A chegada do Carnaval acende um tema que atinge de maneira cortante a vida das mulheres: o assédio sexual. Um tema que para nós, feministas, é permanente. Carnavalizar é palavra de ordem: destronar o patriarcado, seus reis machistas e racistas é a luta da vez.

A festa traz consigo uma ideia de libertação, expressa desde a ocupação das ruas à exaltação aos corpos. A carnavalização, conceito de Bakhtin, marca a inversão e subversão dos papéis sociais. Mas os dias de folia não criam uma realidade paralela ao cotidiano de opressão, muito ao contrário. Os códigos estabelecidos e impostos pelo machismo se intensificam. Dançar, beber e expor o corpo é, para heteronormatividade, um sinal de disponibilização das mulheres para fantasia dos homens. Para eles, a “festa é deles e os corpos são deles”.

Tal lógica se reproduz nas mais variadas relações que perpassam o período carnavalesco. Basta o exemplo do que passam as camelôs, em sua maioria mulheres negras, que tem outro papel na organização do Carnaval. Muitos homens foliões se sentem no direito de assediá-las sexualmente naquele que é seu espaço de trabalho.

Também nesse contexto, as mulheres lésbicas, cuja orientação sexual representa uma afronta à heteronormatividade, ficam expostas à inoportuna obsessão masculina. O fetiche em ver duas mulheres se beijando, torna-se rapidamente agressão física, verbal e psicológica.

Hoje, mesmo com todo o acúmulo conquistado pelos anos de debate sobre esse tema, a disputa discursiva a respeito do assédio ganha novos contornos. A ascensão do pensamento conservador, com seus líderes extremistas e fundamentalistas religiosos, trouxe à tona doutrinas ultrapassadas. A exaltação do machismo, do racismo, da LGBTfobia, além do ódio aos pobres, tornaram-se método da política institucional.

Lembremo-nos que há poucas semanas a opinião pública precisou rebater a fala de um deputado ultraconservador que, ao criticar a campanha “Não é não” – voltada para conscientização da população e proteção das foliãs -, naturalizou práticas de abuso contra mulheres e, de certa forma, as responsabilizou pela violência sofrida. “Quem, homem ou mulher, não gosta de ser assediado?”, provocou. Uma pergunta-afirmação que fragiliza as vítimas, ao passo que empodera os abusadores, uma vez que a recorrência de ações assediosas partem justamente da perspectiva de que a vítima teria autorizado a ação. A declaração do parlamentar soou como uma naturalização de práticas inaceitáveis.

Um trabalho realizado pela fotógrafa estadunidense Grace Brown (2013) revelou algumas das frases ouvidas por mulheres vítimas de estupro, no momento em que sofriam a violência: “Você está gostando que eu sei”, “Estou fazendo isso por você”. No caso brasileiro, a sentença despejada da boca de um membro do parlamento, que de alguma forma toca o que foi revelado pela experiência trazida por Grace, significa uma espécie de apologia e institucionalização do horror.

Na acepção da palavra, o assédio pressupõe inconveniência, insistência, abuso. Não há como conceber a perseguição ou a invasão do corpo como algo bem-vindo à vida de qualquer pessoa.

Para resistir e superar a imposição extremista, é preciso redobrar o esforço coletivo rumo à reconstrução de pactos sociais. O ideal de igualdade frágil não nos serve, a ideia de equivalência é mais adequada às nossas necessidades. É o respeito à diversidade que guarda a possibilidade de uma existência socialmente plena e igualitária.

Nesse sentido, queremos que mais políticas públicas para o combate à violência sejam implementadas. Que façamos também mais e mais campanhas contra o assédio, dentro e fora do Carnaval. Carnavalizando a nossa existência para subverter o poder e sua estrutura patriarcal. E que as mulheres estejam cada vez mais fortalecidas para transformarem em prática o lema: “A festa é nossa, o corpo é meu“!

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