Segredos de um Escândalo e a performance do cotidiano
Haynes traz sua marcante estilística melodramática com muita sofisticação, a serviço de uma crônica do cotidiano sobre a obsessão do estadunidense pela imagem
Por Igor Fonseca*
‘Segredos de um Escândalo’, longa-metragem dirigido por Todd Haynes, é um filme que perdeu força ao longo da temporada de premiações de 2024 e teve de se contentar com uma única indicação ao Oscar, na categoria Melhor Roteiro Original. O trabalho da estreante Samy Burch é inegavelmente bom, e merece o reconhecimento pela abordagem sarcástica e cheia de camadas sobre uma tragédia velada por tortas de abacaxi, pupas e convenções sociais da classe média branca.
Na história, somos apresentados a Elizabeth (Natalie Portman), uma atriz incompetente e narcisista que precisa realizar uma pesquisa de campo para interpretar Gracie (Julianne Moore), outra atriz igualmente narcisista, porém um pouco mais bem sucedida em sua façanha. Apenas duas coisas separam essas duas mulheres: a visibilidade e a remuneração recebidas por suas respectivas performances.
Gracie não tem a projeção popular de uma carreira na TV, mas vive uma eterna encenação, e faz do subúrbio o seu estúdio de cinema. Seu marido, Joe (Charles Melton), funciona ao mesmo tempo como vítima e parceiro de cena, por meio de um acordo cruel cujos termos jamais foram corretamente expostos a ele. Sob o estandarte da família que forjaram, projetam uma frágil imagem de estabilidade e superação das circunstâncias.
Faz total sentido um cineasta como Todd Haynes se apossar desse projeto. O diretor, conhecido por obras como ‘Longe do Paraíso’ e ‘Carol’, sempre teve interesse nas interlocuções entre os papéis sociais de gênero e as consequências da conformidade para a evolução individual de seus personagens. Em ‘Segredos’, Gracie e Joe precisam interpretar o casal estadunidense médio, tanto para fora quanto para dentro do relacionamento, de modo a justificar sua existência.
Interessante ver também o quanto a manutenção desses papéis é feita conscientemente por Gracie, ao ponto dela utilizá-los como ferramenta de manutenção do controle sobre Joe. O ideal da feminilidade branca, baseada em virtudes como pureza, delicadeza e passividade, são seu escudo para justificar suas ações e evitar consequências. E o fato de Joe não ser um homem branco torna tudo, se é que é possível, mais perturbador.
Elizabeth surge para bagunçar a ordem, ao mesmo tempo em que não se difere muito do seu objeto de estudo. Uma presença vampiresca que suga dos outros, sem ética nem misericórdia, tudo o que for necessário para avançar. Para além da metalinguística, na qual ela se enquadra como metáfora para a natureza implacável do cinema com vidas reais, Elizabeth cutuca, ainda que com intenções narcísicas, a dinâmica social e de gênero vigente.
Haynes traz sua marcante estilística melodramática com muita sofisticação, a serviço de uma crônica do cotidiano sobre a obsessão do estadunidense pela imagem.
O filme está disponível para streaming no Prime Video e na Apple TV+.
*Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024