Quem são as guardiãs das tradições afro-diaspóricas no Brasil?
Conheça a história de Lôra Santana, liderança quilombola que cuidou de sua comunidade durante a pandemia.
Conheça a história de Lôra Santana, liderança quilombola que cuidou de sua comunidade durante a pandemia
Por Danielle Souza, Felipe Falheiros e Beatriz de Paula*
Na Rua Dandá, Km 9 da BA 093, na cidade de Simões Filho, Bahia, há uma história que merece ser ouvida. Parte da quinta geração de uma resistência centenária, Sandra Santana, de 41 anos, mais conhecida como Lôra, é mãe, irmã, filha e liderança do Quilombo do Dandá, comunidade com mais de 250 anos de existência constituída por 73 famílias. Seu apelido faz jus a ela, não pela estética eurocêntrica e, sim, por causa da ave falante de mesmo nome. Certamente, Lôra tem muita história para contar.
Sua trajetória de luta começou na juventude. Ela narra que, há 20 anos, o neto de um suposto fazendeiro apareceu alegando que aquelas terras pertenciam a ele. Lôra decidiu, então, que não mediria esforços para comprovar que ela e seus familiares habitavam a região há gerações.
Os Territórios Remanescentes de Comunidades Quilombolas, mais conhecidos como Quilombos, são locais onde vivem famílias descendentes de pessoas escravizadas que, em sua maioria, possuem algum grau de parentesco. No passado colonial, os quilombos eram formados por escravizados fugidos das fazendas. Ao longo do tempo, transformaram-se em grandes centros de resistência e ancestralidade negra. A primeira aparição de um quilombo no Brasil data do século XVI. De lá pra cá, essas comunidades vêm tentando manter suas tradições em meio aos avanços tecnológicos e interesses políticos.
Mas como uma comunidade em que a oralidade tem um grande peso comprovaria sua história em um sistema que valoriza papel e caneta? “A nossa conquista foi com muita luta. Tenho uma filha de 16 anos que, na época, era pequena e ficava com minha mãe. Eu era casada e abri mão de tudo para estar nesses movimentos, buscando [a comprovação da nossa história], viajando para Alagoas, para Brasília, várias vezes… Eu nem me imaginava em Brasília! Mas fui obrigada a ir pra gente lutar e conquistar o nosso território”, lembra com orgulho.
Nessa luta, Lôra não estava sozinha. Como na jornada de uma heroína, ela encontrou alianças como o Movimento de Trabalhadores Rurais Assentados e Acampados da Bahia (CETA) e o apoio de seus ancestrais. As histórias contadas oralmente em celebrações como os tradicionais carurus nas comunidades vizinhas de Palmares e Pitanga de Palmares, também em Simões Filho, fortaleceram sua caminhada. Nessas celebrações, ela costumava ir ao quarto de seu tio, Manuel Lopes, para ouvir suas histórias e ampliar seu repertório através de uma biblioteca viva, uma maneira africana de construir conhecimento. “Eu não deixava de estar lá no quarto dele, conversando, tinha um motivo… Porque se eu não soubesse o que sei, hoje em dia eu não estava com essa autonomia. As meninas falavam: ‘Oxe, Lôra vem pra se divertir e fica lá dando ouvido a velho’. Hoje eu digo: ‘Valeu a pena!’”, comemora.
Em 30 de abril de 2004, a comunidade finalmente conseguiu dar entrada em seu processo de titulação, através de uma certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares. Em 2006, o processo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi aberto e assim permanece até hoje. Apesar de o Quilombo do Dandá ainda não possuir titulação, a comunidade tem seus direitos sobre os 347,6840 hectares de terra garantidos pelo INCRA durante 100 anos, graças à Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).
Segundo a Assessora Jurídica da Coordenação Nacional de Articulação Quilombola (CONAQ), Vercilene Dias, a titulação é o que garante os direitos das comunidades quilombolas, permite que participem de editais, tenham suas próprias escolas e comprovem a posse de suas terras. Ainda de acordo com o CONAQ, os territórios quilombolas oficialmente titulados no Brasil não chegam nem a 7% das comunidades existentes, mas muitos estão com processo em aberto, como o do Dandá.
Conforme dados da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), existem 3.471 comunidades quilombolas no Brasil. 60,86% delas ficam no nordeste, totalizando 2.267 quilombos. O Maranhão é o estado com o maior número de comunidades quilombolas do país, com 870, seguido pela Bahia, com 841.
Quilombo na pandemia: resistência em dobro
Assim como outras comunidades tradicionais, os quilombos sofreram com a pandemia da Covid-19. Em 29 de fevereiro de 2020, pouco antes dos primeiros casos de Covid-19 aparecerem no Brasil, Lôra perdeu sua mãe, dona Maria. Após o luto, além de cumprir as tarefas da maternidade e da comunidade, ela assumiu novas funções familiares, antes executadas pela matriarca. Passou a ser a principal responsável por cuidar da família, em especial, do pai, seu Zé, de 74 anos, e do irmão mais velho, Gerson, de 46, que é PCD (pessoa com deficiência) e está na fila por um transplante de rim há mais de duas décadas.
