Por Felipe Mesquita

Das ruas de Nova York às praças de Manaus, dos anos 70 até a atualidade, a Cultura Ballroom se alastrou ao redor do mundo e se reinventou ao longo do tempo. Simas Zion Maverick, pioneira na construção da cena ballroom manauara, é uma das chamas que mantém o fogo desse movimento aceso. Após fundar a Kiki House of Dení, primeira casa da cena na cidade, a artista começou a oferecer treinos abertos, em 2019, na Universidade Estadual do Amazonas, onde cursava Dança. “Eu me propus a criar e compartilhar um futuro que eu queria e tudo o que eu aprendi, e as pessoas que estavam ao meu redor me ajudaram muito”, comenta sobre as primeiras oficinas.  

O pontapé inicial para construir a cena local foram seus estudos acadêmicos, em que a jovem, ao estudar as danças urbanas, conhece uma das modalidades pela qual se encanta: o Vogue. Suas pesquisas se expandiram até ela conhecer a Iconic House of Zion. Simas entrou em contato com alguns membros da casa internacional, por meio das redes sociais, para discutir sobre a ballroom, sobre as categorias e sobre o Vogue. Foi paixão à primeira vista: “Me apaixono de primeira, porque é um movimento, é uma cultura que fala sobre raça, gênero, sexualidade e várias outras questões sociais e políticas que me chamaram atenção de uma forma não tão direta”.    

Em seguida, com o incentivo de alguns amigos, Simas participou da Animalia Ball, seu primeiro baile, promovido pela BH Vogue Fever, em Minas Gerais. Ela teve uma imersão com a cultura ballroom e com ícones e lendas de Nova York que o evento trouxe. Após esse intercâmbio cultural, Simas retorna à cidade de Manaus e, ao lado da House of Dení, dá início à construção da cena ballroom da capital amazonense.

Matriarca da Kiki House of Maverick, manaura e pessoa não-binária, Simas Zion Maverick é a Artista Foda desta semana. Em entrevista ao FODA, Simas relembra seu primeiro contato com a cultura ballroom, comenta sobre a visibilidade da cena manauara e compartilha seus sonhos para o futuro.

Zion, como aconteceu o seu contato com a cultura ballroom?

O meu contato com a cultura ballroom começa a partir dos meus estudos da dança, quando eu entrei na Universidade Estadual do Amazonas, a Escola Superior de Artes e Turismo. Quando eu comecei a estudar dança, eu conheci a dança urbana em suas várias modalidades, uma delas é o Vogue, e eu me encantei de uma forma incrível e eu comecei a estudar o Vogue a partir desse primeiro contato. Alguns artistas daqui já pesquisavam a dança e já pesquisavam o estilo Vogue, como o grupo UNK e o grupo EGO.

As minhas pesquisas foram se expandindo até eu conhecer a House of Zion: Mother Kona, de Brasília, Father Félix Pimenta, Fênix Negra e Bibi Zion de São Paulo, e outros membros dos capítulos, que na época eram Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Entrei em contato com eles por meio das redes sociais mesmo, para discutir sobre ballroom, sobre as categorias e sobre o Vogue. Me apaixono de primeira, porque é um movimento, é uma cultura que fala sobre raça, gênero, sexualidade e várias outras questões sociais e políticas que me chamaram atenção de uma forma não tão direta, por eu vir de uma família pai e mãe e ser uma pessoa cis, eu tive muitos acessos então eu tive muitos bloqueios. Então eu fui construindo até os meus 18, 19 anos com a cabeça e uma consciência completamente padrão, no que a gente entende como padrão, e com a Ballroom tudo isso se quebra, a partir da arte da dança. E quando eu descubro a Ballroom, eu descubro que aquele movimento existia no Brasil e eu queria, e que não tinha em Manaus.

