Sapatão sim! Cozinheira também! Da dupla invisibilidade de ser lésbica e cozinheira
A invisibilidade das mulheres lésbicas na gastronomia
Recentemente ganhou repercussão o caso de violência de cunho lesbofóbico e homofóbico ocorrido no restaurante Casa do Saulo no Museu do Amanhã por parte de uma cliente contra a chef de cozinha Isabela Duarte, o auxiliar de cozinha, Henrique Lixa, e outras pessoas no local. O uso das palavras ‘sapatão’ e ‘viado’ pela agressora como modo de buscar desqualificar os/as trabalhadores/as evidencia como marcadores sociais como a sexualidade, neste caso, mas também gênero, raça e classe, são fatores primordiais nas experiências de violência vividas.
O caso gerou debates sobre o apagamento e a invisibilidade lésbica no registro policial do caso e nas abordagens da mídia, que por vezes faltam em nomear e registrar as violências e sujeitos de acordo com suas identidades. O que foi pouco debatido foi outro aspecto da invisibilidade de trabalhadoras como Isabela, as que exercem o trabalho culinário remunerado ou não remunerado cotidianamente.
Se a cozinha doméstica, historicamente, foi construída como um espaço físico separado das áreas sociais da casa e reservado às pessoas consideradas como “inferiores estruturais”, como as mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+, também nos restaurantes, as cozinhas são espaços que não ficam ao alcance, na maioria das vezes, da visão do público, onde trabalhadores/as, muitas vezes sob condições precárias de trabalho ficam invisibilizados/as.
Para muito além do glamour e da espetacularização ressaltados nos discursos públicos sobre a gastronomia, o trabalho no setor de restaurantes oculta uma série de problemas como a baixa remuneração, longas jornadas de trabalho, não pagamento de horas extras, atividades que exigem muito esforço físico, em geral exercidas em pé, alta rotatividade de funcionários, insalubridade e periculosidade, entre outras características que estão vinculadas a um mercado de trabalho precário.
Se as condições gerais de trabalho no setor são duras, observamos que elas podem ser agravadas quando aplicamos lentes de gênero, raça ou sexualidade. Assim, trabalhadoras como Isabela experienciam uma dupla invisibilidade, a de exercer o trabalho culinário e a de ser lésbica.
Na minha pesquisa de doutorado concluída em julho deste ano, centrei minha investigação na experiência de mulheres trabalhadoras de cozinhas de restaurante para buscar compreender como estas encontram brechas e buscam fragmentar as estruturas de desigualdade de gênero no setor. Os discursos circulantes sobre a gastronomia são originados majoritariamente a partir da visão e experiência de sujeitos masculinos e brancos. A decisão por centralizar o debate no ponto de vista das mulheres foi uma escolha política com pretensão não de romper, mas ao menos de produzir uma fissura nesse discurso, demonstrando a existência de outras narrativas sobre o setor e de outras experiências vividas.
Apesar de não ter sido o ponto central da pesquisa, a orientação sexual de algumas das entrevistadas que se identificaram como lésbicas ou bissexuais emergiu como um tema de interesse para a compreensão de suas experiências laborais.
A escolha da maioria das entrevistadas lésbicas era a de não revelar sua orientação sexual no trabalho. A alegação para tal decisão era a de haverem experimentado experiências anteriores de discriminação e por observar comentários pejorativos de cunho sexual no trabalho. A cozinha, apesar de ser um espaço que emprega muitas pessoas LGBTQIA+, foi construída como um ambiente masculinizado e hostil às mulheres e as dissidências do sistema sexo-gênero em que piadas constantes de conotação sexual cisheteronormativas são tidas por muitos como parte “natural” do ambiente de trabalho.
Um dos fatores decisivos para falar abertamente sobre o fato de serem lésbicas no trabalho foi o de terem chefes LGBTQIA+, relatado como sendo um fator de identificação e de um sentimento de estarem mais protegidas. Duas das entrevistadas, inclusive dizem buscar trabalhar em locais com maioria de trabalhadores LGBTQIA+ por serem espaços onde se sentem mais seguras e que percebem sofrer menos violências.
A reflexão sobre a escolha por não revelar a orientação sexual no trabalho apresenta um duplo aspecto. Ao mesmo tempo em que pode ser um fator de proteção, por reduzir a exposição direta ao risco de violências imediatas, pode ser um fator de enfraquecimento coletivo para a comunidade LGBTQIA+.
Não se argumenta aqui que assumir sua sexualidade no trabalho seja mandatório, dado que há situações de risco de violências iminentes e muitas vezes o preço a se pagar para enfrentar as estruturas de opressão pode ser muito alto para ser assumido individualmente. No entanto, dentro das possibilidades de cada pessoa, ao se assumir lésbica, disputamos também os discursos coletivos e a construção de outros imaginários sobre a comunidade LGBTQIA+.
Observou-se na pesquisa que algumas das principais estratégias de resistência das trabalhadoras foram no sentido de adequar-se e cumprir os padrões esperados de sucesso no setor, bem como no sentido de adotar distintas formas de comportamento para endurecer o trato e tornar-se mais sérias, manter distância ou impor limites. Compreendendo o caráter genderificado do trabalho culinário, elas foram capazes de manipular seus comportamentos e modos de agir no trabalho de modo a desafiar os estereótipos e papéis de gênero esperados para elas para buscar tensionar as relações de opressão/resistência.
Os relatos das trabalhadoras demonstraram que os restaurantes não estão preparados para lidar com as estruturas de desigualdade e discriminação no trabalho. Não há protocolos institucionais ou preparação de gestores/as e líderes para prevenir ou remediar situações de machismo, racismo ou LGBTQIA+fobia, por exemplo. Não tendo como contar com o apoio da chefia e muitas vezes nem com o da equipe, essas trabalhadoras parecem estar desemparadas na maior parte do tempo, contando apenas com sua própria iniciativa e energia para transpor obstáculos no trabalho ou, no máximo, com o apoio das pessoas com as quais conseguiram construir alianças.
Se vemos espaços de comensalidade como arena possível de resistências e revoltas que ganham projeção, como ocorrido na invasão do Farros Bar, um levante de lésbicas contra a violência policial e a censura que completa 40 anos esse ano, podemos considerar que muitas outras resistências ocorrem silenciosamente nesses espaços no cotidiano, pela luta imparável de trabalhadoras por melhor condições de trabalho e de vida.
E você? Sabe quem está preparando a comida que você come?
“Quem é que prepara a comida que você come, falando nisso? Que estranhas feras são essas que se escondem por trás das portas da cozinha? Você vê o chef […]. Mas quem está de fato fazendo a sua comida?” (Anthony Bourdain, Cozinha Confidencial, 2016, p. 73)
Daniela Alves Minuzzo: Pesquisadora da comida, do comer e do cozinhar a partir fundamentalmente das relações sociais que conformam a nossa cultura alimentar, como as de gênero, raça e classe. Atua como professora no curso de Gastronomia da UFRJ e é sapatão.