, Lenir está de volta à sua casa para “repetir tudo o que fez o dia inteiro no trabalho”, ela conta, achando graça. Diariamente, a chefe de família tem o período da noite para organizar a casa, além de seguir com os cuidados dos filhos, que envolvem, dentre tantas coisas, cozinhar e servir o jantar. Nas noites de terça, sexta e domingo, ela frequenta a igreja pentecostal Resgatando alma, na intenção de encontrar “libertação e livramento” para a família.
Quando foi decretada a pandemia, seus filhos mais novos passaram a fazer as atividades da escola em casa. Toda a família se mobilizou para acompanhar os menores nas tarefas, o que interferiu na dinâmica do lar. Lenir conta que “os meninos [mais velhos] ensinavam, mas eu ensinava também”. A dinâmica era descer até a escola, buscar as apostilas e “quando tinha um tempinho, eles diziam ‘mãe, me ajuda aqui’, aí eu pegava e ajudava”. Sobre a possibilidade de aulas on-line, Lenir é enfática: “do on-line eu entendo nada e [a Prefeitura] deu nada”, se referindo a tablet ou computadores que poderiam ter sido disponibilizados aos alunos.
Lenir, tal qual Conceição Evaristo, teve uma mãe lavadeira de roupas. Hoje, dona Maria tem 70 anos de idade e é aposentada. Ela lavou roupas por muitos anos, mas conheceu o período em que a máquina de lavar se popularizou e não havia mais razão para se contratar o serviço de terceiros.
Passamos pela porta de sua casa, na parte baixa do morro. A brevidade do diálogo foi imposta por sua timidez. Mas o acanhamento foi fugaz. Não demorou muito até que ela se aproximasse da porta de entrada da casa de sua filha, trazendo bermudas lavadas e cheirosas para o neto Ângelo. O afeto entre os dois não deixou dúvidas de que eles têm uma relação de cumplicidade.
Quando mais nova, dona Maria lavava as roupas na mão e “passava tudinho”. Enchia longos varais esticados entre uma árvore e outra no morro. Das histórias que repete sempre que pode, ela conta a de um filho que faleceu ainda bebê. “Ele morreu ‘aguado’, porque não tinha leite pra dar a ele. Ele morreu nos braços da minha mãe”, acrescenta Lenir, cabisbaixa. “Viemos de Nova Venécia [município ao norte do Espírito Santo, de aproximadamente 50 mil habitantes] pra cá, pra ver se aqui a situação melhorava, mas ela acabou perdendo um filho”, desabafa. Dona Maria veio para Vitória com cinco crianças. Na capital, teve outras quatro.
A função da empregada doméstica está diretamente ligada ao cuidado: são elas que organizam, limpam, e mantêm o equilíbrio das casas em que trabalham. E entre “os que cuidam, há mais mulheres, mais negras/os e mais indivíduos das camadas mais pobres da população”, como afirma a pesquisadora Flávia Biroli na obra “Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil” (2018, Boitempo).
“Eu não consigo ficar parada. Se eu almoçar e deitar 10 minutos, pra mim já é o suficiente”, conta Lenir. Embora seu dia a dia seja sempre super movimentado, sua rotina de sono é curta. Ela vai pra cama de madrugada, por volta das duas horas da manhã, e acorda às sete. O porquê de pegar no sono tão tarde? É que ela fica assistindo televisão e perde a hora. Seu gosto por cinema é bem específico: animações. O título favorito é Alvin e os esquilos, mas também há lugar para o ogro Shrek, e as princesas de Frozen. “Eu pego as crianças, Nicolly e Marco, e pode esquecer nós lá dentro [do quarto]”, confessa.
De todo um universo de sonhos que poderia escolher, o que Lenir elege foge do comum: não é ascender. Ela quer descer alguns degraus, no sentido literal, para uma casa mais baixa no morro. “Onde tem acesso a carro. Ficar no Quadro, onde facilita mais a minha vida. Até a deles [de Ângelo e Gracy]. Se fosse um lugar plano, dava pra eles darem uma volta na rua, ver o movimento”, diz. Sua generosidade é indissociável do cuidado com sua família e sonhar sem incluí-los jamais seria possível para esta mulher.
Essa reportagem foi originalmente apresentada em formato zine, confira aqui.
Esta reportagem foi feita com o apoio do Laboratório de Histórias Poderosas Brasil, uma iniciativa de Chicas Poderosas, comunidade internacional e organização sem fins lucrativos que busca fomentar o desenvolvimento de mulheres e pessoas LGBTQI+ em meios de comunicação e criar oportunidades para que todas as vozes sejam ouvidas. O Laboratório recebeu apoio da Open Society Foundations. Publicada por Folha de São Paulo
Imagens Fotografias: Ana Clara de Castro / Ilustrações: Beatriz Sacht
Texto: Ananda Miranda, Isabella Baltazar, Renata Bravo.
Edição: Bruna Escaleira
Checagem: Alessandra Monnerat
Acompanhamento de segurança: Helena Bertho
Coordenação de projeto: Equipe Chicas Poderosas