Por Isabella Vilela

A segunda mesa de conversa da SEDA trouxe o debate sobre a “Soberania e audiovisual na era do streaming” e contou com a participação de grandes nomes do setor, como Rodrigo Siqueira, Laís Bodanzky, Débora Duboc, Tatiana Carvalho, Pedro Tinen, Douglas Duarte e Daniel Jaber, sob a mediação de Alfredo Manevy.

O principal tema discutido foi a regulação do VOD (Video On Demand), considerado o assunto mais estratégico para o audiovisual brasileiro no momento. No congresso, essa questão ganhará destaque nos próximos meses, com visões e projetos que podem significar tanto avanços quanto enormes retrocessos para o setor.

Para entender melhor

A introdução do debate, conduzida por Manevy, nos levou há dez anos, onde o Brasil podia se orgulhar de ter uma das legislações mais avançadas do mundo no setor audiovisual, a conhecida Lei da TV Paga. Essa lei, aprovada em 2011, foi fruto dos esforços dos governos de Lula I e II e do governo Dilma, além do setor audiovisual brasileiro, para criar um marco regulatório moderno que, pela primeira vez, incluiu as televisões por assinatura na regulação do cinema e do audiovisual brasileiro. Enquanto isso, na Europa, essa prática já era adotada há mais de 30 anos.

A partir desse ponto, um ciclo de políticas públicas transformou o cenário cultural brasileiro. A lei não só estabeleceu cotas nas programadoras brasileiras e estrangeiras, garantindo uma demanda real para o conteúdo independente brasileiro e impulsionando a produção nacional, como também gerou uma demanda de aproximadamente 8 mil horas por ano de conteúdo original. Isso forçou os canais a buscarem conteúdo no mercado independente, o que gerou empregos e profissionalizou o setor. A lei também criou uma taxação sobre as empresas de telecomunicação e telefonia, especialmente as ligações de celular, fortalecendo o Fundo Setorial do Audiovisual.

Esse fundo foi essencial para o país avançar em diversas pautas, como a profissionalização do setor e a implementação de políticas que alcançaram todo o território nacional, não se limitando ao eixo Rio-São Paulo. Políticas afirmativas de equidade de gênero e racial se tornaram mais fortes. O número de produtoras no Brasil aumentou e houve um salto na qualidade e quantidade de animações, séries e longas-metragens, que passaram a ter ainda mais reconhecimento internacional.

Por volta de 2013 e 2014, quando o streaming se tornou uma realidade com a chegada da Netflix, o chamado “mundo desenvolvido” já discutia a regulação necessária para manter políticas públicas e garantir o desenvolvimento dos cinemas nacionais e produções locais nesse novo cenário de distribuição de conteúdo via internet.

Há 14 anos, o mundo viveu sua primeira onda de regulação. Naquela época, o Brasil estava se preparando para discutir essas questões, mas, eis que chegou a Roda Viva e com o golpe sofrido pela presidenta Dilma, esse processo foi interrompido e deixado de lado. Muitos acreditam que essa interrupção fez parte dos acordos políticos que levaram à queda de Dilma e à ascensão de Temer, entregando o mercado audiovisual brasileiro a uma terra sem regras.

Em seguida, o governo Bolsonaro além de tratar a cultura como inimiga, também acelerou a entrega do mercado brasileiro de VOD a um espaço sem regulamentação. Em 2019, quando o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pediu a Bolsonaro que interferisse na Lei da TV Paga para permitir a fusão da Time Warner com a AT&T, Bolsonaro editou uma medida provisória para alterar a lei, facilitando a concentração de mercado nas mãos estadunidenses.

Em 2022, com o início do governo Lula III, houve esperança e expectativa no setor cultural pela retomada do Ministério da Cultura e pelo enfrentamento das questões estruturais do audiovisual brasileiro. Contudo, em abril deste ano, o Senado Federal aprovou um projeto relatado pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO) que vai contra as expectativas do setor. Esse projeto fragiliza o conceito de produtora brasileira, permitindo que produções originais dos streamings acessem recursos públicos e estabeleçam uma taxação insignificante de 3%, reduzida a 1,5%, enquanto em outros países – que possuem mercados menores que o brasileiro -, a taxação é de 19/20%.

