
Riri Williams estreia solo em ‘Coração de Ferro’ e confronta desigualdade racial na Marvel
Cocriada nos quadrinhos pelo brasileiro Mike Deodato Jr., a jovem inventora protagoniza uma trama potente sobre racismo estrutural, invisibilização e o desafio de existir com brilho em um sistema que não foi feito para acolher sua genialidade
Por Hyader Epaminondas
No universo saturado de super-heróis da Marvel, Coração de Ferro chega ao Disney+ com uma proposta clara: mostrar que talento não basta quando o sistema foi desenhado para te excluir. Sob a produção de Ryan Coogler e a visão criativa de Chinaka Hodge, a série coloca Riri Williams no centro de uma narrativa que expõe as camadas de desigualdade atravessadas por raça, talento e oportunidades.
Criada por Brian Michael Bendis e pelo artista brasileiro Mike Deodato Jr. em Invincible Iron Man (Vol. 3) #7, de 2016, Riri surgiu nos quadrinhos como uma sucessora de Tony Stark, mas com o tempo acabou ganhando identidade própria como Coração de Ferro. Sua estreia nas telonas aconteceu em Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022), onde, sob a tutela de Shuri, já demonstrava carisma, inteligência e uma força criativa que chamavam atenção, lembrando bastante a estética analógica e cheia de detalhes práticos dos primeiros filmes do Vingador Dourado.
Agora, em sua série solo ambientada em Chicago, a personagem finalmente ganha espaço para desenvolver sua trajetória com maior profundidade, num cenário pulsante de tons quentes e energia urbana. Desde o início, o roteiro deixa claro: Riri é uma jovem brilhante, extraordinariamente mais inteligente que todos ao seu redor. Ainda assim, enfrenta as mesmas barreiras que milhões de pessoas negras vivem no mundo contemporâneo.
Sem capital para desenvolver seus projetos, sem respaldo de grandes instituições e sem o tom de pele que o sistema associa à genialidade. A série não suaviza essa realidade e transforma esse obstáculo em motor narrativo. Não se trata de militância vazia, mas de compromisso com a verdade: no mundo real, pessoas negras precisam provar o triplo, driblar estigmas e carregar o fardo da desconfiança para, no máximo, receber a metade do reconhecimento.
Embora personagens como Stark, Banner e Pym sejam celebrados no MCU como gênios mesmo quando agem com irresponsabilidade ou cruzam limites éticos, a série traz à tona uma realidade ignorada por essas histórias: a genialidade, para pessoas negras, não é apenas talento, é uma luta constante contra um sistema que nega sua existência. Essa tensão não é apenas um detalhe narrativo, mas uma crítica incisiva à forma como a sociedade e até mesmo a cultura pop definem e celebram a genialidade, revelando o racismo estrutural que permeia tanto o mundo real quanto os roteiros fictícios.
Aço Novo, Alma de Ferro
Essa abordagem torna o início da história agridoce e até melancólico em sua busca desesperada por investimento e reconhecimento. Diferente de tantos heróis cujas jornadas são acolhidas com suporte institucional, mentores generosos ou recursos infinitos, Riri precisa enfrentar tudo sozinha e sem qualquer margem para erro. Não existem rodinhas de treino para ela. O que existe é um mundo que exige constantemente que ela prove seu valor, enquanto segue negando seu reconhecimento de forma repetitiva.
Corpo e alma, mente e máquina se entrelaçam na relação de Riri com N.a.t.á.l.i.a, uma inteligência artificial construída a partir de suas ondas neurais e interpretada com precisão por Lyric Ross, que equilibra humor pontual e delicadeza emocional. Mais que uma ferramenta de apoio, a IA funciona como um espelho simbólico da protagonista, refletindo suas ausências, seus afetos e tudo o que lhe foi tirado. É uma extensão do inconsciente, uma espécie de diário psíquico que mergulha no luto e no trauma geracional da população negra.
