Sobrevivência: a cor da pele e o risco de morrer
Por Estela Monteiro Mais vulneráveis à violência, jovens negros são os que mais morrem no Brasil “Me chamaram de ‘noiado’, folgado. Me disseram que eu ia virar ‘crackudo’ e que não seria ninguém na vida. Zombaram do meu cabelo crespo e das minhas roupas. Já na delegacia, só de cueca em uma cela, me bateram […]
Por Estela Monteiro
Mais vulneráveis à violência, jovens negros são os que mais morrem no Brasil
“Me chamaram de ‘noiado’, folgado. Me disseram que eu ia virar ‘crackudo’ e que não seria ninguém na vida. Zombaram do meu cabelo crespo e das minhas roupas. Já na delegacia, só de cueca em uma cela, me bateram na cabeça duas vezes com a sacola que continha minhas roupas e me deram vários tapas na cara”. É assim que o produtor cultural Lucas Pinheiro Santos, 26 anos, morador de Ceilândia (DF), lembra de um dos episódios mais traumáticos de sua vida. Na ocasião, o jovem foi abordado por quatro policiais em frente ao prédio em que trabalhava, no Setor Bancário Sul, em Brasília (DF).
De acordo com Lucas, ele estava tirando um intervalo de seu trabalho, na empresa A Incubadora, projeto do coletivo Jovem de Expressão que funciona como aceleradora de ideias de negócios, aumentando as chances de sucesso. “Eu estava vestido como no meu dia-a-dia, pois no escritório havia uma cultura mais desconstruída em relação a vestuário”, explica o produtor. “Eu usava bermuda e boné de aba reta, além de tênis e estava ouvindo música com fones de ouvido”, acrescenta.
Na ocasião, Lucas conta que foi abordado por quatro policiais militares, entre eles, um negro. “Eles me questionaram, já com muita rispidez, se eu tinha drogas comigo. Neguei, mas ao ser perguntado se eu fazia uso de maconha, assenti. Foi neste momento em que as agressões verbais começaram. Tive que abrir até meu celular para revista”, relembra. “Depois me mandaram sair dali e eu disse que ia ficar, pois estava em frente ao meu trabalho. Foi quando me atingiram com spray de pimenta”, relata o jovem.
Mais tarde, próximo ao local onde foi abordado anteriormente, Lucas encontrou cerca de 50 policiais, entre eles, um dos agressores. O produtor sacou o celular e começou a filmar, pedindo a identificação dos PMs e alertando que iria fazer uma denúncia na corregedoria. Um dos policiais bateu no celular, o derrubando no chão. “Peguei meu celular e sai correndo. Voltando para o escritório, fiz um relato no Facebook com o vídeo. Em poucas horas, o post já tinha viralizado e meus seguidores já tinham conseguido identificar o policial”, explica.
Na tarde daquele mesmo dia, Lucas foi abordado por outros quatro policias, que o prenderam por difamação, mesmo após o produtor argumentar que não havia denúncia alguma. Na delegacia, ao manusear o celular, foi acusado de estar fazendo nova gravação. Foi quando o conduziram à cela, onde houveram novas agressões verbais, acompanhadas de agressões físicas. Após ficar preso por duas horas, o jovem saiu da delegacia acompanhado de um advogado. “Chorei de constrangimento na volta para casa”, relembra.
Casos como este são muito mais comuns do que podemos imaginar. Além das abordagens violentas, a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo. De acordo com o 11º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente no ano passado, foram mais de 4 mil mortes por intervenção policial. Das vítimas, 99,3% são homens, mais de 80% são jovens entre 12 e 29 anos e 76,2% são negros. Entre 2009 e 2016, foram quase 22 mil pessoas mortas pela polícia.
Para Lucas Santos, a violência perpassa questões raciais e de classe social . “Existe uma cultura enraizada na qual o negro é visto como perigoso, somos sempre associados ao crime. Já fui abordado violentamente na periferia, chamado de marginal, e já fui abordado no Lago Norte (zona nobre de Brasília), ao lado de amigos brancos e de classe alta, o tratamento foi outro, super educado”, relata o produtor.
Existência violenta
Não é só com a violência policial que jovem negro sofre no Brasil. Eles ainda são vítimas de violência urbana e crimes de racismo, como violência simbólica (uma forma de violência exercida pelo corpo sem coerção física, mas que causa danos morais e psicológicos). De acordo com o Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população negra e de baixa renda têm 23% a mais de chances de ser vítima de homicídio. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os dados reforçam que a cor da pele influencia diretamente na violência. Enquanto o homicídio de jovens não-negros caiu em mais de 12%, de 2005 a 2015, entre os negros a taxa aumentou 18,2%.
De acordo com o Mapa da Violência, um estudo realizado pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), dados de 2014 dão conta de que houve um aumento de mais de 46% nas mortes de negros por armas de fogo desde 2003. Ainda de acordo com o Mapa apenas em três estados da federação morrem mais brancos que negros: Tocantins, Acre e Paraná. Em contrapartida, em Alagoas, em 2014, foram assassinados 60 brancos e mais de 1700 negros, em um nítido recorte racial.
Os números são ainda mais alarmantes quando se trata de mulheres jovens negras e periféricas porque, além de crimes decorrentes do racismo, existem as altas taxas de violência doméstica e de gênero. Dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – relativos ao ano de 2013 apontam que 59,4% dos registros de violência doméstica no serviço referem-se a mulheres negras. Enquanto a mortalidade de não-negras caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice subiu 22%, segundo o Atlas da Violência.
