Por Alexandre Cunha

“Será que um dia eu vou sair daqui?”, questiona um personagem adolescente, em determinada cena de Sem Coração. A indagação, simples em teoria, carrega uma imensidão de sensações: ansiedade pelo futuro, curiosidade pelo novo, medo da estagnação. O pantanoso terreno da adolescência é o mote do filme dirigido por Nara Normande e Tião, uma das produções brasileiras mais premiadas do último ano* que, finalmente, chegou aos cinemas do país, na última quinta-feira (18).

A obra é homônima de um curta-metragem, lançado em 2014 pela dupla de realizadores. Enquanto a primeira produção aborda um adolescente de classe média urbana que vai passar as férias numa casa costeira e se apaixona por uma menina conhecida como Sem Coração, o longa-metragem traça uma narrativa diferente. O ano é 1996 e conhecemos Tamara (Maya de Vicq), adolescente que mora no litoral de Alagoas e aproveita os últimos dias na sua cidade natal, antes de se mudar para Brasília, por causa do vestibular. Filha da classe média, Tamara vive rodeada por seus amigos, adolescentes cuja condição social é explicitamente diferente da sua.

Também moradora do local, mas escanteada pela turma de Tamara, é a Sem Coração (Eduarda Samara). A jovem é assim chamada pelos garotos, porque estes acreditam que, quando mais nova, após por uma cirurgia, ela teria ficado sem o órgão vital (a personagem, na verdade, tem um marcapasso). O passado misterioso de Sem Coração desperta a curiosidade de Tamara, em todos os sentidos, e então o filme nos leva ao seu caminho de descobertas sobre Sem Coração; em última instância, descoberta sobre a própria vida adulta. 

O apuro estético de Sem Coração é impressionante. Quanta beleza – e eficiência narrativa – no plano onde os jovens se equilibram e caminham sobre os galhos de um manguezal: é um retrato perfeito da tortuosa fase que é a adolescência. Aproximando-se do realismo fantástico, o filme cria potentes imagens onde meio ambiente, animais e seres humanos interagem. É impossível falar do esmero técnico de Sem Coração, sem enaltecer a figura da baleia. Construído materialmente pela equipe do diretor de arte Thales Junqueira, o enorme animal é enigmático e dá margem para inúmeras interpretações. Encalhada morta na praia (e sonhada dias antes pelas personagens de Tamara e Sem Coração), a baleia representa o medo diante de algo colossal e desconhecido? A curiosidade por um corpo estranho? O fim de uma fase? 

Beneficiado por um elenco extremamente afiado, o filme transpira a alegria e a energia juvenis. Mesmo transitando no saturado ambiente de filmes coming-of-age, a obra de Nara Normande e Tião é honesta e não se deixa seduzir pelos clichês das narrativas do tipo. Há espaço para cenas profundas e reflexivas, bem como tiradas cômicas muito inspiradas. Não tem como não rir na cena onde os adolescentes se masturbam e são surpreendidos por Cidão (o encantador Lucas da Silva). Todos os jovens estão muito bem, mesmo sendo o filme de estreia para muitos deles: Kaique Brito, influenciador digital baiano, brilha como Binho. Outro destaque é Galego, interpretado com vivacidade por Alaylson Emanuel. Entre os veteranos, Maeve Jinkings mais uma vez mostra por que é uma das principais atrizes brasileiras em atividade. 

É com ela uma das cenas mais lindas do filme: mãe e filha unem suas vozes à de Maria Bethânia e repetem o refrão de “Iansã” (Caetano/Gil): rainha dos raios/ tempo bom, tempo ruim. A trilha sonora, inclusive, é um elemento muito pertinente. Se o espectador prestar atenção às letras, perceberá como a escolha das canções ajuda a contar a história do filme. Na cena da festinha, a música “Timidez”, da banda de forró Cavalo de Pau, deixa claro as inclinações da protagonista: há muito tempo que eu te quero/ espero por você/ dizer que estou apaixonada/ mas fico calada, o que vou fazer?

Se, por um lado, os prazeres da vida adulta encantam e movem os desejos dos personagens, em paralelo a violência de uma sociedade desigual frustra e, em muitos casos, destrói sonhos. Na dose certa, o filme demonstra como o racismo, o machismo e as injustiças de classe marcam a vida desses jovens. Balanceando melancolia e esperança, Sem Coração não apela para fórmulas sentimentais em sua conclusão. Deixa um gosto agridoce na boca, como se quiséssemos ter certeza que aqueles personagens vão ficar bem. Não temos certeza. Como na vida, não há garantias indestrutíveis. A gente só pode torcer pelo melhor. 

*Sem Coração fez parte da seleção oficial do Festival de Veneza 2023. Venceu o Prêmio do Júri, no Festival International du Film d’Amiens, e a Melhor Contribuição Artística no Festival de Havana.Teve sua primeira exibição nacional no Festival do Rio, ainda em 2023, onde venceu o Redentor de Melhor Fotografia e o Prêmio Félix de Melhor Filme. A obra ainda foi destaque no Fest Aruanda e conquistou o Prêmio ABRACCINE de Melhor Longa na Mostra de São Paulo.