Foto: Arquivo Pessoal

Foi com alguns outros amigos na época que me incentivaram que eu consegui participar da minha primeira ball em 2019, que foi a Animalia Ball, pelo BH Vogue Fever, lá em BH – Minas Gerais. Em 2019, eu vivi o meu primeiro baile e eu tive uma imersão com a Ballroom, com artistas e com os ícones e lendas de Nova York que o evento trouxe. Assim que eu volto desse intercâmbio, dentro da universidade ainda, eu começo a propor treinos abertos de Vogue. Eu me propus a criar e a compartilhar um futuro que eu queria e tudo o que eu aprendi, e as pessoas que estavam ao meu redor me ajudaram muito, que foi a minha primeira casa Ballroom aqui de Manaus: a Kiki House of Dení, com os meus filhos Imperador Blue Dení, a minha filha Odara, que hoje é Mãe da Casa Konda, minha filha Xuri, que é da Casa La Plata, e também Layla e Auria.

A primeira geração se formou a partir da fundação dessa primeira House. Logo em seguida eu vou para BH e quando eu volto essa House começa a propor esses treinos dentro da universidade do estado, no bairro Praça 14. Esses encontros foram crescendo, tomando outras proporções. A cena se cria aqui, e é quando eu passo a viver a Ballroom de uma forma mais intensa. Vem um convite para House of Zion e, ao mesmo tempo que eu entro na cena, como membro de uma House internacional, que foi a House of Zion, onde a galera me acolheu e me adotou, eu me torno mãe de uma Kiki House daqui de Manaus.

Como foi o processo da construção da cena Ballroom de Manaus?

O processo de construção da cena ballroom de Manaus se deu através desses treinos. Promover esses encontros da Ballroom, falar sobre Ballroom. A galera começou a frequentar os treinos e foi crescendo. Ali dentro da universidade nós ficamos três meses, até o final do ano de 2019. Em 2020, a gente consegue realizar uma vivência pelo KUMA, que era uma escola de yoga e era também uma incubadora de artistas LGBT+ e pessoas trans. A gente conseguiu contato com a Ariel Kuma, que é responsável pelo espaço. Ela abriu um projeto e a gente se inscreveu para fazer uma vivência Ballroom lá.

Chega então uma outra geração da Ballroom, que foi a parte onde a gente começa a sentar, a discutir e desenvolver bailes, a fazer esses espetáculos que celebram tudo isso que a gente vivia. A vivência do KUMA, em 2020, foi um dos processos fundamentais depois dos treinos da ESAT e ela aconteceu no tempo da pandemia, então a gente estava buscando se reconectar. A gente já estava conectado de uma forma pela Ballroom, mas a gente estava impossibilitada de nos conectar presencialmente, então, quando a gente retorna com essa vivência, tudo se torna mais potência, porque a galera estava procurando algo.

E pra nossa comunidade é muito foda e eu sinto que a Ballroom veio como o começo de um espaço mesmo de potência, de acolhimento e que a gente conseguiu se reestruturar de alguma forma lá em 2020. Depois, com alguns contatos de pessoas que elaboravam festas, produtores e outros artistas que também foram somando forças com a comunidade Ballroom, a gente conseguiu ocupar outros espaços. Eu comecei com o projeto “Vogue na praça” também, que era a ideia de tirar a vivência da sala de aula e levar para as ruas, porque já era seguro transitar depois da pandemia. Assim a gente começou a pensar em como a gente faria os primeiros bailes pós pandêmicos, que eram todos de máscaras. Os temas eram elaborados tendo esse cuidado também.

Depois do “Vogue na praça” houve o surgimento das novas houses que foi um “boom” também. A comunidade ballroom se propaga através desse sistema de houses, e elas amparam em alguns pequenos ciclos, as famílias se acolhem. Em 2019 começou a acontecer isso aqui em Manaus, com o surgimento da La Plata, do capítulo da House Astra, que era uma house nacional. Veio a Matagal e veio a Shaolin também. Já éramos 5 houses até o fechamento da Dení, casa que abriu e começou o movimento.

Foto: Arquivo Pessoal

Em 2021, eu fechei a Dení no Baile de Quintal por ela já ter cumprido o seu papel. Todo mundo questiona isso, mas eu vi sempre a Dení como uma porta. Era um espaço onde eu juntava as pessoas e eu conseguia compartilhar as minhas informações de baú, e eu sabia que essas pessoas queriam repassar, então quando eu vi que as minhas filhas estavam com as suas casas pré-estabelecidas e vejo “elas já conseguem andar sem a mamãe do lado” eu fecho a Dení. Na cena, quando a gente não faz parte de uma house, a gente se torna uma 007. Eu vivi algum tempo como 007 até abrir o capítulo da House of Juicy Couture.