É o caso de Dandara*, estudante de 17 anos. Além de sofrer com abusos sexuais dos dois aos nove anos de idade, a moça presenciava seu abusador e padrasto agredir física e verbalmente também sua mãe. Ela conta que já passou por relacionamentos abusivos, nos quais foi agredida fisicamente.
Por fim, Dandara relata que foi demitida de um estágio no ano passado por usar turbante e tranças, que, para ela, são símbolos de resistência e exaltação da cultura negra. “De início, ouvia piadinhas por conta do turbante e por eu ser de religião afro brasileira. Depois comecei a usar tranças coloridas e foi aí que me chamaram e disseram que eu não estava mais dentro dos padrões de vestimenta e a altura da empresa”, conta.
“Eu não sabia que algum dia eu viria sofrer racismo até passar por isso. A gente acaba ficando meio insegura. Sempre com receio, até de nem passar em entrevista de emprego por conta dessas coisas. Uma vez negra, a opressão é maior em tudo”, afirma Dandara.
O secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Juvenal Araújo, explica que a cor da pele ainda é um fator de vulnerabilidade no Brasil. “Ser negro é muito arriscado. Além disso, a falta de oportunidades para estes jovens contribui para que eles acabem nas estatísticas de violência”, afirma.
Para o secretário, a falta de representatividade na mídia e nas instituições são fatores decisivos que contribuem para perpetuar a cultura racista. “Filhos de não-negros, por exemplo, querem ser dentistas, advogados. Já a criança negra, de periferia, deseja ser jogador de futebol ou rainha da bateria. Eles não se veem em outras profissões porque não há negros ocupando estes espaços”, explica. “Como faltam oportunidades de estudo e qualificação, além de receptividade do mercado de trabalho, eles acabam caindo na marginalidade, aumentando as chances de sofrerem violência”, completa Araújo. Além disso, ele destaca a falta de representatividade na política e nos cargos do poder Executivo. Araújo também critica a carência de políticas públicas eficazes no enfrentamento à violência contra a juventude negra e a falta de conhecimento de causa por parte dos gestores destas.
Juventude Viva
O Plano Juventude Viva é uma iniciativa do governo federal, coordenado pela Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), vinculada à Secretaria de Governo da Presidência da República (SG/PR) e pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Ele reúne ações de prevenção para reduzir a vulnerabilidade de jovens negros a situações de violência, a partir da criação de oportunidades de inclusão social e autonomia.
As ações do Plano Juventude Viva visam a ampliação dos direitos da juventude, a desconstrução da cultura de violência, a transformação de territórios atingidos por altos índices de homicídios e o enfrentamento ao racismo institucional, com sensibilização de agentes públicos para o problema.
Como respaldo para elaboração do Juventude Viva, foram utilizados os dados sobre homicídios por arma de fogo do Mapa da Violência, elaborado pela Flacso. A partir dele, foram escolhidos 142 municípios considerados prioritários para receber os recursos do Plano, por conta dos altos índices de morte de jovens negros.
De acordo com Julio Jacobo Waiselfisz, autor do estudo, o Mapa já serviu de base na elaboração de diversas políticas públicas para a juventude, a que mais mata e morre no Brasil. “Um dos problemas fundamentais da juventude brasileira é alta mortalidade, o Mapa da Violência deixa isso bem claro. Esses dados de mortalidade, porém, se comportam de forma diferente dentro de determinados grupos e classes sociais. Trata-se de jovens da periferia com baixo nível de escolaridade”
Atualmente, após quatro anos desativado, o Plano está em reformulação, buscando articulação com ações que avancem da prevenção à violência para a proteção da vida da juventude negra brasileira. O consultor do Plano, Vítor Otoni explica que a principal ação do momento consiste em colher informações com os gestores dos estados e municípios sobre as necessidades locais. “Nós queremos dialogar com quem está na ponta, através de consultas públicas, e identificar que tipo de ações serão mais eficazes e chegarão a quem realmente precisa”, explica Otoni. A previsão é de que o Novo Juventude Viva seja lançado em 2018. Atualmente, estão sendo feitas consultorias para avaliar quais os pontos mais críticos de mudança, que são exigidos pelos municípios prioritários, elencados no Mapa da Violência de 2016.
Para Jacobo, a saída para diminuir os índices de violência está em criar políticas públicas eficazes, como o Plano Juventude Viva. “A única saída possível para o problema é dar alternativas de inserção social para a juventude. Não é uma política de frear a violência, pois esta sai pelos poros da sociedade. Não podemos militarizar a cidade. O jeito é criar políticas públicas de prevenção à violência e de preservação da vida da juventude”, afirma.
Saiba mais
O Mapa da Violência teve sua primeira edição em 1998, sob encomenda do Ministério da Justiça. “Na época, o órgão não tinha nenhum dado sobre mortes violentas, então nós precisamos recorrer a estatísticas do Ministério da Saúde”, explica Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa.
“O Ministério da Saúde tem um sistema de informação de mortalidade muito completo. É um registro de verificação de óbitos, informações recolhidas nos postos de saúde, um trabalho muito minucioso. Duas vias de todos documentos de óbito ficam no Ministério, para compor o registro de mortalidade”, completa. Ele conta que foi possível compilar certidões, processar e tabular os dados para fazer os Mapas, com números colhidos desde o ano de 1980.
Jacobo explica, no entanto, que faltam dados sobre os autores dos crimes, já que o Ministério da Justiça estima que somente 6% dos homicídios são elucidados.