Se essa escola fosse minha (…)
Disputas e Tensionamentos nas políticas educacionais de Gênero e Sexualidades
Por Dayanna Louise*
Os dados alarmantes sobre assassinatos de pessoas trans e travestis no Brasil não cabem nas aulas nem se torna um problema matemático. Não cabem também o alto índice de prostituição compulsória destes corpos, nem o avanço no percentual de candidaturas transvestigênere no processo eleitoral brasileiro.
Se as mortes causadas por uso de anabolizantes é pauta de projetos escolares, os riscos de hormonização sem prescrição médica e a utilização de silicone industrial enquanto efeitos colaterais de um sistema de saúde precário no atendimento a corpos dissidentes não desperta a atenção da docência em biologia. Pelo contrário, a norma é reiterada nas aulas de “educação sexual” ao generificar a camisinha como masculina ou feminina, ou seja, é sobre, para e pelo corpo cisgênero que o conhecimento científico tem sido produzido e reconhecido como válido. Nas práticas de educação em saúde, não há espaço para a atenção, o cuidado e a proteção de corpos dissidentes.
Nas páginas de história, o herói é sempre o mesmo: homem, branco, supostamente heterossexual, letrado, membro da elite e cisgênero. Enquanto nos livros didáticos as autoridades europeias têm seus nomes e títulos escritos por completo, quem escapa deste padrão sequer tem o direito a memória garantido no ambiente que, como prescreve a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional, deveria ser espaço de promoção da cidadania.
Quem escreve as narrativas literárias validadas no currículo? A quem pertence a autoria das fórmulas, experimentos, leis e teoremas que circulam nas salas de aula? Nas práticas esportivas, quem é o dono da bola de futebol e a quem é cobrada uma caligrafia “bonita” junto a um caderno organizado e com os assuntos em dia?
Tantas perguntas para uma constatação: quem não obedece ao padrão normativo é visto como corpo que não importa e por não ter existência legítima torna-se passível a todo tipo de violação. Ofensas verbais, agressões físicas, desrespeito ao nome social e negação do uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero. As experiências escolares vivenciadas por transvestigêneres sinalizam os desafios de garantir o acesso e permanência desta população no espaço escolar.
Considerando o descaso governamental em levantar dados oficiais relativos às experiências escolares vivenciadas pela população trans e travestis, movimentos sociais e entidades ligadas aos direitos humanos têm produzido pesquisas que alertam sobre a gravidade da situação. Segundo a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (2017), 82% de estudantes trans e travestis não chega a concluir o Ensino Médio por reconhecer o espaço escolar enquanto ambiente hostil. Neste caso, a terminologia “evasão” tão amplamente utilizada nos monitoramentos das políticas educacionais se mostra inadequada: trata-se de expulsão que retroalimenta a vulnerabilidade social.
Pedro Lima tinha 19 anos quando frequentava o último ano do ensino médio numa escola pública de Minas Gerais. Ao se reconhecer enquanto homem trans, as violências de gênero por ter um “comportamento diferente” se intensificaram, tanto por parte dos colegas de turma quanto pelos profissionais de educação: “Até a professora que era mais progressista, que se dizia de esquerda e tal, não respeitava meu nome social”. Sem perspectiva de acolhimento, tornou-se mais um expulso do espaço escolar em decorrência da transfobia institucional.
Tratar com naturalidade a interrupção da trajetória escolar de estudantes trans e travestis representa o descompromisso institucional na garantia de um espaço que seja acolhedor, promova o respeito às diferenças e crie estratégias de enfrentamento às desigualdades.
Na última década, a ascensão do neoconservadorismo representa um desafio face a garantia e ampliação desses direitos. Ao associar determinados significados ao termo “gênero”, a exemplo de defesa da pedofilia, destruição da família, e incentivo à sexualidade precoce, movimentos reacionários não apenas promoveram a fragilização das políticas educacionais de gênero e educação como utilizaram dessa suposta “ameaça a família brasileira” como moeda eleitoral, contribuindo para a ascensão política e elegibilidade de figuras comprometidas com o conservadorismo.
Apesar da “dança das cadeiras” que tem marcado o Ministério da Educação no atual governo, a retórica contra uma suposta ideologia de gênero tem sido acionada por todos que chegaram a assumir a pasta. Ricardo Veléz Rodríguez, primeiro a ocupar o cargo e profundo admirador da ditadura civil-militar e do Escola Sem Partido, teceu críticas públicas a inclusão do debate de gênero nas escolas ao afirmar que “quem define gênero é a natureza”.
