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Sean Baker explora mais uma vez a verdadeira essência do “sonho americano” em Anora
Em mais um de seus filmes, Baker aprofunda o significado do “sonho americano” em seus personagens marginalizados.
Por Rafael Delgado
Sean Baker, o diretor que completa 54 anos este ano, ficou conhecido por estampar em seus filmes tramas independentes que envolvem trabalhadores do sexo e pessoas marginalizadas dentro do país cujo slogan vende o famoso sonho americano. Num país onde a vida deveria ser balanceada e com oportunidades para todos, em seus filmes, Baker escancara um sistema americano falido, que nunca deu chances para pessoas que estão na outra ponta do iceberg dessa sociedade.
Dentro de suas primeiras produções, todas de baixo orçamento até então, Baker, sem nenhum preconceito moral, retrata em Take Out (2004) um dia na vida de um imigrante chinês que trabalha como entregador para uma loja chinesa em Nova York. Ming, a personagem central da obra, está cheio de dívidas e deve dinheiro a contrabandistas que o trouxeram para Nova York.
Logo em seguida, após ganhar mais notoriedade com Prince of Broadway (2008), filme que aborda o tráfico nas ruas de Nova York, e Starlet (2014), filme que conta a história de uma estrela de filmes adultos que faz amizade com uma idosa solitária e recém-viúva, Sean Baker vê em Tangerine seu principal filme para abrir as portas do mercado cinematográfico.
Em Tangerine (2015), utilizando câmeras de iPhones 5s, Baker constrói um enredo que aborda uma trabalhadora do sexo transexual que sai da prisão e descobre, por meio de sua melhor amiga, que seu namorado está saindo com outra pessoa, uma mulher cisgênero. Tangerine conquistou alguns prêmios do cinema independente, como o Gotham Independent Film Awards e o Independent Spirit.
Conseguindo mais visibilidade, Sean Baker emplacou seu grande sucesso de bilheteria até então, The Florida Project, em 2017. Baker mostra nesse filme uma Orlando “escondida” da grande maioria das pessoas. Mais uma vez focando nas pessoas marginalizadas dos EUA, o filme retrata a realidade de famílias que vivem em motéis baratos, nos arredores dos parques da Disney, perto da rodovia de Orlando. Famílias que, na maioria das vezes, são compostas por imigrantes ou estadunidenses pobres que lutam para pagar o aluguel no final do mês.
Já em seu penúltimo filme antes do grande e badalado Anora, Baker explora em Red Rocket a vida de um fracassado ator pornô que planeja um retorno frustrante ao estrelato.
Agora, em Anora, já com seu nome consolidado no mercado, Baker se aprofunda na vida de uma stripper que trabalha em um clube no Brooklyn, Nova York. Nesse mesmo local, ela acaba encontrando um de seus clientes mais promissores: Ivan Zahkarov, um jovem mimado e filho de um rico oligarca russo. Desde o início, a personalidade de Ivan já demonstra como ele enxerga o mundo ao seu redor. Sua vida se baseia em festas com amigos, drogas, curtição e nenhuma responsabilidade.
Anora é a mulher escolhida por seu chefe para impressionar o jovem Ivan. O fato de Anora saber falar russo, pois sua avó também era russa, causa uma conexão imediata com o jovem. Dessa forma, Baker mais uma vez aborda uma descendente de imigrantes em seu filme.
Conforme Anora começa a sair com Ivan e frequentar sua mansão, ela percebe que ele está apaixonado por ela, e, de certa forma, isso se torna recíproco para a jovem. Por terem idades parecidas, a linguagem do universo dos dois, mesmo com um abismo financeiro entre eles, é semelhante. Redes sociais, festas repletas de gente jovem, músicas atuais – tudo isso acaba firmando um elo ainda mais forte entre os dois, deixando Anora confusa em relação aos seus sentimentos. Parte dessa confusão mistura-se ao fato de Ivan ser a personificação do que Anora gostaria de ser.
Para Anora, a vida de Ivan é um verdadeiro “sonho americano”, um conto de fadas, e ela sonha em um dia alcançar esse objetivo. Além disso, o que facilita a ligação entre os dois é que, até certo ponto do filme, mesmo sendo mimado e egoísta, Ivan sempre foi muito gentil e carinhoso com Anora.
Conforme o tempo entre os dois passa intensamente, Ivan, já apaixonado por Anora, sem pensar duas vezes, pede a jovem em casamento. Vale ressaltar que o casamento com Anora o beneficiaria por conta do seu green card (visto de residente permanente), já que Ivan gostaria de permanecer no país para não ter que voltar para a Rússia e seguir trabalhando na empresa do pai.
