Raquel de Queiroz leva ‘Passagem Única’ à Mostra de Cinema de Gostoso e reflete sobre acesso e identidade
Diretora potiguar fala sobre criação, referências e desafios do curta que aborda mobilidade e desigualdade
Por Thiago Galdino
O curta-metragem Passagem Única, dirigido por Raquel de Queiroz, chega à 12ª Mostra de Cinema de Gostoso como um dos representantes da Mostra Potiguar. A produção, realizada por meio da Lei Paulo Gustavo, acompanha duas irmãs gêmeas do interior que dividem uma única passagem de ônibus para estudar em outra cidade (uma situação comum em muitos territórios do Rio Grande do Norte). Raquel, que também atua como “Agente Territorial de Cultura” em Mossoró, entrelaça sua vivência profissional com os desafios de mobilidade, desigualdade e identidade explorados no filme. Nesta entrevista à Cine Ninja, ela comenta o processo criativo, a construção das personagens, as escolhas de linguagem e o significado de participar do festival pela primeira vez.
Você figura como “Agente Territorial de Cultura” em Mossoró. Como essa atuação na cultura local dialoga com sua prática como diretora audiovisual, especialmente em Passagem Única?
Raquel de Queiroz: Meu trabalho como “Agente Territorial de Cultura” é garantir a mobilização e articulação da cultura em meu território, como também difundir informações a respeito das políticas públicas e culturais através de oficinas e outras ações. Passagem Única é uma história que fala muito sobre o acesso às políticas públicas e acredito que minha experiência como “Agente de Cultura” contribuiu para que eu conseguisse ter mais carga para contar essa história. Até porque ele só conseguiu o recurso para ser realizado porque foi contemplado pela Lei Paulo Gustavo, a nível estadual, que é uma política cultural e, através dela, eu consegui realizar meu primeiro curta-metragem de ficção.
A sinopse do curta mostra duas gêmeas que dividem uma única passagem de ônibus para ir à faculdade. O que inspirou essa história e como você pensou para colocar o tema da mobilidade dentro de uma narrativa de escolhas e identidades?
Raquel de Queiroz: Eu sou uma pessoa nascida e criada em Mossoró, uma cidade urbana que possui grandes centros e muitas oportunidades, e eu sou consciente do meu lugar de privilégio com relação a isso. Porém, durante a minha graduação na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), eu convivi com diversas pessoas que vinham de várias cidades do interior do RN e que todo dia faziam o trajeto de vir da sua cidade até Mossoró para poder cursar o ensino superior. Uma delas, Bruna Emilly, minha amiga, que inclusive participou como assistente de produção do curta, sempre contava os relatos dela e suas dificuldades diárias, foi aí que então eu pensei: “Meu Deus, Bruna tem que pagar para todo dia estar aqui… Imagine se ela tivesse uma irmã gêmea?” Foi a partir daí que surgiu a ideia de retratar essas histórias com um ar de ficção, mas baseado na realidade de muitos.
As personagens vivem em um interior distante da faculdade. Que parte da realidade do semiárido ou do interior potiguar você quis trazer para o filme, tanto em cenário quanto em sentimento?
Raquel de Queiroz: Uma coisa que trabalhei muito enquanto direção junto com a Diretora de Arte Mariana Gandarela foi retratar a casa das protagonistas de uma maneira não estereotipada. Porque na história elas não têm condições financeiras de pagar duas passagens para irem para a faculdade, mas isso não significa que elas não podem ter uma casa arrumada. O que buscamos trazer foi um olhar mais aconchegante, retratando o interior sem exageros. O sentimento que buscamos transmitir foi o de pertencimento e identidade.
Você assina a direção e participou da montagem do filme. Como foi o trabalho em sala de edição ao lado de Felipe Moju e de que maneira a montagem ajudou a construir o tempo dramático das gêmeas?
Raquel de Queiroz: Um fato triste é que tivemos que cortar muita coisa para ele conseguir ficar com quinze minutos. Mais de dez minutos foram cortados porque a maioria dos festivais, como a Mostra de Cinema de Gostoso, só considera curta até quinze ou vinte minutos, e o meu objetivo desde o início do projeto era fazer esse filme circular para que mais pessoas pudessem conhecer essa história. A montagem acabou dando muito trabalho por causa disso, porque tínhamos que ver cena por cena, detalhe por detalhe, e saber o que tinha que entrar, sair e mudar. Eu também trabalho com edição, por isso que até mesmo nos momentos da gravação minha cabeça pensava em como ia ficar na montagem, o que me fez tomar certas decisões que mudaram um pouco o rumo do curta.
O curta foi selecionado para integrar a Mostra Potiguar na 12ª Mostra de Cinema de Gostoso. O que isso representa para você, para o filme e para a cena audiovisual de Mossoró/RN?