“Uma das principais formas de cuidado é a alimentação saudável, porque um corpo bem alimentado resiste mais. Meu irmão faz hemodiálise há 23 anos e ainda resiste, graças aos nossos cuidados, pois muitos acabam falecendo, e ele está aí, na resistência”, afirma.
Para dar conta de cuidar da família, da filha de 16 anos como mãe solo, da sua terra e continuar exercendo seu papel na comunidade, Lôra teve que abrir mão do seu emprego na prefeitura da cidade. “Não foi fácil, né? Inclusive, até hoje corro atrás do Bolsa Família… Mas vendo os produtos da agricultura familiar, o artesanato e faço o impossível para estruturar minha família”, desabafa.
Sua jornada tripla de trabalho começa antes do sol nascer: levanta-se às duas da manhã – de vez em quando se dá o luxo de acordar às três, o que é muito raro, segundo ela – põe o feijão no fogo e prepara o mingau de milho, o mungunzá, o café e o leite para vender na estrada da BA 093, junto a outros produtos do quilombo. Ali, ela fica até o meio dia. Após o almoço e meia hora de descanso, Lôra segue para a roça para cuidar da plantação de milho, aipim, hortaliças, coco, maracujá, banana e outras frutas que vende na feira. Nos finais de semana, ajuda na produção de peças artesanais de piaçava (planta originária da região), como cestos, tapetes, esteiras e biojoias, que fazem o maior sucesso entre os visitantes.
Ainda nos fins de semana, acontecem as reuniões da associação de moradores da comunidade, onde eles debatem pautas pertinentes às suas rotinas, dividem tarefas e reivindicam seus direitos. Lôra também é a presidente da associação e está em seu segundo mandato por votação popular. No mural de fotos do espaço, é possível ver algumas conquistas importantes da comunidade.
Dentre os registros, está a foto de Maria José, de 43 anos, irmã mais velha de Lôra, mais conhecida como Nem. Ela foi uma das 4 pessoas contaminadas pela Covid-19 na comunidade e a única que não resistiu às consequências da doença. De acordo com o levantamento autônomo da CONAQ em parceria com o Instituto Socioambiental, dos 5.654 casos de quilombolas que contraíram Covid acompanhados em 2020, 301 mortes foram registradas. Isso faz com que a letalidade da doença nessas comunidades seja de 5,3%, superior à média nacional, de 2,8%.
No entanto, o número de óbitos pode ser ainda maior, já que, segundo a CONAQ, pode haver subnotificação devido à falta de levantamentos epidemiológicos por parte das secretarias municipais e do próprio Ministério da Saúde nas comunidades tradicionais. O caso de Nem, por exemplo, ainda não havia sido computado até a última atualização do levantamento, em 7 de Outubro de 2021. Além disso, quilombolas relatam dificuldade de acesso a exames para detecção do vírus.
Graças à atuação da CONAQ, as comunidades quilombolas foram incluídas no grupo prioritário para vacinação contra a Covid-19. Em Simões Filho, nos três quilombos registrados pela Fundação Palmares, incluindo o Dandá, 969 quilombolas tomaram a primeira dose e 794 tomaram as duas, segundo a última atualização, do dia 18 de outubro de 2021. A meta do município era imunizar 2.025 moradores dessas comunidades.
Vida em comunidade
Artesanato, agricultura familiar, farinhada (produção da farinha de mandioca), e produção de vassouras de piaçava são atividades de subsistência do quilombo há mais de 50 anos, mas que ficaram suspensas por um período devido à pandemia. Esses produtos são consumidos pela comunidade, mas também são vendidos na feira do quilombo. Na Casa de Farinha, a produção é comunitária. As famílias se organizam e se dividem nos processos, cuidando umas das outras.
A piaçava é uma planta comum no Quilombo do Dandá, que não precisa ser plantada. A cutia, roedor presente na floresta do quilombo, faz o trabalho de multiplicadora das sementes. Por isso, a caça não é aceita na comunidade. “Quem planta aqui é a própria caça, a cutia. Ela pega a semente, esconde para comer, enterra, e, aí, acaba esquecendo. Essa piaçava nasce, se multiplica e, assim, ela nos ajuda com o nosso sustento”, explica Lôra.
A produção de vassouras ainda é feita manualmente. Seu Justiniano Pereira, de 66 anos, conta que existe um projeto para implementar uma fábrica de vassouras, com o objetivo de facilitar e agilizar as etapas da confecção do artefato, mas, infelizmente, a iniciativa está parada. “Trabalho com isso há muito tempo. Vou no mato tirar piaçava, levo pra casa, limpo, corto no tamanho de 35 centímetros, corto o tubo de PVC, encho, coloco o cabo e vou batendo, batendo até ela chegar no limite certo. Depois, boto um prego para segurar mais ainda. Aí, levo pra vender”, narra.
