Sem feminismo não há agroecologia: mulheres em luta no 08 de março de 2021
Entrevista com Beth Cardoso, do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Coordenação Política Ampliada da Marcha da Margaridas.
Com a pandemia e o governo machista de Bolsonaro, que mantém uma equipe composta, em sua maioria, por homens brancos, o dia de luta das mulheres no 08 de março será diferente neste ano. Sem a possibilidade de se manifestarem nas ruas, as mulheres realizarão diversas atividades online e manifestações virtuais. A violência contra a mulher, que é uma pauta fundamental do movimento, se renova frente à crise sanitária mundial trazendo mais elementos que evidenciam a desigualdade de gênero no mundo.
Para conversar sobre o tema com um recorte um pouco mais para o meio rural e a agricultura familiar, Beth Cardoso, do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Coordenação Política Ampliada da Marcha da Margaridas, fala sobre o que está sendo discutido nos movimentos. Segundo ela, a pauta das desigualdades às quais as mulheres estão submetidas, como a pobreza e a violência, continua fortemente presente este ano. Mas, com a pandemia, o desmonte da saúde pública e a desestruturação das políticas para as mulheres, que vêm sendo implementados desde o golpe de 2016, o descompromisso do atual governo com o impacto da crise econômica e sanitária para a população, torna-se urgente também as pautas Fora Bolsonaro, Auxílio Emergencial, Defesa do SUS e Vacina Já para todas e todos .
Na conversa, Beth destaca a importância da campanha Divisão Justa do Trabalho Doméstico, lançada em 2020 por movimentos, organizações e redes sociais do campo, entre elas a ANA. Essa campanha denuncia o aumento do trabalho das mulheres, resultante da intensificação do trabalho remoto por causa da pandemia. Fala também das dificuldades que as mulheres enfrentam no campo, onde existem poucos equipamentos públicos para acolher as denúncias e dar proteção contra a violência doméstica e falta informações às mulheres sobre seus direitos. Esta é uma temática também abordada pela campanha Agroecologia nos Municípios, realizada pela ANA.
Qual a avaliação dos movimentos das mulheres sobre este governo e o que está na pauta para o 08 de março deste ano?
Este ano, devido ao contexto de pandemia, a maioria das mobilizações estão sendo virtuais. Neste 08 de março, torna-se super urgente para os movimentos se manifestarem em relação ao contexto político em que estamos vivendo, que é muito desfavorável para as mulheres, como a própria conjuntura de vivermos sob um governo machista, racista e misógino. As políticas públicas para mulheres e pra agrigultura familiar, camponesa e tradicional, que deixaram de existir desde o golpe de 2016, e a pandemia, que corrobora com o aumento da violência contra as mulheres. A maioria das agricultoras e agricultores deixaram de fornecer produtos para a alimentação escolar, com o fechamento das escolas, e, em alguns municípios, as feiras agroecológicas ainda estão fechadas, causando dificuldades para a comercialização de produtos e a manutenção da renda dessas famílias. Vale destacar que os territórios da agricultura familiar/camponesa/tradicional/agroecológica despontaram neste contexto de pandemia como espaços de resiliência, porque, mesmo em tempos completamente adversos, conseguiram produzir alimentos, inclusive doando para famílias em situação de insegurança alimentar. A resiliência do modo de produção familiar vem muito a partir do modo de produção das mulheres, que prioriza a produção para o autoconsumo, sendo, muitas vezes, objeto de disputa nas famílias. É muito comum vermos as mulheres brigando para aumentar a área dos quintais de cultivo para o autoconsumo. Os homens, normalmente, têm uma produção mais voltada para o mercado, numa lógica onde buscam vender mais produtos e comprar os alimentos e, muitas vezes, propõem aumentar as áreas de cultivo para venda. Neste momento de pandemia, quando diminui a venda dos produtos, a produção para o autoconsumo é o que sustenta as famílias. É importante percebermos a participação das mulheres e suas estratégias, ajudando as famílias a passarem pela crise da pandemia, mantendo, assim, as unidades familiares de agricultura.
Temos um governo de um homem branco e a maioria da equipe machista, vocês já fizeram um balanço sobre a entrada das mulheres nestas últimas eleições locais?
A pauta das mulheres para este governo é Fora Bolsonaro, por tudo o que ele representa contra as mulheres, seu machismo, racismo, homofobia, misoginia, etc. O que deu pra percebermos muito claramente nesta última eleição foi uma maior inserção das mulheres negras e trans na política, ficando entre as mais votadas em 13 capitais do país. Claro que ainda em número muito menor, mas chegaram fazendo muito barulho e trazendo para o debate público a pauta do machismo, racismo, homofobia e transfobia. Isso pode ser um retrato de como as pessoas estão vendo a questão do desenvolvimento das cidades, da importância da representatividade das mulheres, principalmente das negras. Foram também muitas candidaturas coletivas de mulheres, algumas vitoriosas, baseadas em experiências muito bem-sucedidas já em curso. Esse protagonismo das mulheres negras talvez seja por conta deste momento de acirramento do racismo no nível internacional, mas, principalmente, no nível nacional, que trouxe esse debate para as eleições.
O presidente fascista destila preconceitos a cada fala, então, acima de tudo, precisamos reafirmar a pauta Fora Bolsonaro. Não tem negociação com esse governo, que tem um ministério da mulher que é extremamente fundamentalista religioso, preconceituoso e reacionário, que troca a pauta feminista pela religiosa e atua mais contra os direitos das mulheres do que a favor. Não existe a possibilidade de construirmos um país justo para as mulheres com o governo Bolsonaro. Outra pauta que reafirmamos firmemente neste contexto de pandemia é a defesa do SUS, porque ficou claro para a sociedade que se não fosse pelo SUS, mesmo com toda a incapacidade do governo de administrá-lo, essa crise sanitária seria extremamente pior… E defendemos Vacina Já para todos e todas!