Esse recurso narrativo aproxima a ficção científica do campo simbólico e psicanalítico, ao tratar o luto não como um simples ponto de partida da heroína, mas como parte integral de sua identidade. Da mesma forma, ao apresentar Riri como fã de Star Trek, a série vai além de um simples traço de personalidade e cria uma ponte para discutir temas centrais da ficção científica clássica, como ética, identidade e responsabilidade tecnológica, ampliando o diálogo entre a narrativa pessoal e questões universais.
Dominique Thorne entrega uma Riri sensível, afiada e determinada, equilibrando vulnerabilidade e orgulho em cada cena. Sua atuação recusa o clichê do “gênio incompreendido” e constrói uma personagem profundamente real, marcada não apenas por sua dor, mas pela sua resiliência de ferro em busca de aprimoramento e descobertas científicas.
Sua relação com a mãe, Ronnie Williams, vivida por Anji White, é um exercício constante de escuta e acolhimento. Ronnie tenta ajudar a filha a lidar com o trauma que a levou a criar sua primeira armadura, funcionando como âncora emocional e revelando que, por trás da genialidade, há uma jovem aprendendo a processar emoções.
Do outro lado da história, Anthony Ramos dá vida a Parker Robbins, o Capuz, um personagem bem esquecível dos quadrinhos, mas com uma jornada marcada por um dilema faustiano evidente: Robbins faz pactos, manipula alianças e negocia com forças obscuras sempre em benefício próprio. Imerso em uma aura de mistério e impulsionado pelo carisma magnético de Ramos, o personagem se desenvolve como uma ameaça silenciosa, mantendo todo o mistério da trama em volta de si.
A tensão se intensifica em contraste com a protagonista, que vive o peso do heroísmo em sua forma mais crua: vulnerável, ansiosa e marcada por ataques de pânico que a paralisam diante do caos. Enquanto Robbins nunca hesita e sempre extrai vantagem dos acordos que faz, Riri tropeça em sua própria humanidade, revelando que, numa sociedade desequilibrada, até mesmo a moralidade é um luxo para poucos.
A grande surpresa da série é a introdução da magia em seu núcleo narrativo, e o que a torna ainda mais potente é sua abordagem explicitamente afrocentrada. Essa dimensão mística se manifesta na subtrama dedicada a Zelma, adaptada pela primeira vez fora dos quadrinhos por Regan Aliyah, cuja representação traz uma estética jovem, urbana e descentralizada, afastando-se dos clichês eurocêntricos e abrindo espaço para novas linguagens visuais e simbólicas dentro do gênero.
O metal que forja uma nova era de ferro
O retrato de Riri a aproxima de ícones clássicos da Marvel, compartilhando da vulnerabilidade e da precariedade do Peter Parker dos quadrinhos que se virava nos 30 para manter suas atividades heroicas, e ao mesmo tempo carrega a irreverência e o brilhantismo de Tony Stark. Mas, ao contrário desses dois, ela carrega o peso simbólico de ser mulher, jovem e negra.
Ao colocar Riri em conflito direto com bilionários e instituições numa narrativa eat the rich, a produção avança numa temática, apresentando a contradição de combater injustiças sem questionar o sistema que as gera. Ao longo da temporada, a série mantém uma trajetória consistente, focada em uma trama pé no chão, evitando grandiosidades ou soluções simplistas e escapistas.
Porém, tropeça no último episódio, ao apresentar uma resolução apressada para o conflito principal e apostar num desfecho aberto que dificilmente será retomado, deixando um gostinho de “quero mais” ao introduzir um personagem especial, cujas ramificações prometem desdobramentos significativos para o futuro da protagonista.
Com sua temporada completa já disponível no Disney+, Coração de Ferro deixa no ar uma pergunta incômoda: por que o mundo continua falhando em reconhecer e proteger mentes brilhantes como a de Riri Williams? Ou, sendo ainda mais direto, quantas pessoas negras talentosas o sistema já apagou antes mesmo de terem a chance de brilhar?