Por Diego Do Subúrbio 

Ser pai, para muitos, é a realização de um sonho. Para outros, é também um gesto de coragem, resistência e transformação social. Nesta entrevista, conversei com Fioravante Cardoso, ativista e coordenador municipal da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas) no Rio de Janeiro. Pai de uma criança negra, ele compartilha sua trajetória de vida, desde o desejo de exercer a paternidade até os desafios e alegrias do processo de adoção. 

Nossa conversa passa por temas fundamentais como o racismo, os avanços do sistema de adoção brasileiro, a importância da representatividade,o papel das redes de apoio e a força das famílias LGBTQIAPN+. 

Mais do que uma entrevista, este é um relato sobre amor, representatividade e resistência. Fioravante mostra que ser pai, no seu caso, é também um ato político. E nos lembra que ninguém deveria abrir mão de sonhar com a família que deseja. 

“Homens gays que sonham em ser pais, não tenham medo. Vivam esse sonho, ele é possível. Eu também fui adormecido, mas acordei a tempo, e hoje tenho a minha família e sou muito feliz com o meu filho”, afirma ele, com a sensibilidade de quem sabe o que é desafiar expectativas e construir um lar com base no afeto e responsabilidade 

Diego do Subúrbio: Você é um dos nomes à frente da luta por reconhecimento das famílias homotransafetivas no Rio de Janeiro. O que te motivou a se engajar na ABRAFH e como essa atuação se conecta com a sua trajetória pessoal? 

Fioravante Cardoso: Tudo começou por volta de 2016, talvez início de 2017.Nessa época, eu já estava praticamente no processo final de adoção do meu filho, só esperando o tão esperado telefonema. Fui a uma palestra na OAB, no Centro do Rio de Janeiro, que abordava o tema da adoção. Não me recordo se era voltada exclusivamente para adoção homoafetiva ou mais ampla, mas foi ali que conheci o Rogério Koscheck, então presidente da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas). 

Ele estava com o marido e compartilhou a história da sua família: eles adotaram quatro crianças, sendo a mais velha com cerca de 9 ou 10 anos na época. Aquilo me emocionou. Eu me senti tocado e inspirado, porque até então essa possibilidade parecia distante. Conversei com o Rogério, que me apresentou a ABRAFH e me incentivou a me associar. 

E assim fiz. ABRAFH, na época recém-criada, tinha uma atuação nacional, mas com muitas atividades aqui no Rio, já que o Rogério também era do estado. Participei de encontros de famílias, e foi maravilhoso conhecer outras famílias diversas. Era bom saber que não estávamos sozinhos. Existiam outras configurações de familiares como a minha.

Em 2020, fui convidado a compor a coordenação estadual da ABRAFH no Rio de Janeiro. Depois, assumi a coordenação municipal, que exerço até hoje.Minha atuação se conecta totalmente a minha vida pessoal, porque ser pai sempre foi o meu sonho, desde criança. Mas por muito tempo, sendo um homem gay, esse desejo ficou adormecido, pois não me via representado em nenhuma possibilidade de paternidade. 

Diego do Subúrbio: Como foi o processo de adoção do seu filho? Quais foram os momentos mais desafiadores e os mais marcantes dessa experiência como pai homoafetivo? 

Fioravante Cardoso: O processo de adoção do nosso filho foi longo, quase 4 anos, mas muito recompensador. Começou em 2009, quando busquei informações na Vara da infância, mas o grande desafio inicial foi convencer meu marido a entrar no processo. Na época até criei um álbum no Orkut, “Álbum do meu futuro filho”, com fotos de pais com seus filhos. A assistente social nos orientou a fazer o processo juntos para evitar burocracias futuras. 

A demora na adoção depende muito do perfil da criança desejada. Quanto mais restrito( ex: bebê branco de 0 a 1 ano), maior a espera. A realidade nos abrigos do Rio é que a maioria das crianças são negras e mais velhas. Nosso perfil era uma criança de 0 a 3 anos, sexo e raça indiferentes. 

Recebemos uma ligação para conhecer o nosso filho em maio de 2016. Ele tinha 5 meses, então não precisamos da etapa de adaptação. Meu marido ficou muito nervoso no início, mas o momento de segurar o nosso filho pela primeira vez foi “fenomenal”. Levar o bebê para casa e aprender a cuidar dele foi um desafio, mas a gente aprende. 

Um momento desafiador foi quando nosso filho pegou pneumonia com 6 meses, o que nos fez refletir sobre a importância de termos condições de cuidar dele. Outro desafio foi um problema respiratório quando ele tinha 1 ano e meio, passamos a madrugada no hospital. Mas, apesar desses momentos difíceis, as alegrias superam tudo. Tenho até um vídeo da primeira vez que ele falou “papai”, que é um momento inesquecível para mim. 