Foto: Moana Marques/Produtora Pineal

Destaques entre os convidados

Apesar de estarmos em um contexto democrático com espaço para diálogo, tivemos uma derrota profunda para o audiovisual brasileiro.

Para Laís Bodanzky, sua participação como presidente da Spcine trouxe uma visão muito interessante: a noção do audiovisual como indústria. Ela passou a se questionar por que o audiovisual é considerado uma indústria? “Porque é uma grande engrenagem e se uma parte dela não funciona, todas as outras partes param de funcionar também. Não dá para existir sem que todas as partes funcionem perfeitamente. Falo isso porque, quando discutimos a regulação do VOD nesse espaço sem lei, uma terra de ninguém, a falta de regulação afeta completamente nossas carreiras”, diz a cineasta. 

Segundo dados recentes da Ancine, no total, o Brasil possui 12.946 produtoras independentes registradas, mas apenas 4.981 (38,5%) estão ativas. Como produtora independente, Laís aponta que o trabalho dessas pequenas empresas seja exposto de forma adequada nas plataformas, com a visibilidade necessária para competir de igual para igual com produções estrangeiras, especialmente norte-americanas, que chegam com muito marketing e dominam as páginas principais dessas plataformas de streaming. “Não basta apenas que meu filme esteja lá; as pessoas precisam saber que ele está lá. É isso que agrega valor ao filme ou série e remunera os produtores e artistas. Então, quando falamos sobre regulação, estamos falando sobre como vamos regular, e isso é muito importante. Quando falamos sobre indústria, precisamos ouvir todas as partes, não apenas aqueles com maior poder aquisitivo”.

Para Pedro Tinen, cineasta e pesquisador de cinema residente na Alemanha, quando falamos sobre a regulação do VOD no contexto europeu, nos referimos à lei aprovada pelo parlamento em 2018 e, desde então, os países adaptaram essa lei para suas respectivas legislações. No entanto, não devemos ver o modelo como ideal e perfeito. “Podemos olhar para este modelo europeu e para a sua aplicação, mas nossa grande necessidade é uma visão sistêmica e industrial. Precisamos definir o papel da regulação dos serviços de streaming na cadeia audiovisual brasileira. Essa regulação deve permitir uma economia audiovisual independente e a difusão de uma cultura audiovisual brasileira. Esses são alguns dos princípios fundamentais para trazermos comparações, que muitas vezes são muito assimétricas quando olhamos para os modelos francês, alemão e português. Não podemos deixar de considerar essas regulações, mas devemos entender o que é adaptável e quais são as nossas necessidades”, destaca.

Débora Duboc falou sobre como discute militância dentro de casa. A atriz, conselheira do Conselho de Comunicação Social do Senado e parceira de Toni Venturi, está empenhada na luta pela aprovação do PL 8889/17, que leva o nome de seu marido, buscando garantir que seja aprovada de acordo com as necessidades do setor. “A minha origem também é o audiovisual, porque sou uma atriz com vivência dentro do cinema. Lá em casa, dividimos a militância. O Toni focou muito na questão e realmente lutou durante décadas por uma política estruturante do ‘fazer cinema e audiovisual’. Acho que agora, apesar de sabermos que a briga é grande e que existe um projeto forte para tomar nosso imaginário — e esse projeto não é recente, mas de longa data —, temos uma oportunidade. Meu filho disse recentemente: ‘Mãe, daqui para frente não vamos saber o que é o Saci, agora é só festa de Halloween’. Precisamos entender que é um momento de construir não apenas um audiovisual soberano, mas também uma nação soberana”.

A atriz continua: “os dois PLs são muito diferentes na sua natureza. O PL 2331, com relatoria do senador Eduardo Gomes, é uma coisa; o PL 8889, que agora leva o nome do meu companheiro Toni Venturi, tem outra natureza. Precisamos sensibilizar o Governo para estar conosco, mas também sensibilizar a sociedade civil. Isso vai gerar muitos empregos e elevar nossa autoestima, pois nos vemos na tela e levamos essa diversidade para o Brasil e para o mundo. Há muito em jogo”.