Com o intuito de fazer com que as novas gerações cuidem e mantenham vivas as tradições da comunidade, os mais velhos tentam aproximá-los por meio da criatividade, da capoeira, do samba de roda, entre outras atividades comuns à vida no Dandá. “Quando tem apresentação no Dia da Consciência Negra, por exemplo, quem se apresenta são os mais velhos? Não. Os mais velhos estão lá para olhar. São os mais novos que vão apresentar o que a gente tem no dia a dia. E isso está sendo muito importante, estávamos com medo de perder esse resgate. A gente tem que fazer alguma coisa para eles sentirem que também estão envolvidos”, conclui Lôra, referindo-se às celebrações realizadas no quilombo, antes da pandemia, que reuniam moradores e visitantes de outras cidades, estados e países.
Educar também é cuidado
Assim como outras instituições Brasil afora, a escola quilombola Nossa Senhora do Carmo teve que se reinventar para atender aos alunos de forma remota. Segundo o Censo Escolar de 2019 (Inep), existem 2.526 escolas quilombolas no Brasil, 578 somente na Bahia. Devido à localização remota, poucas comunidades têm acesso à internet: apenas 12,4%, de acordo com o Programa Brasil Quilombola da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (PBQ – SEPPIR).
“O começo foi bem difícil, porque a nossa escola se encontra sem computador. Então, como iríamos fazer esse processo remotamente com nossos alunos? Muitos são de baixa renda, não têm celular e alguns moram nas partes mais distantes da comunidade, onde o sinal da internet não funciona”, enfatiza Silvia Santana, diretora da escola.
Passados os primeiros meses, as estratégias do ensino à distância foram surgindo e a escola passou a contar com parceiros para distribuir as atividades aos alunos. “Começamos a entregar blocos de atividades impressas de forma independente, sem o apoio municipal, porque, naquele período, acredito que eles ainda estavam se organizando para nos dar esse suporte. Hoje, contamos com a Secretaria de Educação para imprimir todas as atividades, de 20 em 20 dias, e distribuí-las entre os estudantes”, afirma Silvia.
Entretanto, os desafios não param por aí. No Brasil, o índice de analfabetismo da população quilombola era de 24,81% (PBQ – SEPPIR) em 2013, enquanto o da população geral era de 9,1%. A professora Marizete Santana lembra que, além de pensar nas atividades escolares, é preciso ter o cuidado de instruir os pais dos estudantes para que consigam ajudar os filhos em casa. “Aos poucos, percebemos que alguns responsáveis apresentavam bastante dificuldade com a leitura, porque nem todos são alfabetizados. Então, como somos parentes, trabalhadores e moradores da comunidade, fomos nos ajudando, mas foi um processo muito longo até nos adaptarmos a tudo isso”, conta.
Fundada em 1994, a escola quilombola do Dandá só passou a ter funcionários da própria comunidade a partir de 2017, mesmo contando com profissionais capacitados para ocupar as vagas antes disso. “Exigimos o nosso direito de ter professoras e colaboradores do próprio quilombo, pois, antigamente, até as faxineiras vinham de fora. Então, pra eles, a gente não servia nem pra limpar o chão. E a gente sabe da importância de ter a nossa própria escola com os funcionários da comunidade. Assim, fortalecemos a nossa cultura e não perdemos as nossas tradições”, acrescenta Lôra.
Ao todo, são 22 alunos matriculados em duas turmas multisseriadas, da Educação Infantil até o Ensino Fundamental I. Durante o período pandêmico, não houve evasão escolar, um incentivo a mais para as profissionais da educação continuarem a desenvolver seu trabalho. “Dirigir uma escola é sempre um grande desafio, mas aqui eu estou em casa, com os meus, passando os ensinamentos para os nossos, num ambiente acolhedor e, hoje, recebemos bons elogios, inspirando ações de outras unidades. Gratificante!”, conclui a diretora Silvia.
Os caminhos que levam até o Quilombo do Dandá, às margens da BA 093, são os mesmos que nos trazem de volta desse mergulho profundo na ancestralidade negra, baiana e brasileira. O caminho da roça, da escola, da casa de farinha, da fábrica de vassouras, da estrada de terra e do asfalto, todos percorridos diariamente por Lôra e seus familiares numa rotina sagrada de cuidados. Angela Davis, filósofa norte-americana, afirma que a mulher negra está na base da pirâmide social e que, quando ela se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. Lôra Santana é a prova viva de que esse movimento é real e contínuo, ainda que o mundo estivesse parado em meio à pandemia da Covid-19.
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*Esta reportagem foi feita com o apoio do Laboratório de Histórias Poderosas Brasil, uma iniciativa de Chicas Poderosas, comunidade internacional e organização sem fins lucrativos que busca fomentar o desenvolvimento de mulheres e pessoas LGBTQI+ em meios de comunicação e criar oportunidades para que todas as vozes sejam ouvidas. O Laboratório recebeu apoio da Open Society Foundations.
O trabalho contou com edição de Bruna Escaleira, checagem de Alessandra Monnerat, acompanhamento de segurança por Helena Bertho e coordenação da equipe Chicas Poderosas.