Por Hyader Epaminondas

Round 6 foi criada em 2019 pelo sul-coreano Hwang Dong-hyuk, inspirado pelas desigualdades sociais e pela sensação de desesperança que marcavam sua sociedade e que, sem querer, acabaram se revelando espelhos perturbadoramente fiéis do mundo inteiro. Com uma narrativa que mistura crítica social e suspense visceral, a produção rapidamente se tornou um fenômeno global, trazendo à tona discussões profundas sobre humanidade, poder e sobrevivência.

A série não apenas observa o ser humano em crise: ela o disseca. Retira dele cada camada de pretensão civilizatória e o posiciona num ambiente onde os limites morais são testados, onde a ética é suspensa e o instinto de sobrevivência se torna a única lei. A terceira temporada, que conclui a narrativa de forma surpreendentemente redonda e brutal, não suaviza nada. Ao contrário, aprofunda a ferida até o osso. E, nesse mergulho profundo na perversidade institucionalizada, revela a verdade mais crua: o problema não está nos jogadores, mas no mundo que os empurrou para o tabuleiro.

A premissa continua simples: pessoas endividadas, destruídas pela estrutura social que deveria protegê-las, são convidadas a participar de jogos infantis em troca de um prêmio bilionário. Mas Round 6 nunca foi apenas sobre isso. A farsa por trás do desejo de riqueza é que, por mais que o dinheiro prometa libertação, ele não cura o vazio. Não remenda a dignidade perdida, não reconstrói os laços sociais rompidos e não devolve a humanidade. O consumo não é o paraíso. É uma armadilha.

Diferente de tantas distopias que precisam criar mundos futuristas ou regimes autoritários para fazer sua crítica, Round 6 apenas aponta para o agora. Seu cenário é o nosso: um mundo exausto, desigual, onde as escolhas já vêm marcadas, onde os direitos básicos são tratados como favores e a sobrevivência virou moeda de troca. O mais angustiante é que nada ali parece distante. Tudo parece plausível demais.

A terceira temporada começa a partir do final em aberto da segunda, para fechar esse ciclo com precisão cirúrgica. Não há reviravoltas fantasiosas, apenas a conclusão inevitável de uma engrenagem que já nascia corrompida. A trajetória do vencedor da primeira temporada, Gi-hun, de jogador relutante a homem devastado pela consciência, é a espinha dorsal dessa dissertação visual encapsulada na atuação de Lee Jung-jae. Ele atravessa o inferno não para vencer, mas para entender. E, quando finalmente compreende, já não há volta. O jogo destrói tudo, inclusive o que há de melhor em cada um.

A ilusão do poder da escolha

Durante os episódios, o que mais assusta não é o sadismo dos jogos, mas o reflexo que eles oferecem. Os jogadores cometem atos horríveis não por prazer, mas por desespero. Ao trocar nomes próprios por números frios, destituídos de identidade, como engrenagens numa máquina invisível, a série escancara seu maior terror psicológico: a constatação de que, diante do colapso absoluto, qualquer um de nós pode se tornar algoz. Não por crueldade, mas por instinto. Ali, não há vilões nem heróis. Só corpos lançados ao abismo, tentando sobreviver.

A série transforma jogos infantis em arenas de morte, mas seu maior trunfo está no uso simbólico dessa lógica: o mundo adulto, guiado pela ganância e pela competição, continua jogando, só que agora vale vidas. A nova mecânica da votação, por exemplo, não é apenas uma regra de roteiro. É uma crítica feroz à ilusão do livre-arbítrio. Quando os jogadores votam se querem continuar ou parar, eles o fazem despidos de qualquer liberdade real. Estão famintos, feridos, desesperados. Suas decisões não são escolhas, são reflexos de um sistema que já os havia encurralado muito antes da primeira rodada.

Esse conceito de “liberdade condicionada” se desdobra em diversas camadas ao longo da série e atinge seu ápice na representação grotesca, mas estranhamente familiar, dos chamados VIPs. Cobertos por máscaras de ouro maciço, cintilam não em nobreza, mas em arrogância envernizada. Anestesiados pelo próprio poder, eles não apenas assistem ao sofrimento: eles o consomem com tesão.

