Por Bia Aflalo e Ana Ramos

Com as atenções do mundo voltadas para Belém (PA), por ocasião da COP30, moradores de comunidades quilombolas do Baixo Acará, região ribeirinha entre os municípios paraenses de Acará e Bujaru viram a oportunidade de protestar mais uma vez, contra a instalação de um aterro sanitário que deve receber resíduos sólidos da Região Metropolitana e assim, causar danos socioambientais.

o longo desta semana, ocorreu o 10º Seminário Quilombola do Baixo Acará, que reuniu dezenas de comunidades para discutir políticas públicas, identidade, direitos territoriais e, sobretudo, uma pauta urgente: a tentativa de instalação de um aterro sanitário, que segundo denúncias de moradores é, na prática, um lixão a céu aberto no coração de seus territórios.

O empreendimento é alvo de protestos desde setembro deste ano, quando moradores fecharam a avenida Centenário, em Belém (PA), em um ato que ganhou repercussão estadual. ao ser noticiado por reportagem do G1 Pará. Os moradores ressaltaram que os dois terrenos escolhidos ficam próximos a nascentes, igarapés e zonas de produção agrícola familiar. No dia 21, último dia da COP30, novo ato voltou a reunir tanto moradores das comunidades quilombolas, quanto indígenas, agricultores e ribeirinhos de Acará e Bujaru, quando realizaram manifestação na Alça Viária, no nordeste do Pará.

A situação acendeu o alerta para risco de contaminação do lençol freático, um impacto já amplamente documentado em estudos do Instituto Trata Brasil e da Fundação Heinrich Böll, que apontam que lixões, ainda responsáveis por 40% da destinação de resíduos no país, são os principais vetores de poluição de solos, mananciais e águas subterrâneas.

Colaboradora que soma à cobertura da MÍDIA NINJA na COP30, Ana Ramos, ouviu ativistas do movimento contra o lixão. A seguir, reproduzimos três entrevistas. A primeira, realizada com Joelson Cunha, da comunidade quilombola Guajará-Mirim; A segunda, com Jair, liderança do território Machuacará e a colaboradora ouviu ainda, o Secretário Nacional de Políticas para Quilombolas e Povos Tradicionais de Matriz Africana, Ronaldo Santos, que denunciou que o empreendimento afeta desproporcionalmente comunidades socialmente vulnerabilizadas.

“Escolher territórios negros para descartar aquilo que a sociedade não quer ver, é racismo ambiental”.

Confira as entrevistas a seguir:

Ana – Joelson, como você define o seminário quilombola?


Joelson – É mágico. É um espaço onde a gente se reconhece, aprende e luta junto. Eu entrei nesse mundo em 2021, em Itapurama, e foi amor à primeira vista. Aqui a gente discute tudo: educação, saúde, saneamento básico, agricultura. E a cada edição a gente tira uma carta de reivindicações e comissões para levar nossas demandas até os gestores. É a nossa forma de tentar fazer o Estado funcionar para quem sempre ficou à margem.

Ana – O seminário também é sobre identidade?

Joelson – Com certeza. No Dia da Consciência Negra, por exemplo, a gente lembra que esse feriado só existe por luta dos nossos movimentos. É como se cada comunidade fosse um membro, e o seminário fosse o corpo tentando agir junto.

Ana – Como o seminário dialoga com a COP30?

Joelson – Infelizmente, fomos atropelados. Era para estarmos dentro dos debates desde o início. Nós somos os primeiros a sentir os impactos das mudanças climáticas, mas ficamos de fora das mesas principais.

Ana – E a tentativa de implantação do lixão?

Joelson – Se dependesse deles, já estaria funcionando. Mas nós dissemos não. Ao redor do nosso território, em vez de políticas de educação ou agricultura, querem trazer um lixão a céu aberto. Isso ameaça nossas nascentes e nosso solo. A contaminação é certa.

Ana – Como você se sente vendo o mundo discutir clima enquanto vocês ficam de fora?

Joelson – É se sentir lesado e, de certo modo, escravizado. A abolição oficial aconteceu, mas tem leis e práticas que continuam nos colocando em risco. Mesmo assim, a gente não esmorece. Tem outros grupos falando nossa língua. O seminário é resistência e união. Antes não tínhamos nada. Hoje temos merenda, educação, transporte, fruto dessa luta.

Entrevista com Jair, do movimento FORA LIXÃO

Ana – Qual o impacto desse empreendimento para vocês?

Jair – É um projeto que vai contra tudo o que a COP defende. Eles chamam de aterro sanitário, mas na prática é um lixão. E mesmo que fosse um aterro bem feito, os terrenos de Bujaru e Acará são inadequados. Vai prejudicar quilombolas, pescadores, agricultores.

Ana – Como vocês têm se organizado?

Jair – Com manifestações pacíficas e com apoio jurídico. Mas a gente sente falta do que mais pesa: apoio político. Vereadores, prefeito, governador… ninguém aparece. 

Ana – E o Seminário Quilombola nesse contexto?

Jair – É nossa força. Aqui se reúnem todas as comunidades para discutir cultura, território e também denunciar violações. Como eu falei na mesa: sempre escolhem o território negro para descartar o que a sociedade não quer assumir. Dois lixões, justamente onde nós estamos.

Entrevista Ronaldo Santos

Ana – Secretário, o senhor disse que racismo ambiental não é um jargão acadêmico, mas sim, a reprodução de padrão histórico…

Ronaldo – Quando analisamos onde lixões, resíduos tóxicos, aterros de rejeitos e áreas de risco são colocados no Brasil, vemos sempre o mesmo recorte: territórios negros, quilombolas, ribeirinhos, indígenas. Isso não é coincidência. É projeto.

Ana – Outro ponto que aborda,é que o racismo ambiental nasce da observação da sociedade industrial do século XX. Então, como disse, a Amazônia urbana e rural continua sendo alvo dessa prática, não é?

Ronaldo – Esses territórios são escolhidos, porque são socialmente desprotegidos. A lógica é simples e cruel: onde a população tem menos voz política, instala-se aquilo que ninguém quer por perto.

Ana – Nas conferências como a COP30, discute-se muito a proteção aos mais vulneráveis. Porque as comunidades quilombolas merecem posição de destaque nas mesas de negociação?

Ronaldo – As comunidades mais afetadas por enchentes, deslizamentos, seca extrema ou poluição ambiental são, estatisticamente, as mesmas que carregam o peso histórico da escravidão e da marginalização econômica. Então, durante a COP30, é impossível ignorar essa ferida. E também, é contraditório receber o maior evento climático do mundo e permitir que, ao mesmo tempo, um lixão pretendido em Acará e Bujaru avance sobre territórios quilombolas. Dizer não ao racismo ambiental não significa rejeitar soluções para resíduos. Significa exigir soluções que não destruam comunidades vulneráveis para beneficiar grupos privilegiados.

O Seminário Quilombola do Baixo Acará não foi apenas um encontro: segue como modelo de uma trincheira de resistência. Em pleno auge da COP30, enquanto presidentes, CEOs e especialistas debatiam metas climáticas em auditórios climatizados, quilombolas lutavam para impedir que a Amazônia seja tratada como depósito de lixo.

Entrevistas: Ana Ramos

Texto: Bia Aflalo