Raquel de Queiroz: Como já dito, desde o início o meu objetivo era fazer o curta circular em festivais, porque não adianta a gente fazer uma história que nos representa e ninguém conseguir apreciá-la. Por isso, eu me planejei e me preparei para essa inscrição e, quando saiu o resultado, eu não poderia ficar mais feliz. Foi uma vitória coletiva, uma conquista enorme para mim, pois esse é o meu primeiro curta grande, a primeira vez em que eu assino a direção de um filme que foi realizado através da Lei Paulo Gustavo, então, só em ele conseguir circular em uma plataforma de destaque, como a Mostra de Cinema de Gostoso, é um privilégio, e eu me sinto muito grata e realizada em poder representar Mossoró em um evento como esse.
A Mostra de Cinema de Gostoso é um espaço importante para o audiovisual potiguar. Você acompanhou o evento em edições anteriores? Conhece os outros filmes selecionados na Mostra Potiguar deste ano?
Raquel de Queiroz: Essa será a minha primeira vez participando da Mostra. Não conheço os filmes selecionados, porém, alguns dos diretores dos curtas me seguiram no Instagram e eu espero poder ter uma troca com diversos realizadores e produtores audiovisuais durante todo o evento.
Em termos de estética e linguagem cinematográfica, que referências você trouxe para Passagem Única? Houve influências visuais, narrativas ou sonoras que você considera centrais para o curta?
Raquel de Queiroz: Umas das referências foi Bacurau, que utilizamos na fotografia e, também, fazemos uma leve referência ao filme em uma cena do personagem Zequinha, que é o antagonista do curta. Também eu e Erick Medeiros, que assina o roteiro junto comigo, mergulhamos em diversos filmes sobre gêmeas, como o clássico Operação Cupido e outros longas estilo “Sessão da Tarde”, porque nós queríamos que a história passasse uma vibe leve e divertida, mas tratando assuntos importantes. Várias das referências também foram influenciadas pela Assistente de Direção Kalyne Almeida, que também orientou uma assessoria de roteiro para o curta.
Parte da sua trajetória inclui fotografia, ilustração e produção cultural. De que modo esse background influenciou escolhas de direção de arte, composição de planos e registro fotográfico no set?
Raquel de Queiroz: Eu considero que toda experiência que vivenciamos faz parte de quem somos hoje. Então, todas as minhas escolhas visuais e narrativas foram influenciadas pela minha trajetória audiovisual. Por exemplo, durante as gravações, eu sempre me preocupava com o enquadramento das cenas, a posição dos personagens, as paletas de cores que iriam ser retratadas. É bem sutil, porém, se prestar atenção, dá para perceber que a Direção de Arte desenvolveu uma paleta de cores para cada personagem de acordo com a personalidade de cada um, como também de acordo com as minhas orientações. Isso vem muito do meu lado mais artístico e da ilustração, essa minha preocupação com a estética e com o que vai ser visto na tela.
A personagem principal e sua irmã enfrentam dilemas éticos e práticos ao dividir uma única passagem. Qual elemento dramático você considera central para provocar reflexão no público sobre desigualdade e acesso à educação?
Raquel de Queiroz: Acredito que a presença da prefeita é o ponto chave para a resolução do conflito final, porque ela é uma figura emblemática que está diretamente ligada com os dilemas das protagonistas. Mas, do ponto de vista dramático, acredito que seja a relação das gêmeas, em como cada uma lida com essa situação e em como foi desenvolvido esse dilema.
Após a exibição em Mossoró e Caicó, e agora em Gostoso, quais passos você prevê para Passagem Única? Circulação em festivais, sessões em escolas, debates com comunidades ou outras ações?
Raquel de Queiroz: Como diria a minha eterna professora Kalyne Almeida: “Esse curta ainda vai ganhar o mundo”. Os próximos passos são mais inscrições em festivais, e o objetivo é continuar circulando e ganhar mais notoriedade. Meu objetivo enquanto diretora potiguar é fazer com que mais pessoas vejam o que está sendo produzido aqui e conseguir retratar mais histórias como essa, de pessoas reais do nosso território. Com relação às futuras exibições, ainda não tenho nada planejado, porém, estou aberta à convites para que mais pessoas conheçam a história de Passagem Única.
A presença de Passagem Única na Mostra de Cinema de Gostoso marca um momento importante da trajetória de Raquel de Queiroz, que vê no curta uma forma de dialogar com o público sobre acesso à educação, dilemas cotidianos do interior e políticas culturais. Entre referências cinematográficas, decisões de montagem e experiências acumuladas na fotografia e na produção cultural, a diretora destaca o desejo de ampliar a circulação do filme e fortalecer o audiovisual potiguar. Para ela, o curta ainda tem muitos caminhos a percorrer, e cada nova exibição é uma oportunidade de ampliar conversas e reconhecer histórias que nascem do território.