Após sua exoneração, decorrente de disputas internas dentro do próprio MEC, a pasta passa a ser comandada pelo economista Abraham Weintraub. Fiel seguidor de Olavo de Carvalho, ao anunciar o programa “Conta pra Mim” o então ministro declarou: “Sai o kit gay, entra a leitura em família”. Sua participação em manifestações favoráveis ao fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal resultou numa pressão popular e na renúncia ao cargo, inaugurando um ciclo de experiências ainda que sem qualquer nomeação no diário oficial.
Coube ao pastor presbiteriano Milton Ribeiro, indicado pelo próprio Bolsonaro ao cargo de membro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, assumir o Ministério da Educação. Além de escândalos e suspeitas de corrupção, sua gestão a frente do MEC foi marcada por declarações relacionando homossexualidade a família desajustadas. Em relação a presença de docentes trans e travestis na educação básica, chegou ao declarar que: “Não tem esse negócio de ensinar ‘ah, você nasceu homem e pode ser mulher’. Respeito todas as orientações. Uma coisa é respeitar, agora incentivar é um outro passo. Nós não vamos permitir crianças de 6 a 10 anos, que um professor chegue na sala e diga que se ele nasceu homem e, se quiser ser mulher, pode ser mulher”.
Acusado de adotar um tratamento preferencial a pedidos de liberação de recursos públicos vinculados ao Ministério da Educação, Ribeiro renuncia ao cargo através de uma carta de demissão endereçada ao presidente da República. Victor Godoy, secretário-executivo do MEC, assume o cargo evitando declarações relacionadas às pautas de gênero na educação. Em contrapartida, sua ligação com a antiga gestão e uma suposta aproximação com grupos religiosos sinalizam a continuidade de um projeto educacional conservador e neotecnicista.
Se a presença de setores reacionários no comando das políticas educacionais têm desempenhado bravamente o papel de naturalizar determinadas formas de ser e existir em detrimento de outras, ainda assim, não tem conseguido barrar totalmente as discussões relativas a gênero e sexualidades que chegam ao espaço escolar de maneira informal ou sistematizada.
Apesar da preponderância de experiências negativas entre estudantes trans e travestis na educação básica, a instituição escolar também se apresenta enquanto espaço de possibilidades. Foi no ambiente escolar que Pedro Lima desenvolveu habilidades artísticas a partir do teatro, onde relações afetivas com diversos sujeitos se tornaram possíveis e o reconhecimento identitário, ainda que condicional e precário, se fez presente.
A escola pode também ser espaço a partir do qual se constroem outros padrões de aprendizagem, convivência e produção de conhecimento, sobretudo se forem ali subvertidos ou abalados valores, crenças, representações. O constante aumento no número de estudantes utilizando nome social na educação básica brasileira, mobilizações estudantis em defesa dos direitos LGBTs, construção de redes de apoio em diálogo com movimentos sociais, difusão da temática através das mídias, aumento de produções acadêmicas relativas ao tema, crescimento de uma docência trans e travestis no ensino superior, campanhas educativas promovidas por órgãos públicos e a atuação de importantes órgãos jurídicos são importantes movimentos na disputa por um espaço escolar que garanta possibilidades de existências em território tão inóspito e aparentemente inegociáveis.
Neste embate, o que está em jogo é uma proposta de educação representativa e alternativa aos grilhões da cisnormatividade, ofertando subsídios para incidência política na construção de agendas emancipatórias que garantam mais corpos trans e travestis nas salas de aula do que no cárcere. Um espaço que promova a diferença e enfrente às desigualdades com coragem e compromisso social, fomentando um projeto de cidadania onde corpos dissidentes possam conjugar o verbo sonhar. Questionado sobre o futuro, Pedro Lima deseja terminar seus estudos, ingressar na universidade e se formar em Ciências Sociais. Quem sabe, voltar ao espaço escolar coordenando projetos sociais de inclusão. Já dizia Ventura Profana: “arrebatamos das mãos do senhor as chaves de nossas cadeias. Dancemos engenhosas e aprendamos a voar”.
Dayanna Louise Leandro dos Santos é doutoranda em educação/ UFS. Mestra em educação e bacharela em serviço social/UFPE. Licenciada em História e Especialista em História do Nordeste/ UPE.