Visando uma vida nova, digna de uma cena de Pretty Woman, mas da geração Z, Anora aceita o pedido e se casa com Ivan em uma capela em Las Vegas. Porém, o início do sonho de Anora se torna um pesadelo quando a família de Ivan descobre o casamento. A partir desse momento, a vida da garota vira de cabeça para baixo, enquanto os capangas dos pais de Ivan fazem de tudo para anular o casamento.
Em Anora, Sean Baker explora a luta de classes, mostrando mais uma vez que quem manda é quem detém o poder financeiro. Além disso, Baker consegue criar uma atmosfera densa com diversos momentos de comicidade, uma verdadeira tragicomédia. O filme é praticamente dividido em três partes: Anora vestindo essa fantasia falida de “Cinderela” em um romance intenso e duvidoso, depois uma comédia bastante afiada e, por fim, um melodrama existencial.
Mesmo que no início do filme possamos ver pitadas do clássico Pretty Woman ou até mesmo de Coming to America, mostrando esse modernismo de geração que Anora possui, em um determinado momento do filme uma chave se vira para a protagonista, e nos envolvemos com um lado mais dramático e, ao mesmo tempo, sensível, assim como a personagem de Giulietta Masina em Nights of Cabiria, de Fellini, obra na qual Baker diz abertamente ter se inspirado.
Com um elenco bastante talentoso, dois deles se destacam ainda mais nessa trama: obviamente, Mikey Madison (Scream 5 e Once Upon a Time in Hollywood), a grande protagonista do filme, e o até então desconhecido ator russo Yura Borisov.
Essa dupla protagoniza a cena mais poderosa do filme, onde, em poucos minutos, conseguimos identificar tudo o que Sean Baker gostaria de transmitir em seu roteiro.
O personagem Ygor, um segurança da família russa, interpretado brilhantemente por Yura Borisov, passa a imagem de um homem bruto e de poucas palavras, a princípio. O ponto de virada de seu personagem é quando percebemos que ele é o único dali que consegue entender a sensação de frustração e angústia de Anora. Nas primeiras aparições do segurança, ele é ordenado a segurar Anora para que ela não saia de casa. Isso faz com que a jovem crie logo de cara uma antipatia por ele. Mesmo tentando diminuí-lo diversas vezes no filme, xingando-o e esnobando-o, Ygor nunca deixou de estar do lado de Anora nessa história. Ele acaba sendo o grande coração do filme.
Na última cena dentro do carro, Anora reconhece e finalmente consegue, de certa forma, se identificar com Ygor quando, ao ser confrontada por ele sobre a origem de seu carro, o mesmo homem afirma que é da sua avó. Anora não está acostumada com homens que são genuinamente respeitosos com mulheres, e sim com homens que traem suas famílias, como seus clientes. Então, ao subir em seu colo tentando mostrar um certo controle da situação, Anora é confrontada com o olhar de Ygor, que está mirando diretamente no fundo de seus olhos.
Sean Baker disse em uma entrevista que Anora sobe no colo de Ygor porque, de certa forma, ela quer recuperar o poder que perdeu durante essa jornada com Ivan e sua família. E é exatamente por isso que ela tenta negar o beijo e a troca de olhares, porque dessa vez ela quer permanecer no controle.
Então, ao tentar beijar Anora, Ygor recebe alguns tapas e socos desferidos pela jovem. Até que, em um movimento sutil, Ygor aproxima a cabeça de Anora de seu peito, e, em questão de segundos, ela desaba em um choro profundo.
O diretor e roteirista do filme deposita em Anora um debate sobre quem são os verdadeiros detentores do poder e quem está no controle da situação. Baker constrói um enredo aberto a interpretações, o que acaba deixando o filme ainda mais potente.
Em Anora, Baker destigmatiza o preconceito e a criminalização de trabalhadores do sexo, afirmando que, sem suas histórias e vozes, seus filmes não existiriam. Madison acrescenta também que sua preparação intensa, com ajuda de mulheres que trabalham nessa área, acabou deixando a personagem Anora o mais próximo possível da realidade na qual essas mulheres se encontram.
Anora coleciona prêmios antes deste Oscar de 2025 e, após ter ganho o prêmio de Melhor Filme no PGA Awards (prêmio do sindicato de produtores), DGA (prêmio do sindicato de diretores) e Critics Choice Awards, Anora se torna o filme a ser batido nesta temporada. Isso vale um destaque porque, nos últimos anos, na maioria das vezes, quem ganhou esses prêmios também levou o Oscar para casa.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.