Há um gozo perverso na forma como observam a ruína dos outros, como se cada morte fosse um lembrete de sua superioridade. A dor, para eles, é espetáculo privado; a miséria, um fetiche exclusivo. São a caricatura explícita de algo real: bilionários, CEOs, coaches e influenciadores que, fora da tela, lucram com a exploração alheia enquanto vendem discursos vazios sobre superação e meritocracia.

A série os cobre com máscaras douradas não por acaso. É a fantasia que esconde a banalidade do mal com brilho. A verdadeira perversidade não ruge. Ela sussurra conselhos motivacionais, veste terno bem cortado e posa sorridente para fotos de gala. Para esses vultos dourados, a tragédia coletiva é mais do que entretenimento. É reafirmação de status. Eles não querem apenas vencer o jogo. Querem provar que nunca precisaram jogar.

O paradoxo da vida: um teste final para a humanidade

Vivemos em uma sociedade que nos empurra constantemente para os extremos. Assim como os jogadores estão presos a uma espécie de roleta-russa disfarçada de competição, nós também, no mundo real, enfrentamos um jogo perverso em que direitos básicos se esvaem e a barbárie se infiltra cada vez mais no cotidiano. Guerras e massacres se tornam mais frequentes, muitas vezes motivados por razões banais. O abismo entre as classes sociais se alarga, e a ideia de um futuro minimamente digno soa cada vez mais como uma utopia distante.

E, se há um momento que escancara a podridão coletiva, ele vem na discussão sobre a permanência de um bebê no jogo. A facilidade com que alguns jogadores — todos homens — decidem pela morte da criança recém-nascida é devastadora. A alegoria é direta: são os mesmos que, na vida real, vociferam discursos “pró-vida”, mas recusam qualquer responsabilidade pelo cuidado e pela sobrevivência. O gesto é simbólico. Suprimir o indefeso não por urgência, mas como reflexo de uma lógica onde a vida só tem valor quando útil. Não é apenas sobre vencer, é sobre evitar qualquer sacrifício pessoal. Um retrato cruel do pensamento patriarcal, que se esconde atrás de moralismos para perpetuar controle.

Toda a segunda e terceira temporada caminham com esse tom trágico e reflexivo. Cada aliança que se desfaz, cada gesto de compaixão que é punido, cada sacrifício que cai no vazio, tudo se constrói como um grande poema. Não há catarse. Há compreensão. O jogo não é apenas o espaço onde a violência acontece: é a estrutura que sustenta o mundo como ele é. Uma roleta-russa onde o último a cair não vence. Apenas continua vivo.

A perspectiva otimista da produção atua através das ações do trio protagonista Hyun-ju (Park Sung-hoon), Geum-ja (Kang Ae-shim) e Gi-hun, como um comentário metalinguístico que atravessa a tela e alcança diretamente o público, provocando uma reflexão inevitável: quantos Gi-hun já cruzaram nosso caminho? E quantos mantiveram acesa a chama da esperança, mesmo diante do caos da sociedade? Quantas vezes nós agimos como Gi-hun?

Todos nós temos o potencial de ser um Gi-hun, alguém que escolhe estender a mão. Mas quantos de nós estamos realmente dispostos a abrir mão de nossos privilégios em nome do outro? Ajudar o próximo é como abrir uma porta sem saber se haverá alguém do outro lado para fazer o mesmo por nós. E, ainda assim, seguimos abrindo portas, porque a solidariedade, quando verdadeira, é um gesto que se multiplica. É um ciclo. Um movimento que começa em um só gesto e pode, aos poucos, mudar tudo.

E, assim, a série não abdica completamente da esperança. Há algo no olhar do último sobrevivente e no ato final de Gi-hun que resiste. Não é um final otimista, mas é um final honesto. Talvez seja isso que Round 6 e Hwang Dong-hyuk oferecem de mais valioso: a coragem de apontar para o caos e dizer com todas as letras que não estamos apenas assistindo. Nós estamos dentro do jogo.

E, se estamos dentro, ainda é possível jogar de outro modo. Ainda é possível escolher não ser mais uma engrenagem.