Em que momento e como nasce a Kiki House of Maverick?

Maverick nasceu do Capítulo da Kiki House of Juicy Couture de Manaus em 2022. Ela foi anunciada na primeira edição do Baile Vermelho, que na época era um baile sobre estética de filmes. A house nasce do propósito de acolhimento de forças dentro da própria Ballroom, com pessoas que estavam sendo afastadas da cena. A Maverick foi se estruturando e encontrando seu propósito para a cena e para cada membro. Até a realização do segundo Baile Vermelho, onde trouxemos o diálogo sobre HIV/AIDS e outras IST’s, que foi um dos propósitos da própria casa.

Como é a visibilidade da cena manauara?

Aqui em Manaus a Ballroom já tá com uma visibilidade muito forte ao ponto da galera realmente procurar e saber mais um pouco. Isso é interessante porque foi um movimento que foi necessário, então quando eu precisei fazer a Ballroom aqui eu via muito essa necessidade de juntar umas pessoas aqui, juntar uma galera que estava em núcleos separados. Isso aqui foi muito visível e muito notável. Acaba que todas se encontram em uma ball, então a Ballroom acaba unindo várias pessoas. A gente agora tá conseguindo ter mais capital, mais dinheiro para fazer as coisas justamente por causa dessa visibilidade. A galera já tá trabalhando com Vogue, eu já consigo dar aula de Vogue. O pessoal meio que já se coloca no mercado.

Então eu acho que nessa parte mais municipal e regional a gente conseguiu, nesses cinco anos, ter uma visibilidade muito foda. A nível nacional de certa forma também, a partir da primeira ball indígena que foi feita pela Casa Jabutt. A primeira ball indígena foi um marco na cena porque foi quando a cena ascendeu. Eu pego muito um pensamento lá de trás, eu acho que mais um raciocínio meu mesmo, mas sobre uma pessoa e sobre um trabalho, que foi Jennie Livingston, que fez o documentário “Paris is Burning”, que significa “Paris está em chamas”. E ela praticamente diz nesse documentário que ali existia um fogo, que Paris estava pegando fogo a partir da Ballroom. Quando a galera viu que Manaus também estava fazendo Ballroom e viu a gente na primeira ball indígena e como a gente conversava com a Ballroom, a galera de fora começou a ter um estalo diferente.

Foto: Arquivo Pessoal

Mas antigamente, bem no começo, quando Manaus começa nesse nível nacional em 2019, quando eu entro na Zion, a gente cria essa porta e eu começo a compartilhar as informações da Ballroom daqui para a galera de fora. Eu apresentava minhas filhas, apresentava minha casa, apresentava minha cena. Outras poucas pessoas da cena também faziam isso. Mas aí é que tá o ponto: pelo Norte, mais precisamente Manaus e Amazonas não ter essa possibilidade de circulação interestadual por rodovia, eu acho que a gente ainda não tá sendo tão visto ainda e não tá sendo tão bem representada a nível nacional por conta desse motivo, e a galera também não acessa, né? A gente não acessa lá e a galera não acessa aqui, mas eu acho que é mais por isso mesmo, porque se a Ballroom se transforma em um ramo nacional enquanto a gente faz Ballroom aqui há cinco anos, a gente precisa entrar nesses diálogos, porque se torna necessário ter uma grande representatividade da Região Norte.

Os artistas do norte encontram maiores dificuldades de se inserir na cena mainstream?

Eu acho que a cena em geral da Ballroom daqui de Manaus tem uma certa dificuldade até de compreender esse lado “kiki” e esse lado “mainstream”, e quando algumas pessoas já entendem o mainstream, também se colocam em um lugar de “não estou pronta”. Não acho que isso é só daqui de Manaus, nas outras cenas eu também acompanhei isso, mas existe uma dificuldade pela cena mainstream ter uma seriedade maior. A gente começa na mainstream a partir do momento que entende o que a gente está fazendo, pelo menos o que quer fazer. Eu tive uma grande dificuldade em entender isso, mas eu acredito que o mainstream tem essa seriedade que você está agindo na Ballroom de forma que você entenda o que você está fazendo. A galera daqui de Manaus tem muito potencial, a galera já tá bem estruturada.

