Por Daniele Agapito

Sexo frágil? Há sessenta e dois anos, uma baixinha, gordinha, vingativa e dentuça iniciava sua história nos quadrinhos como coadjuvante nas tiras de jornal do Cebolinha. Bem, todos sabem quem é a Mônica. Em 1963, a primeira mulher viajava para o espaço: Valentina Tereshkova. Ainda no mesmo ano, foi lançada a publicação “A Mística Feminina”, de Betty Friedan, marco inicial da Segunda Onda Feminista. Betty, Valentina e Mônica eram a senha de uma bomba pronta para detonar os papéis impostos às mulheres: forçadas à beleza e juventude eternas, recato, submissão e afazeres do lar.

Mauricio de Sousa, criador da Mônica, sempre teve fascinação por mulheres fortes — e se casou com uma: Marilene. Mas, antes dos anos 60, só criava historinhas sobre meninos.

“Um dia, o editor me perguntou se eu era misógino, porque não desenhava mulheres. Fui procurar no dicionário para saber do que se tratava.” — trecho de Mauricio de Sousa incluído na cinebiografia.

Antes da Mônica [personagem inspirada na personalidade de sua filha primogênita de mesmo nome], Mauricio trabalhava muito, mas ganhava pouco. Depois da Mônica, o desenhista deslanchou. E veio outra menina, filha e personagem: a comilona, magra de ruim, Magali. Outro sucesso.

Primeira aparição da Magali em tirinha: 11 de janeiro de 1964, tirinha exibida na cinebiografia “Maurício de Sousa: O Filme”. Foto: Reprodução

Nos anos 70, Mônica ganharia sua própria revistinha, “A Turma da Mônica”. Num universo de HQs dominado por super-heróis e seus superpoderes, o Brasil explodiu em vendas nas banquinhas com um gibi liderado por uma gorducha — não a supermodelo-mulher-maravilha-de-maiô-cavado (que curtia, mas não me pegava tanto) —, mas uma garotinha brasileira comum (também fora dos padrões angelicais baby Johnson), que não levava desaforo para casa de jeito nenhum. Sua arma? Um coelho e muita sagacidade.

Cortando laços com a geração anterior de mulheres que não conseguiam se defender ou comunicar o que sentiam, as coelhadas da Mônica eram voadoras direto na cara da sociedade. E a gente ama levar essas coelhadas para despertar até hoje!

“Mauricio de Sousa: O Filme”

Quando assisti à cinebiografia, não tinha grandes expectativas e acabei com o olho borrado de lápis preto na linha d’água — não por qualquer virtuosismo do diretor Pedro Vasconcelos, mas pela simplicidade com que o filme toca em pontos essenciais da trajetória do criador da Mônica. A presença de Mauro de Sousa interpretando o próprio pai traz muita realidade: um ator que nos entrega os trejeitos íntimos, o sorriso aberto e herdado, e dá ao filme muita alma.

A figura da avó Benedita Rodrigues, retratada como grande incentivadora, e o reconhecimento da composição e reverência à porção feminina em seu sucesso — investindo também no protagonismo de mulheres fortes, carismáticas, engraçadas e comilonas, todas baseadas em garotas de sua família — constroem uma narrativa que enaltece tanto o artista quanto o novo imaginário que ele ajudou a forjar.

Mas o momento mais bonito, ao meu ver, aconteceu fora da tela: Mauricio, ausente na abertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, onde recebeu o Prêmio Leon Cakoff por meio do filho, apareceu de surpresa na sessão do filme. Aos 90 anos, numa cadeira de rodas e enfrentando problemas de saúde, acenou para o público e foi recebido por uma sala completamente lotada na Cinemateca. Isso tudo aconteceu terça passada e foi, na minha modesta opinião, o dia mais catártico da Mostra até agora.

Mauricio de Sousa na Mostra SP. Foto: Cine Ninja/Daniele Agapito