Para Douglas Duarte, diretor e sócio da PULO Filmes, não existe uma clareza sobre a ameaça existencial do audiovisual brasileiro e a preocupação é econômica. “Recentemente, no evento do cinema nacional, Lula disse que precisamos agir, e temos essa consciência, mas vejo com muita preocupação a posição do governo baseada em coisas que ouvimos aqui e ali. Há alguns dias, o Ministério da Cultura divulgou um resumo do que eles veem como uma boa política para regular o VOD e, na minha opinião, o que eles defendem como uma boa política é ruim. Estudo VOD há 5 anos. Na primeira proposta da API, tive o privilégio de redigir e apresentar aos representantes do governo Temer, quando ainda fingiam que fariam algo.

Em essência, o Ministério da Cultura opina que 6% é ok, com desconto de 50% desse valor. Ou seja, desses 6%, as plataformas podem pagar 3% de CONDECINE com seu faturamento, e o resto pode ser reinvestido de diversas formas ainda não claras, como comprando material independente brasileiro ou material brasileiro, que é muito diferente. Pode ser investido em estúdios, entre outras coisas. E persiste uma tendência de não falar nas remessas dessas plataformas. Netflix, Disney, Prime e outras ganham dinheiro no Brasil e remetem esse dinheiro para fora. Nenhum dos projetos prevê como taxar esse dinheiro. Nas televisões e estúdios de cinema, esse dinheiro é taxado em 11%. Nos valores de hoje, se taxarmos as remessas que mandam para fora, isso dá 1.5 bilhão de reais. Por que estamos abrindo mão desse dinheiro agora? Em nome de quê? São as maiores empresas de audiovisual do mundo hoje em dia, então por que estão com essa isenção fiscal? Quem está decidindo isso e por quê?”.

Douglas comentou que esteve em algumas conversas com parlamentares, inclusive com a equipe do Eduardo Gomes, e notou um desconhecimento do tema por parte dos integrantes. “Em algumas reuniões, ouvimos que o Brasil precisava ser um país atrativo para essas plataformas. O que é estranho, considerando que somos o segundo maior mercado dessas plataformas no mundo. Quando o PL foi aprovado em abril e quando saiu esse documento do Governo sobre a regulação do streaming, se eu fosse de uma plataforma, estaria gargalhando e pedindo um prato de lagosta. Para o audiovisual brasileiro, isso é péssimo. O fundo setorial vai minguar com o tempo. Se a nova tecnologia não estiver regulada, ela não vai contribuir. Se minha pequena produtora consegue contribuir, imagino que a Netflix também consiga sem grandes problemas. Precisamos garantir que nosso audiovisual apareça e resolva seu problema de distribuição. Falamos muito sobre fomento, mas uma parte importante de regular bem o VOD é garantir que vençamos um gargalo histórico do audiovisual brasileiro, que é colocar nosso conteúdo na frente de quem quer ver um filme”.

Tatiana Carvalho Costa, pesquisadora e atual presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), ressaltou que este é um assunto que atinge o âmbito nacional. “Estamos olhando para a regulação do VOD e é importante entender que essa regulação não é uma panaceia. Precisamos abordá-la compreendendo a cota de tela e a proeminência, que alteram o algoritmo e o que é oferecido para quem consome conteúdo. Recentemente ouvimos que “Divertida Mente tem muita exibição porque as pessoas querem ver”. As pessoas querem ver porque é o que é oferecido massivamente. Precisamos de uma regulação que crie um sistema mais justo, permitindo mais espaço para o cinema brasileiro, mas compreendendo a dinâmica estruturante.

A pesquisadora também apontou como essa regulação precisa ser pensada sob a ótica de uma política pública estruturante e como nós, defensores dessa causa, estejamos bem informados. “Assim que for aprovada, e esperamos que seja considerando os pontos fundamentais discutidos aqui, como produções independentes, nosso direito patrimonial, a cota de tela e a verba para todos os setores, inclusive infraestrutura, teremos outra batalha: como operacionalizar essa distribuição no comitê gestor do Fundo Setorial Audiovisual. Precisamos ser incansáveis”, finalizou.

Confira o debate completo: