Por Renata Souza e Isabel Mansur*

A pandemia do COVID-19 já entrou para a história da humanidade como uma das mais graves crises do mundo. A frieza dos números crescentes de mortes aos milhares diariamente nos desafia a não naturalizar a barbárie política como justificativa de combate ao coronavírus. Trata-se de um momento que dispara incertezas, altera a vida de milhões de pessoas e põe em evidência as profundas desigualdades de gênero, raça e classe estruturantes do capitalismo.

Olhando do nosso particular ângulo, ou seja, de um país periférico e dependente, a necessidade de novas formas de relação não são apenas evidentes: são urgentes. Isto porque a pandemia traz como resultado imediato uma “fratura exposta” na forma como vivemos, produzimos, distribuímos riqueza e nos relacionamos. Divide-se, portanto, com uma linha histórica, duas alternativas antagônicas, a que vê a vida acima do lucro versus a que vê o lucro acima de tudo.

Ailton Krenak, um destacado ativista socioambiental e indígena do povo Krenak, chamou nossa atenção para a dimensão deste momento e seus desdobramentos: “Se essa tragédia serve para alguma coisa, é mostrar quem nós somos. É para nós refletirmos e prestarmos atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. Tomara que não”.

Para ele, a epidemia se apresenta como reação do planeta à destruição imposta por nosso modo de viver, impondo mudanças imediatas à sociedade. Alienada da natureza e “devorada” por grandes corporações que controlam os recursos financeiros do planeta, a humanidade se converteu em uma humanidade para poucos, um grupo seleto que exclui “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, que vivem agarrados à terra, aos seus lugares de origem, que são coletivos vinculados à sua memória ancestral e identidade. Esse grupo exclui também 70% das populações arrancadas do campo e das florestas, que estão nas favelas e periferias, alienadas do mínimo exercício do ser, sem referências que sustentam a sua identidade (…)”.

Recorremos à Krenak, pois recorrer aos mais velhos é aprender com as mais antigas formas de resistência. Nada mais expressivo do que as cosmovisões indígenas, as comunidades tribais africanas e todas as nossas tradições ancestrais, comunitárias e territorializadas, que persistem e resistem, demonstrando que a vida humana pode se sobrepor à política de morte. Passos que vêm de longe, mas que trilham outros caminhos coletivos de organização da vida ainda no presente.

Se o capital ao se desenvolver promove a barbárie, libera forças destrutivas, coloca massas humanas à sua disposição, este modelo não nos serve. Este mesmo capitalismo se ergueu sobre a colonização e a escravização, subtraindo vidas humanas, destituindo as produções ligadas à natureza e à subsistência, impondo um modelo de desenvolvimento e crescimento econômico que decide sobre quem pode morrer e os poucos que podem viver. Trata-se, portanto, de uma necropolítica econômica, já conceituada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe .

Este “mal-estar do desenvolvimento” se evidencia inclusive na pandemia, onde a produção e distribuição das mais diversas mercadorias é privada, para poucos países e pessoas. Uma outra relação social, alternativa (e popular) ao desenvolvimento, implica em uma outra cultura, outros valores e uma nova organização do trabalho e da distribuição de riquezas. É neste sentido que nos contrapomos ao mercado, baseando-nos sobre epistemologias e experiências comunitárias, coletivistas, ancestrais e não-mercantis, cuja organização fundamental só pode se dar de maneira territorializada, soberana e coletiva.

Se a pandemia nos traz algum horizonte, como já disse o Papa Francisco, é de que “ninguém sobrevive sozinho”. Que sejamos, hoje e amanhã, capazes de construir uma outra humanidade, uma humanidade em que a “vida estar acima do lucro” não seja uma intenção, mas, enfim, uma realidade inegociável.

*A coluna desta semana foi escrita em conjunto com Isabel Mansur, socióloga e doutora em Serviço Social.

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