
‘Sirât’: entre o êxtase e o abismo
Oliver Laxe transforma o deserto marroquino em um cinema sensorial que pulsa entre êxtase e ruína
Por Lilianna Bernartt
Oliver Laxe filma o deserto marroquino como um corpo em transe — um espaço que respira, pulsa e reage à presença humana com a mesma intensidade de um organismo vivo. Em Sirât, vencedor do Prêmio do Júri em Cannes, o diretor radicaliza seu cinema da travessia, criando uma experiência sensorial e filosófica em que o som, a fé e o desespero se entrelaçam como matéria espiritual.
A primeira sequência, em que caixas de som são erguidas diante de uma montanha e uma multidão dança em êxtase, não é apenas um prólogo de impacto visual: é o enunciado de um cinema que quer ser sentido antes de ser compreendido. O som organiza os corpos, embaralha a percepção e anuncia que o caminho a seguir será também uma prova de fé.
A narrativa acompanha Luis (Sergi López) e seu filho Esteban (Bruno Núñez Arjona) na busca por Marina, filha e irmã desaparecida, que eles acreditam estar circulando entre raves itinerantes no deserto. O rádio anuncia rumores de uma nova guerra, e o ruído político serve como mais uma camada na trajetória de pai e filho em um mundo que parece se desintegrar.
No percurso, eles se unem a um grupo de jovens ravers — figuras errantes, iluminadas por uma estranha serenidade — que tratam a música como ritual e o deserto como abrigo. Entre eles, Luis encontra uma humanidade precária, mas possível: uma comunidade improvisada que acolhe, ainda que todos saibam que o horizonte é instável e a esperança, sempre provisória.
O título do filme remete à ponte islâmica, apresentada logo de início: “fina como um fio e afiada como uma espada”. Laxe traduz essa metáfora em cada gesto formal: a fotografia granulada de Mauro Herce tensiona o quadro até quase dissolver os personagens na poeira; a batida eletrônica da trilha de Kangding Ray pulsa de forma vital; e a montagem alterna o delírio coletivo das festas com a solidão sufocante das travessias.
Sirât encena essa linha afiada entre êxtase e ruína.
Quando Luis e seu filho se unem ao grupo de ravers, o filme se transforma em um road movie espiritual com pitadas de Mad Max, em que cada desfiladeiro é um limite moral e físico. A tensão não está apenas no risco do caminho, mas na vertigem de existir à beira do abismo — literal e simbólico.
O deserto se torna um espelho: reflete não só a aridez do mundo, mas o vazio emocional de uma humanidade que se mantém em movimento, dançando para não sucumbir. E Laxe filma esse desamparo com uma ternura que desarma — há humor, cumplicidade e uma doçura desconcertante na forma como os personagens se unem e compartilham o pouco que têm.
Quando a tragédia irrompe, é com brutalidade e precisão. O filme implode sua serenidade e desarma o público, deixando-nos na tentativa de reorganizar as emoções acumuladas.
Laxe mantém a coerência de sua proposta, em que o desconforto é parte da experiência. O incômodo é o próprio território do filme, que se move nessa fronteira entre o sublime e o abismo. Sirât é, afinal, uma parábola de atravessamento — espiritual, político e íntimo. Nele convivem uma família quebrada, um planeta em colapso e uma juventude que insiste em dançar.
“A música não é para ser ouvida, é para dançar”, diz uma das personagens. E talvez o cinema de Laxe funcione da mesma maneira — não para ser explicado, mas atravessado.
Visualmente deslumbrante e emocionalmente impactante, o filme reafirma o lugar de Laxe entre os grandes criadores de um cinema que pensa o humano como experiência-limite. Entre o som e o silêncio, entre o que se perde e o que resiste, Sirât nos conduz a um ponto em que a imagem já não representa, mas revela — como uma ponte invisível entre o que fomos e o que ainda tentamos ser.