Diego do Subúrbio: Sendo um homem Cis e Branco, criando uma criança negra, como você lida com o racismo estrutural presente nas intituições, nas escola e até nos espaços sociais? E como busca fortalecer a identidade racial do seu filho nesse processo? 

Fioravante Cardoso: O fato de eu ser gay me salvou. Porque se eu não fosse gay, talvez eu fosse um homem branco, cis, hétero, que reproduz racismo, machismos e misoginia como todos outros homens da minha família. Porque eu fui criado num ambiente racista. Mas o fato de eu ser oprimido por ser gay me despertou para outras opressões que não me atravessam diretamente. Então eu comecei a me desconstruir, a me letrar, a buscar outros lugares. E aí, quando veio o nosso filho, a gente já estava minimamente letrado. A gente foi se letrando com ele. Foi vivendo as coisas com ele. 

Por exemplo, a gente foi num parquinho e uma criança branca falou assim pra ele: “mamaco”. Então ali a gente entendeu que o racismo já se colocava na vida dele. E ele não entendeu, ele era pequeno. Mas ali a gente entende que a gente tinha que começar a

construir nele um letramento racial. A gente teve que começar a construir nele um orgulho de ser uma criança preta. Orgulho do cabelo dele, da cor dele,do nariz… Orgulho da ancestralidade dele. Ele enfrenta também a questão da homofobia indireta. Às vezes, por exemplo, o que ele ouve de crianças: “Não brinca com ele não, porque ele não tem mãe, ele só tem dois pais”. Entendeu? Então, é uma homofobia indireta que ele também tem que lidar, porque a gente já ensinou ele, falou assim: “Olha, você tem dois pais que te ama, né?E que te amam muito e que são presentes. Então, não tem problema nenhum ter dois pais”. Então ele tem orgulho de ter dois pais, sabe, Diego? E tem orgulho de ser negro, de ser quem ele é, e isso é o importante, porque ele já lida com o sistema. 

Diego do Subúrbio: Você acredita que o sistema de adoção brasileiro está preparado para lidar com a diversidade das famílias contemporâneas? O que ainda precisa mudar para que famílias LGBTQIAPN+ se sintam verdadeiramente acolhidas? 

Fioravante Cardoso: Acredito que o sistema de adoção brasileiro, especialmente o judicial, tem avançado bastante, hoje, está mais preparado para lidar com a diversidade das famílias contemporâneas. No meu caso, não enfrentei preconceito direto durante o processo de adoção, e vejo que casais LGBTQIAPN+ e até pessoas solteiras estão sendo acolhidas com naturalidade. Tenho alguns conhecidos gays passando pelo processo e recebo muitas mensagens de casais querendo adotar, o que mostra que há interesse e possibilidade real. Mas apesar dos avanços, eu sei que a gente não pode baixar a guarda. Há movimentos conservadores tentando tirar nossos direitos, como aconteceu na Itália. Por isso, acredito que precisamos continuar firmes, atentos e organizados, garantido que nossos filhos e famílias sejam respeitados. A luta não acabou, mas estamos em um momento importante e é fundamental ocupar esse espaço com orgulho e visibilidade. 

Diego do Subúrbio: Ser pai, no seu caso, é também um ato político. O que você diria para outros homens gays que sonham em exercer essa paternidade, mas que ainda têm medo ou acham que esse lugar não lhes pertence? 

Fioravante Cardoso: Homens Gays que sonham em ser pais, não tenham medo.Vivam esse sonho, ele é possível. Eu também fui adormecido, mas acordei a tempo, e hoje tenho a minha família e sou muito feliz com o meu filho. Eu queria mais, tá? Mas nem tudo é possível, né? E tudo bem. Hoje estou muito feliz com o meu filho. Ele tem 9 anos, está na escola, está sendo bem educado. Aprendendo a lidar com as estruturas de opressões da sociedade, se tornando uma pessoa que sabe respeitar e acolher o próximo. Uma criança que se orgulha de ter dois pais, é carinhoso, é lindo de ver. 

Eu acredito que o receio de muitos homens gays também pode estar ligado à ausência de uma rede de apoio. Quando eu e meu marido pegamos o nosso filho, fomos pra casa da minha sogra. Ter esse suporte no início foi fundamental. Infelizmente, muitos de nós não tem esse apoio familiar por conta da homofobia, do preconceito. E isso pode afastar a realização da paternidade.

Foi aí que conhecer a ABRAFH fez toda a diferença pra mim. Eu já estava no processo de adoção quando conheci a associação, mas aquilo foi um suporte enorme. Pensei: “Caramba, existe uma associação de famílias transafetivas, com filhos, sem filhos, mas formadas por pessoas LGBTI+, Isso fortalece muito. ABRAFH virou uma grande rede de apoio. E é isso que muitos de nós precisamos, saber que não estamos sozinhos. Que é possível ser pai, sim, com dignidade, com visibilidade, com afeto e com orgulho.