Por Daniele Agapito e Zahyra Garrido

Como se já soubesse da lua que surgiria às margens do Rio Negro na noite de ontem, Julieta advertiria em cena:

“Não jures pela lua, a inconstante lua,
Que muda de figura a cada mês…”

Mas ela veio, redonda e cheia.

Foi ali, no coração da Amazônia, que uma comunidade ribeirinha se transformou em palco ao ar livre para a estreia de Romeu e Julieta, espetáculo da Trupe Ave Lola. A apresentação integra a programação da Virada Amazônica, evento de arte e sustentabilidade que percorre as comunidades do Saracá, Inglês e Tumbira, todas situadas na RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) do Rio Negro.

A companhia, que costuma levar suas peças pelo mundo, escolheu estrear ali. Em cena, William Shakespeare, o autor que, desde o século XVI, arrebata e arrebenta os mais românticos.

Foto: William Martins

A diretora e uma das idealizadoras da Virada Amazônica, Ana Rosa Tezza, passou a infância no Acre e hoje comanda a Trupe com sede em Curitiba, é apaixonada pela carpintaria dramatúrgica de Shakespeare. Nessa adaptação, o ator Evandro Santiago faz tudo e todos: Romeu, Julieta, Senhora Capuleto, Teobaldo, Mercúcio, Frei Lourenço, a ama, Benvolio, até o cavalo do príncipe.

Assisti ao espetáculo com Zahyra, Zá, Zazá ou Loirinha, como é apelidada. Criada na Comunidade do Tumbira e ex-aluna da escola comunitária, ela tem hoje 18 anos. Já foi uma criança prodígio na região, com pensamento rápido, paixão por conhecimento e um poderoso dom da oratória. Integrante da família Garrido, uma das fundadoras do Tumbira, foi ela quem conduziu, junto comigo, as conversas com os comunitários para esta matéria especial da Casa NINJA Amazônia.

Durante a apresentação, muitos descobrem pela primeira vez que Romeu e Julieta acabam mortos no final, crianças gargalham quando o ator enfim beija um manequim numa simulação de namoro. Os atrasados improvisam uma escada com carteira escolar para pular na Casa Digital (estrutura suspensa onde o espetáculo foi erguido), e um cachorro caramelo atravessa a cena para se acomodar nas primeiras fileiras. Ao fim de tudo, eu e Zazá corremos atrás das pessoas da comunidade para saber o que acharam de Romeu e Julieta, e foi Zahyra quem puxou sua antiga diretora pelo braço: Antônia Madalena, a Toinha.

Toinha, uma das mais empolgadas com as atividades da primeira Virada Amazônica no circuito das comunidades ribeirinhas, é professora e gestora da Escola Estadual do Tumbira. Nasceu em Iranduba, tem 65 anos, e avisa logo: “nosso grupo ali é só elogios pro espetáculo!”.

Toinha: Ah, o espetáculo é excelente, excelente! Adorei, amei. Um ator de primeira qualidade, merece um Oscar. E eu posso perguntar?

Zahyra: Pode.

Toinha: Qual é o nome do ator?

Zahyra: Evandro Santiago.

Toinha: Parabéns, Evandro Santiago! Eu amei o espetáculo do começo ao fim!

Zahyra: E você tá feliz com essa iniciativa de trazer o espetáculo aqui pra comunidade?

Toinha: Tô sim. Porque, como eu falei em sala de aula pros alunos, quando convidei, é uma oportunidade que nem todo mundo tem. E que nós aqui do Tumbira deveríamos valorizar, porque um espetáculo desse é de primeira qualidade. Muita gente das cidades grandes não tem esse privilégio, de ter, como nós estamos tendo aqui. Agora que veio pra gente, eu agradeço muito. Amei essa estreia mundial do espetáculo! Vai começar com o pé direito, porque o Tumbira é um paraíso!

Dona Liliane, de 43 anos, mora na Comunidade do Inglês e trabalha num postinho de saúde como microscopista, avaliando lâminas de malária. A doença está controlada nessa região graças às políticas ambientais das RDS do Rio Negro. Não tem lixo, não tem água parada e os ribeirinhos evitam mergulhar nos horários de pico dos mosquitos, ou Carapanãs, como são conhecidos por aqui:

Zahyra: O que a senhora achou da peça?

Liliane: Eu já tinha ouvido muito falar em Romeu e Julieta, mas não conhecia. Então, assim, pra mim foi um aprendizado, um conhecimento da peça, da qual eu só tinha ouvido falar. E o ator é muito dedicado, né?

Zahyra: E a senhora acha que é importante essas peças virem pra cá?

Liliane: Acho que cultura tem que fazer parte de toda a sociedade. Nós, que moramos em comunidades ribeirinhas, praticamente não temos essa oportunidade. Então, vir um espetáculo pra gente aqui, ao vivo, de graça, com tanto aprendizado, com tanta cultura… com certeza é muito importante pra toda a nossa geração. Principalmente pras crianças, pra já irem aprendendo essa cultura.

Zahyra: Tem uma cena que a senhora ficou mais impressionada?

Liliane: Ah, eu acho que a cena da morte trágica deles é a que mais impacta a gente, né? Ver como aconteceu… Não sei bem explicar, mas Julieta imitando uma morte… foi trágico, o fim. Eu nem sabia que os dois morriam no final.

Rosinete, 50 anos, produz artesanatos com sementes de açaí na comunidade do Saracá. Faz bolsas, pulseiras e brincos que chamam atenção de quem passa para fazer turismo de base comunitária na região. Mas no dia 9 de julho, tirou uma pausa na produção para ver teatro:

Rosinete: Eu acho muito importante vir pro Tumbira e pra outras comunidades, porque isso é uma cultura que é difícil de ter aqui. E eu gostei demais! Olha, eu tava ansiosa, ansiosa, ansiosa! Ai, meu Deus do céu, será que eu não vou ver essa peça?E eu já sabia que eles morriam, mas eu não lembrava direito. E o ator? Eu tava com pena dele… porque eu acho que ele tava cansado, né? Porque tudo ele fez. Eu admirei demais, e quero parabenizar ele, porque foi um guerreiro!

Ludmila tem 13 anos, é uma estudante de sorriso tímido que vive na Comunidade Santa Helena do Inglês e, assim como outros ribeirinhos vindos do Inglês e do Saracá, pegou uma lancha disponibilizada pela Virada Amazônica para se deslocar até o Tumbira e assistir ao espetáculo.

Zahyra: Você pode falar um pouco o que você achou do espetáculo?

Ludmila: Eu achei muito legal na parte que ela (Julieta) morreu. É a minha primeira vez assistindo uma peça de teatro.

Zazá, minha parceira nessa matéria especial para a Casa NINJA Amazônia, disse que esse evento foi diferente de tudo que já viu. Também foi sua primeira vez diante da peça completa de Shakespeare, e ficou surpresa com a reação do público com o final trágico do casal, “só se falava nisso”. Ela faz cara de espanto quando lembra da habilidade do ator por conseguir se desdobrar em tantos personagens. E, diferente de muitos, já sabia que Romeu e Julieta não teriam um final feliz.

“Eles morrem de amor, pelo menos assim que penso”.