A violência contra as mulheres durante a pandemia aumentou por uma série de fatores, seja pelo aumento do tempo das famílias em casa, ocasionado pelo trabalho remoto, pela perda de empregos, diminuição da renda, aumento dodo consumo de álcool e drogas e os conflitos domésticos. Temos esta preocupação no GT Mulheres da ANA e por isso reconstruímos a campanha Divisão Justa do Trabalho Doméstico, criada pela Rede Feminismo e Agroecologia do Nordeste, e estamos dialogando com as agricultoras em relação a esse tema.
E onde se materializa essa pauta da violência contra a mulher em termos de reivindicação, na Lei Maria da Penha, delegacias da mulher etc?
Nos processos de formação que levam informação às mulheres, principalmente as rurais, que têm menos possibilidade de acesso aos equipamentos públicos de recebimento das denúncias de violência doméstica do que as mulheres urbanas. Não há delegacia da mulher na maioria dos municípios brasileiros, por exemplo. Esse é um equipamento público que não está à disposição da maioria das mulheres, principalmente no campo. Elas têm mais dificuldades de fazer um boletim de ocorrência, menos acesso à internet e sinal de celular, menos acesso à delegacia, pois não há transporte público suficiente na zona rural para que as mulheres possam prestar queixa etc. Nas cidades pequenas, muitas vezes o delegado é amigo do marido da vítima de violência, ou o próprio é violento com a mulher e é conivente com a violência doméstica. É um processo muito difícil para as mulheres, mas a campanha pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico tem trazido esse debate para as mulheres.
Parte do aumento da violência doméstica durante a pandemia tem a ver com os conflitos gerados pela realização do trabalho doméstico, porque mesmo com homens e mulheres em casa, em trabalho remoto, elas ainda, na maioria das vezes, assumem sozinhas o trabalho doméstico. É muito comum ver os homens fazendo lives, enquanto suas mulheres estão trabalhando remotamente ao mesmo tempo que dão atenção aos filhos, se preocupam com a comida, com a organização da casa e das roupas, com a saúde da família, tutoram a educação à distância dos filhos, ou seja, a sobrecarga das mulheres aumentou nesse modelo de trabalho em casa. A campanha traz este debate, até porque muitas nem têm consciência da possibilidade de uma divisão justa, porque a cultura patriarcal é muito forte na sociedade e vai se impondo como algo que não se pode mudar. A campanha mostra como os direitos e deveres são de todos, inclusive o trabalho doméstico e a reprodução da vida, que ficam a cargo das mulheres, mas que devem ser compartilhados. Alertamos que é possível e necessário mudar essa divisão, e também dar informações de como denunciar a violência, procurar ajuda etc. Sabemos que os equipamentos públicos são escassos, insuficientes, mas quando as mulheres tomam consciência, buscam ajuda, inclusive das companheiras, percebem que não precisam viver uma vida de exploração e violência.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, houve um aumento de chamadas para denúncia de violência doméstica e aumento no número de feminicídios durante a pandemia, mesmo com as subnotificações, sabendo-se que elas enfrentaram muito mais dificuldade de denunciar com os homens dentro de casa. A violência pode ter sido muito maior, porque, por diversos motivos, nem todas denunciam. Também houve um momento de muita dificuldade para fazer as denúncias, com as delegacias fechadas. Para as mulheres rurais é ainda mais difícil, pois a maioria não tem acesso à internet.
Como fica a situação da mulher em um cenário de encolhimento da economia, com alto índice de desemprego, aumentos dos preços, fim do auxílio emergencial e, mais recentemente, a possibilidade de retorno desse auxílio, mas com o valor cortado pela metade?
O desemprego é gritante. Percebemos também o quanto a vida das mulheres piorou na pandemia. Uma pesquisa feita pela organização feminista SOF nos chama a atenção, pois 40% das mulheres apontaram que a pandemia e o isolamento colocaram o sustento da casa em risco, 50% passaram a cuidar de alguém na pandemia, 71% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento dos filhos e companhia e 58% das mulheres desempregadas são negras. Muita gente que perdeu o emprego ficou depedendo do auxílio emergencial, mas nem tem garantia de ter essa ajuda financeira durante todo o período de pandemia. É uma questão grave que está na pauta. E muitos agricultores (as) familiares ficaram de fora do auxílio com o veto do Bolsonaro ao PL 735/2020, que previa estender o auxílio emergencial para a agricultura familiar.
Outra pauta que esses dados nos trazem é sobre o racismo. Da mesma forma que as mulheres negras estão em situação desigual em relação aos empregos, vemos isso se repetir no campo. A maior parte dos agricultores e agricultoras no Brasil é composta de pessoas negras, mas fica com a menor parte das terras. Precisamos perceber que boa parte da situação de exclusão da agricultura familiar, camponesa e tradicional tem relação com isso. No movimento agroecológico precisamos ainda aprofundar esse debate, mas a articulação em torno desse tema nos coletivos e redes de agroecologia tem se fortalecido. Para trazer essa pauta para o movimento agroecológico convidamos movimentos quilombolas, indígenas, coletivos de mulheres negras e as integrantes do GT Mulheres da ANA e convocamos um Encontro Nacional de Mulheres Negras, Indígenas e Quilombolas da Agroecologia, a ser realizado no Maranhão, em 2022. Haverá um processo preparatório virtual com encontros online e oficinas ao longo de 2021 para construirmos esse evento fortalecendo a pauta do movimento agroecológico como um todo.