Você acredita que o nascimento da cena manauara e outras cenas do Norte ajudaram a diminuir essas barreiras?

Sim, ajudaram, e principalmente a comunicação entre elas, as relações que a gente mantém aqui na Região Norte. A gente tem um grupo de WhatsApp que é o “Ballroom Norte”, que eu comecei junto com uma galera da cena de Belém, e era justamente para debater essas questões, sobre as nossas cenas em um ecossistema, porque a cena do Norte ela é um pouco mais jovem que as demais cenas. O Nordeste é um pouco mais velho que a cena da Região Norte, a gente consegue observar nitidamente que na cena do Nordeste existem mais cenas, por muitos outros estados também estarem sendo o seu ponto de conhecimento da Ballroom. A gente reconhece que a galera tem esse reconhecimento justamente por trabalho coletivo. Aqui na Região Norte, a gente tem algumas cenas já atuando, alguns intercâmbios rolando também. Então eu acho que quando a gente entendeu esse lance da coletividade ser fundamental pro crescimento do movimento Ballroom nas regiões, a gente conseguiu fazer mais e a gente tá conseguindo dialogar.

Em março desse ano você participou da Ball Vera Verão pela House of Zion, o que esse momento significou para você?

Nossa, finalmente eu vou falar… (risos) Para mim foi uma grande loucura, foi um misto de trabalho e realização de sonho. Ao mesmo tempo em que eu estava com uma tensão enorme e uma pressão muito foda de estar lá pela primeira vez, representando tudo o que eu já tinha feito e falado, foi uma felicidade incrível. Até porque se não fosse a própria Zion eu não estaria lá.

Foto: Arquivo Pessoal

A Vera Verão é uma ball importante para a Casa. Desde o surgimento aqui no Brasil, a Vera Verão sempre foi a maior ball da House, então é uma ball que a galera sempre senta e se acolhe enquanto família para realizar. Ela é uma ball de nível internacional, então é uma grande comoção, a gente se prepara durante alguns meses. Porém, como a logística da galera do Sudeste e do Centro-Oeste é bem única, eu preciso ralar um pouquinho. E eu sendo a única pessoa da Zion aqui de Manaus, eu não tenho por exemplo irmãos e irmãs que eu possa falar: “E aí bora organizar alguma rifa, bora organizar alguma coisa para a gente levantar uma grana para a gente ir para São Paulo”, então busco os meus meios. Esse ano eu consegui ir graças a uma vaquinha que eu abri muito em cima da hora, mas deu certo.

Que outros sonhos você tem para o futuro?

Para mim, eu acho que só que eu tenha mais alguns anos de vida. Artisticamente falando e de vida mesmo, para uma pessoa que vive com HIV, no Norte, e que é artista, é difícil. É difícil, mas não é impossível, né? Mas eu acho que é sempre ter esse receio e esse medo, mas tá tudo firmando graças até à Ballroom. Aí vem o que eu quero para a Ballroom, eu acho que eu quero só estabilidade pra comunidade, que se torne um espaço que seja organizado como no princípio de uma casa, onde você vai receber alguém, você consegue acolher e você consegue dar todo o suporte necessário. Digo isso no geral, na comunidade, para a galera saber acolher, saber levar e saber estar forte. É o que beira a paz.

Foto: Arquivo Pessoal

Eu acho que eu coloco mais um sonho que é o meu futuro dentro da Ballroom, eu acho que a gente visa muito isso atualmente nessa era roxa da Ballroom, de forma mainstream. De 2021 pra cá, quando se torna mainstream no nível pop, a galera quer muito o sucesso, e dentro da Ballroom a gente trabalha com esse destaque e de reconhecer o corre da galera. E eu acho que o meu futuro na Ballroom é só reconhecer devidamente as minhas filhas ainda em vida, e eu sei que essa galera vai chegar longe. Eu acho que é isso, se tornar uma grande lenda.